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Perfil idealizado: entrave à efetivação da adoção de crianças e adolescentes no Brasil
Aline Meira Weber[1], Gabriel Julio Alves Carvalho[2]
Resumo. A adoção é uma prática muito antiga. No Brasil, ganhou relevância jurídica apenas em 1957. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, reconheceu-se que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos, os quais necessitam de cuidados e assistência especial, devido a sua condição peculiar de desenvolvimento. A adoção passou a ser uma medida a ser considerada quando não há mais recursos de manutenção do infante em sua família biológica. Tal ato propicia visibilidade, dignidade e respeito a crianças e adolescentes que tiveram seus direitos violados, devendo ser deferida apenas quando apresentar reais vantagens para o adotando, fundando-se em motivos legítimos. Contudo, na atualidade, a busca por um perfil ideal de adotando, por parte de quem adota, tem sido um dos maiores empecilhos para a efetivação de crianças e adolescentes no Brasil.
Palavras-chaves: Adoção. Criança. Adolescente. Direitos Fundamentais. Filiação.
SUMMARY. Adoption is a very old practice. In Brazil, it only gained legal relevance in 1957. With the promulgation of the Federal Constitution of 1988, it was recognized that children and adolescents are subjects of rights, who need special care and assistance due to their peculiar condition of development. Adoption became a measure to be considered when there are no more resources for maintaining the infant in their biological family. Such an act provides visibility, dignity and respect to children and adolescents who have had their rights violated, and should only be granted when it presents real advantages for the adoptee, based on legitimate motives. However, currently, the search for an ideal adoptee profile by those who adopt has been one of the biggest obstacles to the effective adoption of children and adolescents in Brazil.
Keywords: Adoption. Child. Adolescent. Fundamental Rights. Filiation.
1 INTRODUÇÃO
O início da prática da adoção é uma incógnita. Apesar dos inúmeros relatos acerca desta ação ao longo da história humana, não é possível determinar seu marco inicial. A efetivação do desejo de tornar-se pai ou mãe, por meio da adoção, é uma via de mão dupla. Aos adotantes é concedida a chance de dar todo o amor aos filhos que tanto almejaram, ao passo que aos adotandos, ao serem acolhidos pela família adotiva, possuem a oportunidade de reconstruir sua identidade. Tal ato propicia visibilidade, dignidade e respeito a crianças e adolescentes que tiveram seus direitos violados.
Apesar da longínqua trajetória desta prática, a legislação brasileira, reiteradamente, privilegiava os filhos biológicos em detrimento dos filhos adotivos. Foi somente na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 que se instituiu a supremacia do princípio da igualdade aos vínculos de filiação (BRASIL, 1988).
Em virtude da promulgação da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990a, conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), crianças e adolescentes passaram a ser vistos como sujeitos de direitos, devendo ser respeitadas suas condições peculiares de desenvolvimento. Consequentemente, passou a existir somente a adoção plena, ou seja, ela tornou-se irrevogável. Portanto, os infantes em situação de acolhimento, quando adotados por uma família substituta, tornam-se filhos legítimos dos pais adotivos, com os mesmos direitos e deveres, deixando de ter qualquer vínculo com pais e parentes biológicos (BRASIL, 1990a).
Nessa premissa, incumbe-se à família, à sociedade e ao Estado garantir à criança e ao adolescente proteção integral e prioritária, bem como assegurar a efetivação de seus direitos. Portanto, se constatada a necessidade de afastamento de sua família biológica e havendo impossibilidade de reintegração, seus guardiões legais, a depender da situação, serão destituídos do poder familiar, da tutela ou da guarda. Assim, a responsabilidade por este indivíduo passa a ser exclusivamente do Estado, até que seja colocado em uma família substituta (BRASIL, 1990a).
Não obstante à evolução jurídica-social da adoção, o perfil desejado pelos adotantes têm sido um dos principais desafios para a sua efetivação. Segundo o Conselho Nacional de Justiça, há atualmente (julho/2023) 31.860 crianças em situação de acolhimento, sendo que 4.375 delas estão disponíveis para adoção, enquanto existem 34.152 pretendentes. À medida que esses infantes crescem em instituições de acolhimento, esperando por uma família que os ame, proteja e reconheça seus direitos, muitos pretendentes permanecem aguardando pelo filho idealizado na fila do Cadastro Nacional de Adoção - CNA.
Sob a perspectiva do objeto de estudo do direito[3], que é a regularização da vida em sociedade, o intuito desta pesquisa bibliográfica é reunir estudos sobre o instituto jurídico da adoção. Seguindo uma abordagem cronológica-temática, o tema será abordado em dois capítulos, que tratarão do panorama geral da adoção e dos entraves à sua efetivação, questionando se a existência de um perfil ideal por parte dos adotantes poderia resultar em desrespeito aos direitos garantidos às crianças e adolescentes.
2 PANORAMA GERAL DA ADOÇÃO
2.1 Instituto jurídico da adoção
A palavra adoção deriva do latim adoptivus, de adoptare, formado por AD-, “a”, mais OPTARE, “escolher, desejar” - escolher para si, selecionar, podendo ser traduzida no âmbito jurídico, de maneira sintetizada, como “processo ou ação judicial que se define pela aceitação espontânea de alguém como filho(a), respeitando as condições jurídicas necessárias” (RIBEIRO, 2022).
Na definição de Rubens Limongi França (1999, p. 310), a adoção é “um instituto de proteção à personalidade, em que essa proteção se leva a efeito através do estabelecimento, entre duas pessoas – o adotante e o protegido adotado – de um vínculo civil de paternidade (ou maternidade) e de filiação”.
No mesmo sentido que França, Maria Helena Diniz (2005, p. 484) postula que se trata de “ato jurídico solene pelo qual, observados os requisitos legais, alguém estabelece, independentemente de qualquer relação de parentesco consanguíneo ou afim, vínculo fictício de filiação, trazendo para sua família, na condição de filho, pessoa que, geralmente, lhe é estranha”.
Já no conceito de Maria Berenice Dias (2016, p. 818), significa um “ato jurídico em sentido estrito, cuja eficácia está condicionada à chancela judicial. A adoção cria um vínculo fictício de paternidade-maternidade-filiação entre pessoas estranhas, análogo ao que resulta da filiação biológica”.
Na mesma linha, para Paulo Lôbo (2008, p. 248), a “adoção é ato jurídico em sentido estrito, de natureza complexa, pois depende de decisão judicial para produzir seus efeitos. Não é negócio jurídico unilateral. Por dizer respeito ao estado de filiação, que é indisponível, não pode ser revogado”.
Percebe-se pelas definições citadas, que a doutrina, em geral, possui um entendimento uniforme quanto ao conceito de adoção, que consiste em acolher um indivíduo de forma voluntária, fraterna e legal como integrante da família. Este ato gera vínculos civis e responsabilidades legais, e como os vínculos biológicos, são irrevogáveis.
A prática de tomar alguém por filho, de amar um ser incondicionalmente, independentemente do lugar e da condição que se encontra, é um instituto muito antigo, não podendo ser afirmado com certeza seu início. Todavia, existem diversas teorias e teses, como, por exemplo, a entendida e adotada por Rodrigo da Cunha Pereira (2015, p. 51), assim como por outros doutrinadores, indicando que
A prática da adoção encontra raízes no berço da humanidade, na Grécia Antiga, assim como em Roma (os imperadores Tibério, Calígula, Nero, Trajano e outros eram filhos adotivos), e existe na maioria dos países do mundo. No primeiro Código Civil da Franca, 1804, também conhecido por Código de Napoleão, e que instalou no mundo ocidental o sistema de codificação, a adoção foi tratada como uma filiação igual a filiação oriunda do casamento. Isto porque Napoleão Bonaparte, cuja esposa Josefina, em razão de sua esterilidade, não podia dar-lhe um herdeiro, procurou garantir, pelo Código Civil, todos os direitos aos filhos adotivos, inclusive os de sucessão, na esperança de dar urna continuidade ao seu império. No Brasil, desde a Colônia até o Império, o instituto da adoção foi regulamentado pelo Direito português. Eram diversas referências à adoção nas chamadas Ordenações Filipinas (século XVI) e posteriores, Manuelinas e Afonsinas, mas nada efetivo - não havia sequer a transferência do pátrio poder[4] ao adorante, salvo nos casos em que o adorado perdesse o pai natural e, mesmo assim, se fosse autorizado por um decreto real.
