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Multiconjugalidades, ideologias e significantes
Rodrigo da Cunha Pereira
Advogado. Parecerista. Doutor (UFPR) e Mestre (UFMG) em Direito Civil, Presidente do IBDFAM-Instituto Brasileiro de Direito de Família, autor de vários livros e trabalhos em Direito de Família e Psicanálise.
Os ordenamentos jurídicos ocidentais foram estruturados a partir do pressuposto da superioridade do masculino sobre o feminino, da hetero sobre a homoafetividade, da monogamia sobre a não monogamia. Estas supostas superioridades ainda são sustentadas pelo sistema e ideologia patriarcal, que estabelecem hierarquias, e dominação de um gênero sobre outro. Este, como todo preconceito, tem em sua base um projeto de poder, que é reforçado por lógicas institucionais. A fantasia de um passado perfeito, em que “homem era homem, mulher era mulher, os pobres e os negros sabiam seu lugar, as crianças obedeciam, os professores tinham autoridade, não existia sensibilidade para piadas, a segurança nas ruas era grande e o crime era punido”, é o que sustenta esse preconceito. A nostalgia de um passado glorioso, remete ao discurso de restauração de uma época da família perfeita. Na verdade, a repressão e o silêncio sobre as famílias patriarcais e hierarquizadas, constituem uma névoa que encobria as fendas e sofrimentos da repressão dos desejos contidos¹. É em nome do bem, da família, de Deus e da pátria que grande parte das violências, em seus vários sentidos, se perpetua.
Em 2011, quando o STF (Adi 4277 e ADPF 132) ao interpretar o texto constitucional, rompeu um preconceito, ao dizer que famílias homoafetivas são legítimas, tanto quanto os heteroafetivas. E foi assim que a união estável e o casamento deixaram de ser monopólio da heteroafetividade. Além de um grande [i]avanço civilizatório, mostrou que é possível a coexistência dessas duas representações sociais de famílias, e que uma não afronta ou subtrai direitos da outra.
O movimento feminista e a Psicanálise, foram as grandes revoluções do pensamento do século XX, e interferiram drasticamente no sistema patriarcal. Fizeram-nos entender que o sujeito de Direito é também um sujeito de desejos. E que a mulher é sujeito de desejos tanto quanto o homem. Esta simples, e óbvia, compreensão, quebrou paradigmas, e estabeleceu na Carta Constitucional a igualdade de direitos entre os homens e mulheres (Art. 5º, I, CR). Foi um passo significativo para corrigir injustiças, que eram sustentadas pela própria regra jurídica, como por exemplo, o homem é o chefe da sociedade conjugal, a “mulher desonesta” pode ser deserdada pelo pai, anulação do casamento em razão da não virgindade da mulher etc.
A Psicanálise, como um sistema de pensamento, também influenciou a estrutura do pensamento e da linguagem do mundo ocidental. Sem nação e sem fronteiras, foi globalizada desde o seu nascimento, a partir da “descoberta” do inconsciente². Ela quebrou dogmas e ajudou diminuir preconceitos, na medida em que ajudou a despatologizar comportamentos e categorias, em respeito ao sujeito de direitos e de desejos. A partir daí, pôde-se inclusive quebrar o binarismo homem/mulher, e entender que os gêneros podem ser múltiplos e não está necessariamente ligado à anatomia. O movimento LGBTQIA+ é fruto deste novo pensamento, e compreensão do sujeito do inconsciente e desejante, que consequentemente vem interferindo na ideologia patriarcal e possibilitando novas estruturas parentais e conjugais nunca antes imaginadas.
Os sistemas jurídicos ocidentais, como se disse, foram assentados em torno da monogamia. Entram aí, também, valores religiosos. Mas principalmente vem atender a uma lógica de mercado. Afinal, é mais vantajoso pagar pensão alimentícia, e dividir o patrimônio com uma única mulher. O STF vem reforçando esta ideologia, e premiando irresponsabilidades de quem tem duas famílias conjugais simultâneas, geralmente o homem. Por exemplo, no julgamento do REX 1045273/2020, não atribuiu direitos à segunda família conjugal. Ela existiu, mas em nome da moral e dos bons costumes, é necessário e conveniente que ela permaneça na invisibilidade jurídica. É a mesma lógica moralista que sustentou, até a Constituição da República de 1988, a ilegitimidade dos filhos havidos fora do casamento. Quanta injustiça, e atrocidades, se tem feito em nome de uma moral particular. Já sabemos, entretanto, que toda moral em sua origem é utilitária, e usada como arma de dominação. Estes julgamentos são sustentados pela ideologia patriarcal e uma moral sexual e religiosa, que continuam excluindo, principalmente mulheres, do ordenamento jurídico. Até quando vamos continuar negando este fato jurídico, que é a existência de milhares de famílias que se constituem simultaneamente à outra? Isto não é ético.
