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Adolescentes, Ato Infracional e a Maternagem (i)Limitada
1 - Após a queda, isto é, o ato infracional, de regra, organiza-se uma cruzada pela salvação moral do adolescente. A função materna acaba sendo incorporada pela Justiça da Infância de Juventude brasileira. Assim, lotados de boas intenções, claro, o juiz, o promotor de justiça, os advogados, a equipe interprofissional, todos, buscam agarrar o cajado e indicar o caminho da redenção ortopedicamente, ou seja, quase sempre desde o lugar do Outro, do canalha, diria Lacan.
2 - Desconsidera-se, imaginariamente, que a adolescência é o momento do reencontro sempre traumático com o real do sexo, do desligamento dos pais, do conflito de gerações (Alberti), num mundo em que impera a ausência de limites, naquilo que Melman denomina "Nova Economia Psíquica", ou seja, em que, sem Lei, gozar do objeto passa a ser o padrão social. Em um mundo de satisfação plena, felicidade eterna, cuja maior dificuldade é "ser humano", possuir angústia, o ato infracional pode significar a pretensão de existir. Pode ser o sintoma de que ali, no ato, o sujeito procurar resistir ou se fazer ver.
3 - A questão se agrava, de fato, no Brasil, porque, à extragrande maioria, as condições mínimas de subsistência não existem e, o agir, muito mais tranqüilo para os adolescentes, é fomentado pelo laço social frágil, cada vez mais horizontalizado, no qual o Estado, que ainda exercia alguma função paterna, resta aniquilado pelo levante neoliberal (Miranda Coutinho).
4 - Esta sustentação do lugar adolescente, então, pode ser o indicativo de que o sujeito resiste. Evidentemente que demanda uma compreensão em sua singularidade. De qualquer forma, pode significar pelo menos duas vias: 1) a pretensão de gozar do objeto sem limites, conforme indicado por Melman e Lebrun, a saber, numa estrutura perversa; 2) a resistência à estrutura que lhe determina gozar sem limites.
5 - No primeiro caso, o laço social encontra-se, de regra, frouxo, livre, próprio do "Homem sem Gravidade", na mais ampla perversão, entregue ao consumo compulsivo do objeto indicado - pela propaganda que sorri - na pretensão sempre falha de se completar. No segundo caso, contra tudo e todos, o sujeito busca um limite. Talvez encontre um substituto paterno interditando, se tiver sorte, como aponta Legendre com o cabo Lortie.
6 - Entretanto, independentemente do que busca, na estrutura dos Juízos da Infância e Juventude brasileiros acaba encontrando uma maternagem sem limites. A medida socioeducativa, ou seja, a resposta estatal brasileira, ao promover uma finalidade pedagógica, fomenta a normatização e a disciplina (Foucault), no que pode ser chamado de "McDonaldização" das medidas socioeducativas, a saber, por propostas padrões que desconsideram, por óbvio, o sujeito e, especialmente, a existência de demanda.
7 - De regra, impõe-se tratamento, educação, disciplina, independentemente do sujeito, então objetificado. Logo, sem ética (Lacan). Na maternagem ilimitada e, muitas vezes, perversa, ao se buscar imaginariamente o sujeito, culmina-se com o afogamento de qualquer resto de sujeito que pretenda se constituir. Assim é que o estabelecimento de engajamento ao laço social exige, primeiro, que o sujeito enuncie seu discurso, situação intolerada pelo modelo fascista aplicado no Brasil.
8 - Sabe-se, com efeito, que qualquer postura democrática não pode pretender melhorar, piorar, modificar o sujeito, como bem demonstra Ferrajoli. Caso contrário, ocupará sempre o lugar do Outro, do canalha. Portanto, no Brasil, qualquer pretensão pedagógica-ortopédica será sempre charlatã, de boa ou má fé.
9 - Resta a nós, no limite do possível eticamente, contra o senso comum social, respeitar o sujeito e com ele, se houver demanda, construir um caminho, sempre impondo sua responsabilidade pelo ato e o relembrando, ou mesmo advertindo, de que existe algo de impossível, algo que se não pode gozar. Nem nós, nem eles. A cruzada pela salvação moral é estranha à democracia, como o inconsciente o é do orgulhoso cidadão da Modernidade. Senão, como diz Agostinho Ramalho Marques Neto, quem salva os adolescentes da bondade dos bons?
10 - Neste mundo sem limites, sem gravidade (Melman), cabe indagar nosso desejo de continuar, e encontrarmos um caminho singular pelo Direito, o qual tem se tornado um instrumento da satisfação perversa do objeto. Não para tornar o adolescente mais feliz, sob pena de se cair na armadilha do discurso social padrão, mas de resistir apontando o impossível. Este é o desafio: articular ética e singularmente os limites, num mundo sem limites (Lebrun), pelo menos, em países do terceiro mundo, como o Brasil, àqueles que os não encontram na realidade da miséria.
Notas:
[1] Justiça francesa de menores e Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
[2] « Fin de la justice des mineurs ? », Philippe Chaillou, Le Monde du 8/12/2004.
Alexandre Morais da Rosa é Doutor pela UFPR e Mestre pela UFSC, professor do Programa de pós-graduação da UNIVALI (SC), juiz de Direito Titular da Vara da Infância e Juventude de Joinville (SC), membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR, vice-presidente do IBDFAM-SC, e filiado ao IBCCRIM e BRASIL CEDHUC. Comunicação apresentada na II Rencontre Franco-Brésilienne de Psychanalyse et Droit: enfante en danger, enfant dangereux - acte et enjeux de responsabilité. Paris, 24-26 de outubro de 2005. E-mail: amr8052@tj.sc.gov.br
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