Na mesma linha de pensamento Maria Luiza Marcílio (1998, p. 26) afirma que
Foi em Roma que se regularizou, pela primeira vez, o direito de adoção. Uma vez que, os costumes romanos, os laços consanguíneos tinham pouca importância (o que importava era a linhagem), o adotado recebia o nome de família do pai adotivo, mesmo que tivesse vindo de camadas mais humildes ou mesmo de escravos. Cícero defendia que somente um homem sem filhos poderia adotar uma criança. Mulheres não podiam adotar, mas podiam ser adotadas. Mesmo com filhos vivos podiam adotar, como fez Herodes Ático. O mais famoso caso de adoção foi o de Otávio, que se tornou herdeiro e sucessor de seu tio Júlio Cesar. No império Romano, a adoção também servia para controlar a política de heranças. Um sogro que apreciasse seu genro, tratava de adotá-lo. Na qualidade de filho adotivo, poderia receber de seu pai adotivo um alto cargo ou dignidade, pois a adoção regulava a carreira política. Adotava-se em qualquer idade.
Por outro lado, na história da humanidade sempre houve filhos indesejados, seja porque o(s) indivíduo(s) não pretendia(m) ter filhos, seja porque o genitor(a) não poderia assumi-lo(s), ou por não possuir condições de prover o sustento daquele ser; além das crianças que foram afastadas, ou as que “escaparam” do convívio familiar, barbaramente abandonadas, maltratadas, violadas e violentadas. Em contrapartida, trivialmente, também sempre houve indivíduos que desejam, ou acreditam que desejam, realizar o sonho de serem pais (DIAS, 2016).
Nesta senda, há diversas correntes de pensamento a respeito da origem da perfilhação, fundadas em dados conhecidos no campo das ciências, bem como por relatos mitológicos e históricos. No entanto, somente com a descoberta do Código Babilônico de Hamurabi (lex talionis) - escrito pelo rei Hamurabi entre os anos 1792 e 1750 a.C. na antiga Mesopotâmia - que os primeiros registros de normas reguladoras foram encontrados (BRITANNICA, 2013). Nesse código, o assunto foi retratado em dez leis, dentre elas a Lei nº 185 que preceituava “se um homem adota uma criança e leva seu nome como filho, e o cria, esse filho crescido não pode ser exigido de volta novamente” (KING, 2008).
Desse modo, este instituto, ao longo da história, passou por expressivas evoluções sociais e normativas, e, como elucidado, esta prática certamente existe desde as civilizações mais remotas. Inicialmente, instituída com a finalidade de conceder filhos a quem não poderia tê-los naturalmente, para que o legado da família não se extinguisse. Entretanto, com o tempo, esse sentido sofreu mudanças, passando a significar, na atualidade, a possibilidade de conferir uma família àqueles que não a possuem. Assim, evoluindo de um caráter potestativo para um aspecto assistencialista[5] (MACIEL, 2021).
2.2 Origem da adoção no Brasil: aspectos sociais e legislativos
Os primeiros ancestrais da raça humana, os Sahelanthropus Tchadensis, segundo o naturalista britânico Charles Darwin (1871), existiram há mais de 7 milhões de anos, aparentemente, no continente africano (berço da humanidade). Já o surgimento das primeiras civilizações teria ocorrido há mais de 4 mil anos (a. C). No Brasil, há indícios de seres humanos neste território há mais de 10 mil anos (a.C.), com o desenvolvimento das primeiras aldeias indígenas organizadas por volta do ano 6500, há 5 mil anos (PRIORE; VENANCIO, 2016).
Apesar da colossal cronologia do território brasileiro, nada se sabe a respeito da adoção pelos povos indígenas, apenas que “o ato de expor os filhos foi introduzido no Brasil pelos brancos europeus – o índio não abandonava os próprios filhos” (MARCÍLIO, 1998, p. 12). A iniciativa de acolher crianças abandonadas, originada no período colonial (1500-1822), seguia um sistema de assistência caritativa marcado pelo imediatismo e informalismo, trazido pelos portugueses (PAIVA, 2004).
A sociedade civil prestava assistência aos indivíduos abandonados devido à omissão do Estado e da Igreja, que se limitavam a contribuições financeiras esporádicas. Contudo, essa assistência, muitas vezes não formalizada, era vista como uma oportunidade de mão de obra gratuita, onde este “filho de criação” não ocupava o mesmo lugar que os filhos biológicos, sendo tratado de modo dessemelhante (PAIVA, 2004).
Com base nesse cenário social, após a independência do domínio português, as primeiras normas jurídicas que, brevemente, mencionavam sobre este instituto foi a Lei de 22 de setembro de 1828 (BRASIL, 1828), que extinguiu os Tribunaes das Mesas do Desembargador do Paço e da Consciencia e Ordens, atribuindo a “competência aos Juizes de primeira instancia para conceder cartas de legitimação a filhos illegitimos, e confirmar as adopções” (BRASIL, 1828). Não obstante, o Decreto nº 181, de 24 de janeiro de 1890, estipulava que o parentesco civil poderia ser provado pela carta de adopção (BRASIL, 1890).
Quanto ao contexto social, Leila Dutra Paiva (2004, p. 23) assevera que
Nesta fase, as políticas sociais de assistência a crianças abandonadas eram desempenhadas formalmente pelas câmaras municipais que, autorizadas pelo rei, firmavam convênios com as confrarias das Santas Casas de Misericórdia para colocar em funcionamento as Rodas dos Expostos [...] também conhecidas por Rodas dos Enjeitados, originaram-se na Idade Média e foram utilizadas em muitos países. No Brasil, foram implantadas seguindo os costumes de Portugal, com instalações nas Santas Casas da Misericórdia. Consistiam em um cilindro giratório no qual os bebês eram depositados na parte que dava para a rua. Em seguida, as freiras giravam o instrumento e pegavam o recém-nascido sigilosamente, sem que houvesse a necessidade de identificar sua origem.
Diante disso, no século XIX a incorporação de filhos alheios nas famílias abastadas era uma prática comum, a qual era feita de maneira informal, onde crianças e jovens eram acolhidos, mas permaneciam em situação de vulnerabilidade, pois a estes não eram assegurados direitos. Por outro lado, essas adoções informais podiam ser convertidas em legais por meio das Cartas de Adoção ou Cartas de Perfilhação, onde estes “filhos de criação” tornavam-se filhos adotivos, isto é, herdeiros legítimos (MORENO, 2006).
No início do século XX, com a promulgação da Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916, a qual regulamentou o primeiro Código Civil brasileiro (BRASIL, 1916), já incluindo as alterações realizadas pela Lei nº 3.133, de 8 de maio de 1957, a adoção ganhou relevância jurídica, passando a ter as primeiras regras formais sobre o assunto (PEREIRA, 2015). O tema, abordado nos artigos 368 ao 378, por influência do direito romano, visava apenas os interesses dos adotantes (LOBÔ, 2011).
Na sistemática sancionada, só poderiam adotar os maiores de 30 (trinta) anos, casados há mais de cinco anos, e ser, pelo menos, dezesseis anos mais velho que o adotando. Ninguém poderia ser adotado por duas pessoas, salvo se fossem marido e mulher, e, tratando-se de incapaz ou nascituro, estes não poderiam ser adotados sem o consentimento de representante legal. Cessando a menoridade ou a interdição, por conveniência das partes, ou quando era admitida a deserdação, o adotado automaticamente desligava-se da adoção. O procedimento era realizado por escritura pública, quando não admitida condição em termo. Se o adotante tivesse filhos legitimados ou reconhecidos, o adotado não possuía direito à sucessão hereditária. Somente o pátrio poder era transferido do pai natural para o adotivo, pois os direitos e deveres que resultam do parentesco natural não se extinguiam pela adoção (BRASIL, 1916).
Com o advento da Lei de Assistência e Proteção a Menores, conhecida como Código de Menores, consolidada pelo Decreto nº 17.943-A, de 12 de outubro de 1927, atribuiu-se a “autoridade competente” as medidas de assistência e proteção aos abandonados que tivessem menos de 18 anos de idade. Incumbia à autoridade “depositar” os abandonados em lugar conveniente, providenciando educação e vigilância. Ficava a critério do juiz decidir sobre instauração de procedimento criminal contra o pai, mãe, tutor ou encarregado do menor, por o haver abandonado ou maltratado. Devido à negligência dos pais, poderia ser decretada a suspensão ou a perda do pátrio poder, ou a destituição da tutela (BRASIL, 1927).