A luz no fim do túnel vem, não apenas de Freud, ao trazer compreensão e respeito aos direitos do sujeito de desejos, que em primeira, e em última análise, significa respeito à autonomia privada e autonomia da vontade. Vem também de outro alemão, contemporâneo dele, Rudolf Von Ihering, que no seu clássico “A luta pelo Direito” nos ensina que o Direito não é apenas um conjunto de regras e normas, mas também uma luta permanente pela sua aplicação e pela defesa dos direitos individuais e coletivos. E é assim que, nos casos concretos, alguns julgadores, despem-se da contaminação de seus valores morais particulares, da ideologia patriarcal, do fetichismo da lei, e tenta corrigir a rota das injustiças de julgamentos morais estigmatizantes. A título de exemplos mais recentes, mencione-se o TJPR, 0003076132017.8.16.0035/2, (Rel. Des. Rogerio Etzel, rel p acórdão Eduardo Cambi, 12 CC, j. 26/04/2023), e também a decisão do juiz da comarca de Nova Hamburgo - RS que reconheceu a união poliafetiva entre dois homens, e uma mulher (cf. Revista IBDFAM nº 57). Ambas as decisões trazem consigo e têm em comum, o reconhecimento da força dos costumes, a não contaminação da moral particular dos julgadores naquele caso concreto, o respeito ao sujeito de direitos como sujeito de desejos, o princípio da responsabilidade norteando a fundamentação jurídica, e a evitação do uso de palavras estigmatizantes.
O Direito das Famílias e Sucessões tem evoluído graças a uma nova doutrina, construída pelo IBDFAM, jurisprudência, principiologia, costumes, mas também pelo uso de uma nova terminologia. Temos um novo vocabulário jurídico: socioafetividade, multiparentalidade, família ectogenética, famílias homoafetivas, coparentais, poliafetivas, simultâneas, multiconjugalidade, famílias multiespécie, alienação parental, vulnerabilidade etc. Esse novo vocabulário tem ajudado a desestigmatizar e a trazer novas compreensões. Por exemplo, usar a expressão família homoafetiva ao invés de família homossexual, curatela ao invés de interdição, convivência ao invés de visita, família simultânea ao invés de concubinato, muda o significante. Ressignifica e traz novo sentido ao seu conteúdo. Tira o peso do preconceito (todo preconceito faz parte de um projeto de poder) e possibilita um novo olhar, que conduz e autoriza direitos. Parece pouco, mas não é. As palavras têm força e poder, significado e significante, que é a representação psíquica do som, tal como novos sentidos o percebem. Elas são capazes de incluir ou excluir direitos (cf. Verbete Significante do meu Dicionário).
A mais nova expressão, e que vem ajudando a desestigmatizar representações sociais de famílias, é multiconjugalidade³, que designa as famílias que se constituem com mais de uma conjugalidade, sejam simultâneas, ou em um mesmo núcleo familiar, ou seja, famílias poliafetivas. Multiconjugalidades, portanto, é gênero que comporta as espécies: famílias simultâneas e poliafetivas, e outras que ainda não têm nominação, e possam ainda estar em curso.
A palavra é um dos principais instrumentos do Direito para a sua aplicação prática, ou seja, o discurso, seja oral ou escrito. É na palavra, e pela palavra, que os instrumentos jurídicos são aplicados e se efetivam direitos. Por isto essas mudanças, esse novo vocabulário jurídico, tem um sentido muito mais profundo que a simples designação das palavras. É uma contribuição às despatologizações, e um passo adiante no entendimento das formas de dominação, hierarquização e controle da sexualidade de um gênero sobre o outro. “Muita coisa importante ainda falta nome” disse Guimaraes Rosa em “Grandes sertões: Veredas”. Portanto, é na medida que vamos nomeando, e renomeando, que vamos dando proteção jurídica, um lugar ao sol àquilo que já existe, mas resiste em ganhar visibilidade jurídica. Enquanto isto, vamos procurando e semeando palavras para sustentar novos direitos.
1 – KARNAL, Leandro e FERNANDES, Luiz Estevam de Oliveira. Preconceito: uma história. São Paulo: Cia da Letras, 2023, p.304).
2 – PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Verbete INCONSCIENTE. Dicionário de Direito das Famílias e Sucessões. Ilustrado - Ed Foco, 2023, p.397).
3 – PORTO, Duina. Poliamor - Reconhecimento Jurídico como Multiconjugalidade Consensual e Estrutura Familiar, Editora Juruá, 2023).
Publicado no original: https://www.conjur.com.br/2024-mar-17/novo-vocabulario-no-direito-das-familias-multiconjugalidades-ideologias-e-significantes/
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