Após o Brasil tornar-se signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos[6] (ONU, 1948), por meio da Lei nº 4.655, de 2 de junho de 1965, legitimou-se a adoção tornando-a irrevogável. Apesar do reconhecimento e extensão aos filhos adotivos dos mesmos direitos dos filhos legítimos, a regra aplicada à sucessão hereditária permaneceu a mesma trazida pelo Código Civil de 1916. Contudo, somente haveria plena garantia desses direitos, se o casal adotante optasse por legitimar a adoção (BRASIL, 1965).
Dessa forma, a legitimação de menores abandonados e dos considerados expostos passou a ser permitida, desde que, tivessem até sete anos de idade. Aos demais menores, somente era permitida a legitimação adotiva caso já se achassem sob a guarda dos “legitimantes”. Os requerentes poderiam solicitar o procedimento se fossem casados há mais de cinco anos, onde pelo menos um dos cônjuges deveria ter mais de trinta anos de idade, sem filhos legítimos, legitimados ou naturais reconhecidos. O período mínimo de matrimônio poderia ser dispensado se comprovada a esterilidade de um dos cônjuges, sob a condição de exercício da guarda do menor por um período mínimo de três anos (BRASIL, 1965).
Ademais, de modo excepcional, era permitida a legitimação ao viúvo, ou viúva, com mais de 35 anos de idade, se o menor estivesse integrado em seu lar há mais de cinco anos. Com relação ao cônjuge desquitado, somente se este tivesse iniciado a guarda do menor durante o matrimônio. Em todos os casos, o pedido era deferido pelo Juiz, ouvido o Ministério Público, observadas as conveniências do menor, o seu futuro e bem-estar (BRASIL, 1965).
Durante a vigência do Código de Menores, instituído pela Lei nº 6.697, de 10 de outubro de 1979, introduziu-se assistência, proteção e vigilância a menores em situação irregular, seguindo os moldes da cultura autoritária e patriarcal da época. Nesse período, a adoção simples e a plena[7], juntamente com a delegação do pátrio poder[8], guarda e tutela, eram medidas de colocação em lar substituto. Essas ações, realizadas pela autoridade judiciária, visavam assistência e proteção aos menores em situação irregular (BRASIL, 1979).
Em 5 de outubro de 1988, com a promulgação Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB), direitos e garantias individuais e coletivas passaram a ser normas irrevogáveis e inalteráveis (cláusulas pétreas). Às crianças e adolescentes constituiu-se o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (BRASIL, 1988).
Incumbe à família, à sociedade e ao Estado, o dever de assegurar com absoluta prioridade os direitos conferidos aos indivíduos em desenvolvimento, bem como colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Qualquer discriminação relativa à filiação é absolutamente proibida. Assim, os filhos adotivos passam a ter os mesmos direitos e qualificações dos filhos havidos ou não da relação matrimonial (BRASIL, 1988, Art. 227, §6º).
Considerando que a infância tem direito a cuidados e assistência especial (ONU, 1948), em 20 de novembro de 1989, a Assembleia Geral da ONU adotou a Convenção sobre os Direitos da Criança, documento que foi ratificado por 196 países[9]. O Brasil ratificou o documento em 24 de setembro de 1990, promulgando-o por meio do Decreto nº 99.710, de 21 de novembro de 1990 (BRASIL, 1990b).
Os Estado Partes reconheceram que toda criança tem o direito à vida, devendo ser garantido ao máximo sua sobrevivência, proteção, desenvolvimento e bem-estar. Para tanto, comprometeram-se a assegurar a aplicação dos direitos reconhecidos pela Convenção à todas as crianças, sem realizar qualquer forma de discriminação, priorizando, sempre, o melhor interesse desses indivíduos (ONU, 1948).
Depois deste significativo reconhecimento, a Lei n° 8.069, de 13 de julho de 1990, revogou o Código de Menores de 1979, que se restringia aos menores em situação irregular. Nesse período, os menores de idade eram vistos apenas como “menor” - meros objetos do Estado. Com o advento da doutrina de proteção integral (ECA), esses indivíduos, renomeados como crianças e adolescentes[10], foram reconhecidos como sujeitos de direitos, salvaguardando sua condição peculiar de desenvolvimento, aos quais demanda-se proteção integral e prioritária de todos (BRASIL, 1990a).
Dentre as muitas inovações, a doutrina de proteção integral (ECA) regularizou as entregas voluntárias[11] de menores à adoção. Portanto, a gestante ou mãe que manifeste o interesse de entregar seu filho para adoção, antes ou logo após o nascimento, será encaminhada à Justiça da Infância e da Juventude. Após a entrega, não havendo indicação do genitor e não existindo outro representante da família extensa apto a receber a guarda, a autoridade judiciária competente decretará extinção do poder familiar. Posteriormente, será determinada a colocação da criança sob a guarda provisória de quem estiver habilitado a adotá-la, ou de entidade que desenvolva programa de acolhimento familiar ou institucional (BRASIL, 1990a, Art. 19-A).
A adoção passou a ser uma medida excepcional e irrevogável, que deve ser considerada apenas quando não há mais recursos de manutenção da criança ou adolescente na família natural ou extensa. Os procedimentos inerentes à destituição do poder familiar e, consequentemente, à adoção, ocorrem somente de modo judicial, sendo vedada a adoção por procuração (BRASIL, 1990a, Art. 39). A lei trouxe expressamente a proibição da adoção entre ascendente ou irmãos, porém, tendo em vista o melhor interesse da criança e adolescente, podem haver exceções[12][13].
O pretendente a adotar deve ser maior de 18 (dezoito) anos, independente do estado civil. Na adoção conjunta é indispensável que os adotantes sejam casados civilmente ou mantenham união estável, comprovada a estabilidade da família. Podem adotar conjuntamente os divorciados, os judicialmente separados e os ex-companheiros, contanto que acordem sobre a guarda e o regime de visitas, que o estágio de convivência tenha sido iniciado na constância do período de convivência, e seja comprovada a existência de vínculos de afinidade e afetividade com aquele não detentor da guarda, justificando a excepcionalidade da concessão (BRASIL, 1990a, Art. 42).
Em relação ao Código Civil (CCB) em vigor, instituído pela Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, a Lei somente preconiza que a adoção de crianças e adolescentes será deferida na forma prevista pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, e a adoção de maiores de 18 (dezoito) anos dependerá da assistência efetiva do poder público e de sentença constitutiva (BRASIL, 2002, Art. 1.618 e 1.619).
Diante da evolução legislativa dos direitos das crianças e adolescentes, de acordo com Cristiano Chaves de Farias e Conrado Paulino da Rosa (2022, p. 289),
Nos dias atuais, diferentemente da caridade que se pensava outrora, a adoção está assentada na ideia de se oportunizar a uma pessoa humana a inserção em núcleo familiar, com a sua integração efetiva e plena, de modo a assegurar a sua dignidade, atendendo às suas necessidades de desenvolvimento da personalidade, inclusive pelo prisma psíquico, educacional e afetivo. Cessa a ideia de ser um remédio destinado a dar um filho para quem, biologicamente, não conseguiu procriar. Não se trata de uma solução para a esterilidade ou para a solidão. Por certo, a adoção se apresenta como muito mais do que, simplesmente, suprir uma lacuna deixada pela Biologia.
A adoção possibilita aos indivíduos em situação de abandono e vulnerabilidade, os quais precisaram ser retirados de suas famílias biológicas, os meios necessários para que possam se desenvolver de modo íntegro e saudável, garantindo-lhes o direito à convivência familiar e comunitária.
2.3 Família moderna e filiação
Conhecida como Constituição Cidadã, a Constituição Federal de 1988 instituiu o Estado Democrático de direito, isto é, constituiu um sistema abrangente e inclusivo. Direitos sociais e individuais, a igualdade e a justiça foram reconhecidas como valores supremos para o desenvolvimento de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (BRASIL, 1988).
A família como base da sociedade, dispõe de especial proteção do Estado (BRASIL, 1988). A ideia de família pronta (pai + mãe = filhos) foi afastada e nasceu o conceito de família moderna, que abrange todas as formas de afetividade, ou seja, substituiu-se o aspecto patriarcal por um espaço de respeito mútuo. Essa visão, além de privilegiar a busca da felicidade[14] e realização pessoal de todos os integrantes da célula familiar, contribui para o crescimento coletivo de forma respeitosa e afetuosa (ROSA, 2023).
Partindo dessa premissa, a filiação também mudou suas nuances, reconhecendo as mais diversas formas de filiação. A distinção que, até então, era realizada entre os filhos de naturais-consanguinidade dos filhos civis-adotivos passou a ser proibida, visto que configura designação discriminatória relativa à filiação (BRASIL, 1990a, Art. 4º do ECA; BRASIL, 1988, Art. 227, §6º). O desenvolvimento de técnicas de reprodução assistida ensejou a desbiologização da parentalidade, ou seja, a relação socioafetiva passou a ser mais importante que a relação meramente biológica - princípio da afetividade[15] - ampliando-se o conceito de filiação (DIAS, 2016).
Nessa linha de pensamento, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2017, p. 964) explicam que
A filiação, sintonizada na proteção avançada da pessoa humana e da solidariedade social, ganhou instrumentalização, servindo para os núcleos familiares. Abandonou-se a subordinação da família a uma função procriacional, tão relevante para efeitos econômicos. A filiação passou a ser um momento de realização humana, de plenitude existencial, seja qual for a sua origem. A filiação, enfim, passou a ser única, podendo ser estabelecida por diferentes formas. E a adoção é um dos variados mecanismos de determinação filiatória, baseada no afeto e na dignidade, inserindo o adotando em um novo núcleo familiar.
Ao instituir a supremacia do princípio da igualdade aos vínculos de filiação, afastou-se qualquer tratamento discriminatório e preconceituoso entre os filhos. Consequentemente, os filhos havidos por meio da adoção passaram a ter os mesmos direitos que os filhos naturais, inclusive sucessórios, o que anteriormente não havia. Assim,
A ideia de que a adoção era o mecanismo para conceder um filho a alguém que, biologicamente, não poderia ter foi afastada, prevalecendo a concepção do instituto como mecanismo de colocação em família substituta, consubstanciando o direito à convivência familiar e à proteção integral do adotado (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 965).
Atualmente, o ordenamento jurídico prevê que a adoção é uma medida excepcional, pois crianças e adolescentes possuem o direito de serem criadas e educadas em sua família natural[16]. Contudo, inexistindo condições ideais para que isso aconteça, e depois de esgotados todos os recursos de manutenção em sua família natural ou extensa, o infante fica aguardando em instituições de acolhimento, ou lares temporários, por uma família substituta, que, por sua vez, sendo um ambiente familiar saudável e acolhedor, oportunizará ao adotando melhores condições para o seu integral desenvolvimento e bem-estar (ROSA, 2023).
Esse ato produz vínculos de paternidade/maternidade e filiação, desligando o adotando de seus pais e parentes biológicos, salvo os impedimentos matrimoniais (BRASIL, 1990a, Art. 39, §1?e 41). Ato de amor e vontade que gera vínculos de parentesco por opção, consagrando a paternidade socioafetiva, baseando-se não em fator biológico, mas em fator sociológico. Desse modo, concretiza-se a verdadeira paternidade/maternidade, fundada no desejo de amar e ser amado (DIAS, 2016). Até porque, do ponto de vista psicanalítico, o vínculo de filiação é sempre adotivo, pois os genitores só serão pais e mães se adotarem seus filhos, mesmo sendo biológicos (PEREIRA, 2020).
2.4 Espécies de adoção
É direito constituído às crianças e adolescentes crescer em um ambiente familiar que propicie o íntegro desenvolvimento de seu potencial humano. Para o seu pleno e harmonioso desenvolvimento de sua personalidade, é necessário que cresçam em um ambiente de felicidade, amor e compreensão. Assim, terão as condições necessárias para desenvolver uma vida adulta independente, com espírito de paz, dignidade, tolerância, liberdade, igualdade e solidariedade (BRASIL, 1990b).
Dessa maneira, “a adoção é um dos variados mecanismos de determinação filiatória, baseada no afeto e na dignidade, inserindo o adotando em um novo núcleo familiar” (FARIAS; ROSA, 2022, p. 289). No Brasil, este ato é dividido em algumas espécies - legislativa e jurisprudencial -, dentre elas estão a brasileira, a consentida ou intuitu personae, a de nascituros, de maiores, a homoparental, a internacional, a multiparental, a unilateral, a póstuma, e a tardia.
Na adoção à brasileira, a criança é entregue ilegalmente à outra pessoa, ou família, onde os “pais adotivos” a reconhecem perante o cartório de Registro Civil, como se filho biológico fosse. O reconhecimento voluntário da maternidade/paternidade, por meio do qual não foram cumpridas as exigências legais[17], pertinentes ao procedimento de adoção, constitui ato ilícito[18] (PEREIRA, 2015).
Em contrapartida, Maria Berenice Dias (2016, p. 679-680) explica que
A chamada "adoção à brasileira" também constituiu uma filiação socioafetiva. Registrar filho alheio como próprio configura delito contra o estado de filiação (CP 242), mas nem por isso deixa de produzir efeitos, não podendo gerar irresponsabilidades ou impunidades. Como foi o envolvimento afetivo que gerou a posse do estado de filho, o rompimento da convivência não apaga o vínculo de filiação que não pode ser desconstituído. Assim, se, depois do registro, separam-se os pais, nem por isso desaparece o vínculo de parentalidade. Não há como desconstituir o registro.
Na adoção consentida ou intuitu personae, por sua vez, os pais biológicos manifestam expressamente, perante a autoridade judiciária, o desejo de entregar o filho em adoção à determinada pessoa ou casal, presumindo relação de confiança entre as partes (BRASIL, 1990a, Art. 50, §13[19]). Por não possuir previsão expressa “é medida excepcionalíssima, a ser considerada em casos que está presente o vínculo entre os pretendentes e o infante” (AI nº 70085234896[20]), preservando sempre o melhor interesse da criança e do adolescente (BRASIL, 1990a, Art. 4°).
No Código Civil de 1916, a adoção do nascituro - aquele que ainda não nasceu - era permitida, desde que com o consentimento de seu representante legal (BRASIL, 1916, Art. 372). Porém, no ordenamento jurídico atual não existe previsão expressa deste procedimento. Já a adoção de pessoas maiores de idade é permitida[21] (BRASIL, 2002, Art. 1.619), na condição de achar-se sob a guarda dos requerentes quando completou a maioridade, sendo necessário o seu consentimento (BRASIL, 1990a, Art. 40 e 45), observada a diferença mínima de idade (BRASIL, 1990a, Art. 42, § 3°).
No entanto, considerando que a interpretação do Estatuto da Criança e do Adolescente deve levar em conta os fins sociais a que ela se dirige, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar dos infantes como pessoas em desenvolvimento (BRASIL, 1990a, Art. 6º), a previsão de diferença mínima de 16 anos entre adotante e adotado não é norma de natureza absoluta. Baseando-se nessa concepção, a regra pode ser flexibilizada para que atenda à realidade do caso concreto, possibilitando a adoção em situações que a diferença de idade entre as partes seja menor que a prevista na lei[22].
Por outro lado, a adoção realizada por casais homoafetivos passou a ser reconhecida há pouco tempo no Brasil. Apesar de nunca ter existido proibição expressa, nas decisões dos tribunais havia diversas interpretações, a depender da concepção moral e particular do julgador (PEREIRA, 2015). Após o reconhecimento das famílias homoafetivas pelo Supremo Tribunal Federal[23], por meio do informativo nº 432[24], o Superior Tribunal de Justiça admitiu a possibilidade de adoção homoafetiva, com base no princípio do melhor interesse da criança.
A modalidade de adoção na qual a pessoa ou casal postulante é residente ou domiciliado em país diverso do adotando é denominada de internacional (BRASIL, 1990a, Art. 51). Contudo, somente será realizado o encaminhamento da criança ou adolescente à adoção internacional após verificada a ausência de pretendentes nacionais habilitados com perfil compatível, com o objetivo de evitar o deslocamento do adotando para outro país, priorizando a colocação em família substituta brasileira (BRASIL, 1990a, Art. 48, § 10).
A adoção também pode ser concedida após a morte do adotante, quando demonstrado, em vida, laços de afetividade e o desejo evidente de adotar aquele indivíduo (BRASIL, 1990a, Art. 42, §6º). A adoção póstuma ou post mortem produz efeitos retroativos à data do óbito, efetivando a vontade do adotante de tornar jurídica uma relação fática, quer seja a posse do estado de filho (PEREIRA, 2015).
Com a desbiologização da parentalidade permitiu-se o reconhecimento da construção de laços de afetividade por meio da adoção. Assim, quando o cônjuge ou companheiro forma um vínculo de afetividade (paternidade/maternidade) com o filho(a) do(a) genitor(a) biológico, pode reconhecê-lo legalmente como filho(a). Esta modalidade especial é unilateral, pois permite somente a substituição de um dos genitores (DIAS, 2016).
No entanto, em 2016, foi reconhecida pelo STF a possibilidade da multiparentalidade[25], isto é, duplo vínculo de filiação[26]. Uma vez reconhecida a existência de vínculo de afetividade, é possível constar no registro de nascimento mais de um pai, ou mais de uma mãe, ou seja, mantém-se a filiação biológica e a afetiva no mesmo registo, limitando-se, porém, a dois pais e/ou duas mães (BRASIL, 2017a, Art. 10 e 14 do Provimento nº 63/2017).
Apesar dos inúmeros avanços normativos e sociais, bem como a existência de diversas modalidades de adoção, muitas crianças e adolescentes ainda crescem em instituições de acolhimento, aguardando por uma família.
A cultura da adoção não está presente na sociedade brasileira. O desejo em adotar crianças maiores tem diminuído na mesma proporção em que elas vão crescendo. Ainda existe o pensamento de que crianças maiores já virão com problemas, vícios e maus comportamentos. A incompreensão e o preconceito fazem com que as adoções de crianças maiores, de indivíduos com deficiência[27], ou com alguma doença grave, dificilmente ocorram (MACIEL, 2021).
Nessa percepção, entende-se como tardia a adoção de crianças que já possuem desenvolvimento parcial em relação a sua autonomia e interação com o mundo, ou seja, crianças que já passaram pela primeira infância (PEREIRA, 2015).
Antes da medida mais drástica ser tomada pelo Poder Judiciário, que consiste na retirada da criança e/ou do adolescente do seio de sua família biológica, foram esgotados todos os recursos (ultima ratio) de manutenção de sua permanência na família natural ou extensa, formada por parentes próximos que o infante possua vínculo de afinidade e afetividade (BRASIL, 1990a, Art. 39 c/c art. 25). “Afinal, o direito à convivência familiar não está ligado à origem biológica da filiação”, mas sobre uma relação construída no afeto e no respeito, como explica Maria Berenice Dias (2016, p. 82).
A respeito do tema, Kátia Maciel (2021, p. 239) elucida que
O sustentáculo legal para o afastamento compulsório do poder familiar dos pais (biológicos ou civis) está disciplinado no art. 24 do ECA. Esta norma estatutária prevê que, além do descumprimento dos deveres e obrigações a que alude o art. 22 do ECA, a legislação civil indicará os casos de destituição. Dessa maneira, temos que o inadimplemento injustificado dos deveres inerentes ao poder familiar, poderá acarretar a perda da autoridade parental.
Constatado que o ambiente familiar não é saudável para a integridade física, emocional, cognitiva e/ou social da criança ou adolescente, e não for possível manter o infante junto à sua família natural - por meio de uma decisão judicial - ocorrerá a destituição do poder familiar[28]. É a “sanção mais grave imposta aos pais, só devendo acorrer naqueles casos em que comprovados a falta, omissão ou abuso em relação aos filhos” (PERERIA, 2015, p. 33). Além dessa hipótese, o poder familiar também pode ser extinguido pela morte dos pais ou do filho, pela emancipação, pela maioridade ou pela própria adoção (BRASIL, 2002, Art. 1.635).
Em relação aos procedimentos para a adoção, após o acolhimento institucional o nome do infante será inserido no Cadastro Nacional de Adoção (CNA), ferramenta digital que auxilia os juízes das Varas da Infância e da Juventude nos processos de adoção, automatizando o cruzamento de dados permitindo ser encontrados perfis de crianças e pretendentes que vivem em estados e regiões diferentes[29].
Além do acolhimento institucional, o ECA também prevê o acolhimento familiar - medidas provisórias e excepcionais - como forma de transição para reintegração familiar ou para colocação em família substituta (BRASIL, 1990a, Art. 101). Na percepção de Glaúcia Borges e Ismael Francisco de Souza (2020, p. 107) deve-se ao fato de
Visando evitar a lógica de institucionalização no Brasil, bem como a efetivação dos direitos das crianças e adolescentes, o acolhimento familiar tem sido buscado como forma de proporcionar maior conforto e um lar temporário para crianças e adolescentes que das medidas de proteção necessite. Quando os acolhidos são colocados em um lar prestador de serviços de família acolhedora estão convivendo com membros da sociedade civil, sem animus de constituir família. São lares temporários, cujos vínculos afetivos não devem prosperar a ponto de se identificarem como família substituta, sendo relevante destacarmos que o ECA veda a possibilidade de adoção aos participantes em acolhimento familiar.
A Lei nº 13.509, de 22 de novembro de 2017, conhecida como Lei da Adoção, objetivando estabelecer e proporcionar à criança e ao adolescente vínculos externos à instituição para fins de convivência familiar e comunitária, colaborando com o seu desenvolvimento social, moral, físico, cognitivo, educacional e financeiro, incluiu à Lei nº 8.069, de 1990a o art. 19-B, criando então o programa de apadrinhamento (BRASIL, 2017b).
Podem apadrinhar pessoas físicas e jurídicas. Os padrinhos ou madrinhas devem ser pessoas maiores de 18 (dezoito) anos, e não podem estar inscritos nos cadastros de adoção. O perfil da criança ou do adolescente, a ser apadrinhado, será definido no âmbito de cada programa de apadrinhamento, com prioridade para crianças ou adolescentes com remota possibilidade de reinserção familiar ou colocação em família adotiva (BRASIL, 2017b).
Com base no princípio da celeridade processual (BRASIL, 1988, Artigo 5º, LXXVIII) na busca por uma nova família, o Conselho Nacional de Justiça por meio da Resolução nº 289, de 14 de agosto de 2019, implementou o Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento – SNA (BRASIL, 2019). Essa ferramenta consolida os dados fornecidos pelos Tribunais de Justiça referente aos indivíduos em acolhimento institucional e familiar, as efetivações de adoções, bem como sobre pretendentes nacionais e estrangeiros habilitados à adoção, facilitando a busca por uma família que melhor atenda os interesses do adotando (BRASIL, 1990a).
Sob o prisma do princípio constitucional da prioridade absoluta aplicável às políticas de atendimento à infância e juventude
Sempre deve se ter como norte que a adoção será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos legítimos (artigo 43 ECA). Dessa forma, durante a tramitação do pedido de adoção, impreterivelmente, a criança e adolescente devem ter garantidos uma participação efetiva para que sua vontade e integridade psíquica sejam respeitadas. Por outro lado, durante a habilitação dos pretendentes, os profissionais que laboram nos Juizados da Infância e Juventude devem ter especial atenção com os motivos que levam os pretendentes a se socorrer deste instituto para a consolidação de seu projeto parental (ROSA, 2023, p. 524-525).
Contudo, além do embate das efetivações das adoções tardias, e apesar da adoção ser um ato irrevogável[30] (BRASIL, 1990a, Art. 39, §1º), existem casos em que os adotantes “devolvem” o filho que adotaram, ou seja, “reabandonam” esses indivíduos. Como não é possível obrigar os adotantes a ficar com o infante, a “jurisprudência vem impondo aos adotantes que desistem da adoção o dever de pagar alimentos e indenização por danos morais e materiais aos menores para subsidiar o acompanhamento psicológico de quem teve mais uma perda, até ser novamente adotado[31]” (DIAS, 2017, p. 819-820).
3 ENTRAVES À EFETIVAÇÃO DA ADOÇÃO
3.1 Efetividade e aplicabilidade das normas
As normas regulam a vida em sociedade. Portanto, devem ser cumpridas sob a ótica da finalidade as quais elas se destinam, pois, “não há, numa Constituição, cláusulas, a que se deva atribuir meramente o valor moral de conselhos, avisos ou lições. Todas têm força imperativa de regras, ditadas pela soberania nacional ou popular aos seus órgãos” (BARBOSA, 1933, p. 489).
A Constituição de um Estado está intrinsicamente relacionada a realidade de seu espaço-tempo. Porém, ela não se restringe somente ao contexto social - ela é autônoma -, ou seja, é livre, independente e soberana de si. Para que seus objetivos sejam atingidos, além da eficácia jurídica - aplicabilidade da norma, é necessário que tenha eficácia social - efetividade da norma (BARROSO, 2006).
A respeito do assunto, efetividade, para Luís Roberto Barroso (2006, p. 82-83),
[...] signifìca, portanto, a realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social. Ela representa a materialização dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social.
Além da efetividade, as normas precisam ter eficácia, para serem cumpridas de acordo com o contexto social que elas estão inseridas. Nesse sentido, Maria Helena Diniz (2001, p. 50-51) a define como
A qualidade do texto normativo vigente de poder produzir, ou irradiar, no seio da coletividade, efeitos jurídicos concretos, supondo, portanto, não só a questão de sua condição técnica de aplicação, observância, ou não, pelas pessoas a quem se dirige, mas também de sua adequação em face da realidade social, por ele disciplinada, e aos valores vigentes na sociedade, o que conduziria ao seu sucesso. A eficácia diz respeito, portanto, ao fato de se saber se os destinatários da norma poderão ajustar, ou não, seu comportamento, em maior ou menor grau, às prescrições normativas, ou seja, se poderão cumprir, ou não, os comandos jurídicos, se poderão aplicá-los ou não. Casos há em que o órgão competente emite normas, que por violentarem a consciência coletiva, não são observadas nem aplicadas, só logrando, por isso, ser cumpridas de modo compulsório, a não ser quando caírem em desuso; consequentemente, têm vigência, mas não possuem eficácia (eficácia social).
Tratando-se de normas constitucionais, a Constituição Federal de 1988 traçou como um dos fundamentos principais do Estado Democrático de Direito a dignidade da pessoa humana (BRASIL, 1988, Art. 1º, inciso III). Ainda, como objetivos fundamentais, à construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização, com a redução das desigualdades sociais e regionais, a promoção do bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer formas de discriminação (BRASIL, 1988, Art. 3º).
Além disso, ao reconhecer a condição peculiar de desenvolvimento das crianças e dos adolescentes - aos quais demandam de absoluta prioridade -, garantiu-se que todos os indivíduos que se encaixam nessa condição, sem preconceitos e quaisquer formas de discriminação, o respeito e a observância dos direitos que lhe são conferidos (BRASIL, 1988, Art. 227).
Nesse contexto, o Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei que regulamenta o artigo 227 da Constituição Federal - preconiza que as entidades que desenvolvam programas de acolhimento familiar ou institucional devem realizar a integração em família substituta somente quando esgotados os recursos de manutenção na família natural ou extensa, priorizando a preservação dos vínculos familiares e promoção da reintegração familiar (BRASIL, 1990a, Art. 92).
Porém, tento em vista a efetividade das normas, Pereira (2020) afirma que nem sempre o melhor para a criança é permanecer no núcleo familiar biológico. Assim, a Lei acaba não atingindo a sua finalidade de viabilizar a adoção e assegurar o melhor interesse do infante, eis que ao priorizar a família biológica à afetiva, a evolução do pensamento psicanalítico e antropológico é ignorada. A família é muito mais um fato da cultura que da natureza.
Se por um lado, o ideal seria que a criança ou o adolescente pudesse se desenvolver junto de sua família de origem, por outro, havendo violação de direitos por partes de seus guardiões, prioriza-se a convivência familiar saudável dos infantes; uma família que proporcione os meios necessários para o seu integro desenvolvimento (ROSA, 2023).
3.2 Perfil idealizado: possível inobservância às normas constitucionais
No Brasil, foi somente a partir de 1988 que as crianças e os adolescentes passaram a ser considerados sujeitos de direitos e merecedores de proteção especial[32]. Como consequência, “os pais deixaram de ter direitos e passam a ter deveres para com sua prole, não apenas no tocante às suas necessidades básicas, mas às inerentes ao dever de formar cidadãos aptos a viver em sociedade, de forma a ter preservada sua higidez psíquica” (DIAS, 2017).
Todavia, mesmo diante dos inúmeros avanços a respeito do assunto, a violência, a negligência, o abandono e o desrespeito para com esses indivíduos permanece intrínsico na sociedade brasileira. O número de crianças e adolescentes vítimas de violência e negligência no Brasil não é integralmente contabilizado, pois muitos fatores dificultam a descoberta desses atos lesivos de direitos. Conforme dados nacionais do SNA, atualmente existem 31.860 crianças e adolescentes em situação de acolhimento; em processo de destituição familiar ou destituídas do poder familiar[33].
Depois de várias tentativas de reinsersão do infante em sua famíla natural, junto aos seus guardiões, ou familiares que o infante possui vínculos de afeto, este indivíduo será colocado em uma instituição de acolhimento. Ou seja, constatado que a família biológica não posssui as condições necessárias para prover sua integridade física, psicológica, social e espiritual, serão destituídos do poder familiar (BRASIL, 1990a, Art. 101, §9º).
Por mais que a instituição de acolhimento ou o acolhimento familiar temporário possa ser o melhor para o infante naquele momento, é uma medida excepcional e provisória[34]. O melhor para a criança e adolescente é estar inserido em um ambiente familiar acolhedor, permitindo que seu desenvolvimento ocorra de forma integra e saudável[35]. Mesmo nos casos de adoção irregular ou “à brasileira” - salvo quando há evidente risco à integridade física ou psíquica do menor -, há entendimento pacificado que tais medidas não representam o melhor interesse desses indivíduos[36].
Neste sentido, a “permanência da criança e do adolescente em programa de acolhimento institucional não se prolongará por mais de 18 (dezoito) meses, salvo comprovada necessidade que atenda ao seu superior interesse, devidamente fundamentada pela autoridade judiciária” (BRASIL, 1990a, Art. 19, § 2º). Contudo, as características desejadas pela maioria dos pretendentes não são compatíveis com o perfil das crianças e adolescentes aptos à adoção, o que enseja uma permanência superior à que determina e preconiza a Lei.
Atualmente, no Brasil, há 34.152 pretendentes aguardando na fila da adoção, enquanto 4.375 crianças e adolescentes estão à espera de uma família que lhe de oportunidade de crescer e se desenvolver em um ambiente saudável e acolhedor. Porém, “como é notório, no Brasil, a procura por crianças recém-nascidas ou ainda bebês é a prioridade em se tratando de adoção. Quanto mais o tempo passa, menores as chances de a criança ser adotada, além de maior dificuldade de integração na nova entidade familiar” (ROSA, 2023, p. 203).
Na concretização do desejo de se tornarem pais, por meio da adoção, o(s) pretendente(s) solicitam junto à Vara de Infância de sua Comarca a sua inclusão no Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA). O(s) pretendente(s) preenche(m) uma ficha, onde colocam seus dados, e selecionam qual o perfil da criança ou adolescente que preferem adotar. Dentre as opções, os adotantes podem assinalar quantas crianças deseja adotar, se aceitam adotar irmãos, e o tamanho do grupo, a faixa etária, o sexo, a etnia, e se aceitam adotar crianças ou adolescentes com ou sem deficiência ou doenças.
Nessa premissa, a maioria dos pretendentes não aceitam adotar crianças com deficiência (94,6%), com doença de saúde (61,8%) ou com doença infectocontagiosa (91,9%). Boa parte dos pretendentes preferem crianças até seis anos de idade (64,40%), e menos da metade aceita adotar mais que uma criança (38,1%).
Devido ao perfil restrito e seletivo da maioria dos adotantes, a situação dos adotandos que não se encaixam nesse perfil é grave, muitas vezes, aguardam até completarem a maioridade, momento que precisam deixar a instituição, sem que o direito à convivência familiar fosse assegurado[37]. Quanto mais restrito é o perfil dos pretendentes, mais tempo é a espera na fila para concretizar o desejo de serem pais.
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, sendo inviolável o direito à vida, à liberdade e à igualdade (BRASIL, 1988, Art. 5º, caput), ou seja, todos são sujeitos de direitos. Porém, seu limite implica na observância do direito do outro e nos preceitos legais. Tratando-se de crianças e adolescentes, além dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, por lei ou por outros meios, deve-se assegurar todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade (BRASIL, 1990a, Art. 3º e 4º).
Diante deste cenário, oportunizar que o pretendente escolha as características do indivíduo que deseja adotar, permite o surgimento de um perfil idealizado apoiado em suas expectativas de realização pessoal, sem atentar-se aos direitos dos adotandos. Permitir esta seleção faz surgir a segregação de crianças e adolescentes, pois o adotando que se enquadra nas expectativas do adotante terá oportunidade de ser inserido em família substituta e crescerá acalentado por esse núcleo, mas aquele que não atender às expectativas, crescerá sem o amparo de uma família. Desse modo,
Além de atentar contra a dignidade humana do adotando, a possibilidade de selecionar suas características físicas implica a segunda causa de demora no trâmite da adoção. Consequência que se reflete drasticamente na vida da criança e do adolescente, porquanto os obriga a permanecer muito tempo, ou até mesmo toda sua menoridade, dentro de uma instituição. Crescem sob os cuidados impessoais de uma equipe profissional e sem conhecer aquilo que a Constituição Federal assegura no artigo 227, o direito à convivência familiar (ORSELLI, 2011, p. 5).
Se o objetivo da adoção infanto-juvenil é garantir o direito à convivência familiar, permitir essa “escolha” enseja na revitimização destes indivíduos, ou seja, é permitir a repetição da situação de abandono e negligência[38] (BRASIL, 2017c). Propiciar que os adotantes escolham um perfil de filho que mais lhe agrada, não se mostra compatível aos direitos auferidos à estes indivíduos, bem como aos princípios da dignidade da pessoa humana, da proteção integral e do melhor interesse das crianças e adolescentes.
A tentativa de reinserir crianças e adolescentes em suas famílias naturais, em detrimento da colocação em família substituta, acrescentado da possibilidade de escolha por um perfil idealizado, resulta em empecilhos à efetivação ao direito à convivência familiar de crianças maiores de seis anos de idade, portadoras de doenças infectocontagiosas, com deficiência, pardas e negras, e grupos de irmãos. Como consequência, esses infantes acabam aguardando nas instituições mais tempo que o previsto, resultando na inobservância ao princípio da efetividade das normas.
3.3 Princípio da afetividade e o direito à convivência familiar
A família tem especial proteção do Estado. Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, sendo o planejamento familiar livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito (BRASIL, 1988, Art. 226, §7º).
Com a desbiologização da parentalidade, as relações socioafetivas passaram a ser mais importantes que as relações meramente biológicas (DIAS, 2016). Assim, a família moderna abrange todas as formas de afetividade, substituindo o patriarcado por um espaço de respeito mútuo (ROSA, 2023).
O princípio da afetividade autorizou e sustentou a construção da teoria da parentalidade socioafetiva, permitindo a compreensão de que a família está para muito além dos laços jurídicos e de consanguinidade. O reconhecimento do afeto como categoria jurídica e o posicionamento do ser humano como “valor-fonte”, irradiam efeitos para que a parentalidade deslocasse seu paradigma de um critério eminentemente objetivo, totalitário e servil, à patrimonialidade das relações familiares fundadas na convivência familiar estável e qualificada (DIAS, 2017).
Sobre o princípio da afetividade nas relações parentais, Paulo Lôbo (2008) conceitua como sendo fundamentos essenciais: a igualdade de todos os filhos independentemente da origem; a adoção, como escolha afetiva com igualdade de direitos; a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, incluindo os adotivos, com a mesma dignidade da família; e o direito à convivência familiar como prioridade absoluta da criança, do adolescente e do jovem.
Na adoção o afeto também se faz presente, pois o estabelecimento dessa relação familiar é decorrente de uma opção. O adotante escolhe aceitar o desafio amoroso de construir um vínculo pela escolha, para a comunhão de uma vida, de ideias e de amor. Portanto, negar a paternidade ou a maternidade com base em escolhas meramente físicas, é tratar o ser humano como coisa, como um mero ser vivo. Somente com o acolhimento dos mundos afetivo e ontológico é que o ser passa à condição de humano (DIAS, 2017).
A adoção está assentada na ideia de oportunizar a inserção de um indivíduo em um núcleo familiar, com a sua integração efetiva e plena, de modo a assegurar a sua dignidade, atendendo às suas necessidades de desenvolvimento. Por meio desse ato, propicia-se ao indivíduo privado da sua família o meio mais completo para recriar vínculos afetivos, ao mesmo tempo que é construído um movimento humano ao encontro do outro; um gesto de amor e de solidariedade. Por isso, os motivos que levaram os adotantes a adotar devem ser verdadeiros, sinceros e legítimos. Isso porque é na adoção que os laços de afeto se viabilizam, nutrindo os pais e filhos na base do amor verdadeiro (ROSA, 2023).
Considerando que a adoção deve ser deferida apenas quando apresentar reais vantagens para o adotando, fundando-se em motivos legítimos (BRASIL, 1990a, Art. 43), com base no princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, o cadastro dos adotantes não é regra absoluta[39] (BRASIL, 1990a, Art. 50). Partindo da mesma premissa, oportunizar a escolha de um perfil que melhor agrade aos adotantes, é permitir que os interesses destes (adultos) se sobreponham aos direitos daqueles que demandam de proteção integral da família, da sociedade e do Estado.
Observados os princípios de dignidade da pessoa humana, crianças e adolescentes possuem uma hiperdignificação da sua vida. Além de todos os direitos assegurados aos adultos, elas dispõem de um plus, simbolizado pela completa e indisponível tutela estatal para lhes afirmar a vida digna e próspera - princípio da proteção integral. Por conseguinte, quaisquer obstáculos eventualmente encontrados na legislação ordinária para regrar ou limitar o gozo de bens e direitos deve ser superado (NUCCI, 2014).
Apesar da possibilidade de escolha por um perfil idealizado divergir das normas constitucionais, projetos sociais e políticas públicas, objetivados pela solidariedade social, bem comum, paz e justiça, buscam efetivar a garantia constitucional da convivência familiar e comunitária aos indivíduos que não atendem às expectativas dos adotantes. Ao propiciar visibilidade permite-se aos infantes que, aparentemente, são invisíveis, se tornem protagonistas de suas vidas, auxiliando na quebra de paradigmas - conceito imaginário e ideológico de filho.
Dentre as medidas em execução, além do apadrinhamento e da família acolhedora, destaca-se o Programa em Busca de um Lar, desenvolvido em 2019 pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, que promove a busca ativa e a sensibilização de famílias para a adoção de meninos e meninas cujo perfil costuma ser preterido pelos adotantes, em razão de terem problemas de saúde ou deficiência, idade avançada (acima de 6 anos) ou fazerem parte de grupo de irmãos, expondo a sua imagem para aumentar as chances de efetivar o direito à convivência familiar dessas crianças e adolescentes[40].
Além deste Programa, vale destacar o aplicativo A.DOT[41], desenvolvido em 2018 pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, que possibilita aos pretendentes habilitados conhecer as crianças e adolescentes em condições jurídicas de adoção, mesmo com perfil diferente daquele inicialmente pretendido pela maioria dos futuros pais e mães, fazendo que esses indivíduos não sejam apenas números no Cadastro Nacional de Adoção, deixando de ser invisíveis através de fotos e vídeos.
Essas políticas públicas, bem como os programas privados, desenvolvidos com a finalidade de reduzir as desigualdades decorrentes de discriminações, também conhecidas como ações afirmativas, oportunizam o tratamento isonômico a todos na exata medida de suas desigualdades[42] (NERY JUNIOR, 1999). São formas de suprir a inobservância aos direitos e garantias fundamentais auferidos às crianças e adolescentes, garantindo a visibilidade desses indivíduos.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se os cuidados para com o infante não se mostram adequados, pois ferem seus direitos fundamentais, isso impactará negativamente em sua saúde física, mental e espiritual. Portanto, a esse indivíduo que já sofreu, e ainda sofre, não se pode permitir novamente a negligência. Se a família não possui os meios necessários para garantir os direitos desses seres, cabe ao Estado, juntamente com a sociedade, garantir o direito à convivência familiar saudável a esses indivíduos.
Como visto, a primeira infância é uma parte muito importante na vida da criança. Dessa forma, quando são vítimas de violência, negligência e abandono, seu desenvolvimento físico, social, emocional e cognitivo fica comprometido. O número de crianças vítimas de violência e negligência no Brasil, cometidos por seus pais ou responsáveis não são integralmente contabilizados. Os dados fornecidos pelo SNA são apenas dos casos que chegaram até o judiciário.
Destaca-se que a convivência familiar tem um papel fundamental na construção no pleno desenvolvimento desses indivíduos. Portanto, o interesse a ser resguardado, nos processos de adoção, encontra-se em conferir uma família a crianças e adolescentes vítimas de abandono e maus-tratos.
Assim, é por meio da adoção (ato de amor incondicional, irreversível e absoluto) que se pode romper a trajetória de abandono de uma criança, permitindo que ela, bem como aqueles que a adotaram, construam juntos uma nova história de vida. É a ação que tem o condão de permitir a construção de laços afetivos inabaláveis e profundos entre os envolvidos, além de possibilitar o singular exercício da paternidade e da maternidade para quem acolhe, e de oferecer uma família para quem é adotado.
Devido aos avanços da tecnologia, existem diversas formas propiciar filhos àqueles que não podem concebê-los naturalmente. Assim, o vínculo socioafetivo passou a ser o princípio da família moderna. Logo, o direito à convivência familiar não se baseia em fatores meramente biológicos.
Portanto, propiciar que os adotantes concretizem o sonho de serem pais, por meio da adoção, com base em características biológicas, não corresponde aos direitos inerentes à pessoa humana, com conceito de família moderna (princípio da afetividade), e com os direitos constitucionalmente garantidos às crianças e aos adolescentes, que se encontram em condição peculiar de desenvolvimento. Dessa forma, a família, a sociedade e o Estado, devem assegurar, sem qualquer distinção, todos os direitos que lhe são conferidos.
REFERÊNCIAS
BARBOSA, Ruy. Comentários à Constituição Federal Brasileira. Tomo II, São Paulo: 1933.
BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas. Limites e possibilidades da constituição brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 8ª edição, 2006.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 2 maio 2023.
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[1] Advogada. e-mail: alinemwweber@hotmail.com
[2] Mestre em Direito pela Universidade de Málaga (Espanha). e-mail: gajuco@gmail.com
[3] O Direito é um fenômeno histórico-social sempre sujeito a variações e intercorrências, fluxos e refluxos no espaço e no tempo (REALE, 2002, p. 24).
[4] Termo que remonta ao direito romano: pater potestas - direito absoluto e ilimitado conferido ao chefe da organização familiar sobre a pessoa dos filhos (DIAS, 2016, p. 780).
[5] Os fins clássicos do instituto, dar um filho a quem não podia tê-lo pela forma da natureza foi alterado para o de dar-se uma família para quem não a possui. Passou-se para uma visão assistencialista, protecionista da adoção, onde será buscada uma família para aquela criança ou adolescente que não a possua, a fim de garantir o direito à convivência familiar, assegurado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente em seu art. 19 (MACIEL, p. 352).
[6] Proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (Resolução 217-A III), em 10 de dezembro de 1948 (PARIS, 1948), este documento visa à proteção universal dos direitos humanos, reconhecendo a dignidade e os direitos iguais e inalienáveis a todos membros da família (ONU, 1948).
[7] O Código de Menores (Lei nº 6.679/1979) introduziu no ordenamento jurídico a figura das adoções simples e plena, sendo certo que a simples se tratava de uma nova modalidade, que veio a se somar à adoção prevista no CC/1916, ao passo que a plena veio a substituir a legitimidade adotiva anteriormente prevista na Lei nº 4.655/1965, mantendo-se, apenas em relação à plena, a regra da irrevogabilidade da adoção (art. 37 da Lei nº 6.679/1979). É importante destacar, nesse sentido, que a adoção plena, irrevogável e que provocava a ruptura definitiva dos vínculos com os pais e parentes biológicos, possuía uma série de pressupostos específicos, distintos, inclusive, da adoção realizada na forma dos arts. 368 a 378 do CC/1916 (REsp 1.930.825/GO, 3ª Turma, Rel. Mi. Nancy Andrighi, Jul. 24/08/2021, DJe: 30/08/2021).
[8] A expressão pátrio poder foi superada pela despatriarcalização do Direito de Família, ou seja, pela perda do domínio exercido pela figura paterna no passado. Assim, o termo correto é poder familiar, pois é exercido por ambos os pais (TARTUCE, 2017).
[9] UNICEF. Convenção sobre os Direitos da Criança. Disponível em: <https://www.unicef.org/brazil/convencao-sobre-os-direitos-da-crianca>. Acesso em: 26 de mai. 2023.
[10] Art. 2º Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade. Parágrafo único. Nos casos expressos em lei, aplica-se excepcionalmente este Estatuto às pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade.
[11] A entrega voluntária pela mãe ou gestante de seu filho ou recém-nascido para adoção em procedimento assistido pela Justiça da Infância e da Juventude foi introduzida no ECA, em seu artigo 19-A, pela Lei nº 13.509/17. Contudo, é possível aos genitores exercer o arrependimento no prazo de dez (10) dias, contado da data de prolação da sentença de extinção do poder familiar, a teor do art. 166, § 5º, in fine, do ECA (TJDFT. Acórdão 1651857, 07319712420228070000, Rel. Arnoldo Camanho, 4ª Turma Cível, Julgado em: 9/12/2022, publicado no PJe: 2/1/2023).
[12] É certo que o § 1º do artigo 42 do ECA estabeleceu, como regra, a impossibilidade da adoção dos netos pelos avós, a fim de evitar inversões e confusões (tumulto) nas relações familiares - em decorrência da alteração dos graus de parentesco, bem como a utilização do instituto com finalidade meramente patrimonial. Nada obstante, sem descurar do relevante escopo social da norma proibitiva da chamada adoção avoenga, revela-se cabida sua mitigação excepcional quando: (i) o pretenso adotando seja menor de idade; os avós (pretensos adotantes) exerçam, com exclusividade, as funções de mãe e pai do neto desde o seu nascimento; (iii) a parentalidade socioafetiva tenha sido devidamente atestada por estudo psicossocial; (iv) o adotando reconheça os - adotantes como seus genitores e seu pai (ou sua mãe) como irmão; (v) inexista conflito familiar a respeito da adoção; (vi) não se constate perigo de confusão mental e emocional a ser gerada no adotando; (vii) não se funde a pretensão de adoção em motivos ilegítimos, a exemplo da predominância de interesses econômicos; e (viii) a adoção apresente reais vantagens para o adotando (REsp n. 1.587.477/SC, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 10/3/2020, DJe de 27/8/2020).
[13] O primado da família socioafetiva tem que romper os ainda existentes liames que atrelam o grupo familiar a uma diversidade de gênero e fins reprodutivos, não em um processo de extrusão, mas sim de evolução, onde as novas situações se acomodam ao lado de tantas outras, já existentes, como possibilidades de grupos familiares. O fim expressamente assentado pelo texto legal - colocação do adotando em família estável - foi plenamente cumprido, pois os irmãos, que viveram sob o mesmo teto, até o óbito de um deles, agiam como família que eram, tanto entre si, como para o então infante, e, naquele grupo familiar, o adotado se deparou com relações de afeto, construiu - nos limites de suas possibilidades - seus valores sociais, teve amparo nas horas de necessidade físicas e emocionais, em suma, encontrou naqueles que o adotaram, a referência necessária para crescer, desenvolver-se e inserir-se no grupo social que hoje faz parte (REsp n. 1.217.415/RS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, jul. em 19/6/2012, DJe de 28/6/2012).
[14] A família, objeto do deslocamento do eixo central de seu regramento normativo para o plano constitucional, reclama a reformulação do tratamento jurídico dos vínculos parentais à luz do sobreprincípio da dignidade humana (art. 1.º, III, da CRFB) e da busca da felicidade (STF, RE 898.060/SC, Tribunal Pleno, Rel. Min. Luiz Fux, j. 21.09.2016, publicado no seu Informativo n. 840).
[15] A formação da família moderna não-consanguínea tem sua base na afetividade e nos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade (TJ-SP. APL. 64222620118260286 SP 0006422-26.2011.8.26.0286, Rel. Alcides Leopoldo e Silva Júnior, Jul. 14/08/2012, 1ª Câmara de Direito Privado, Pub. 14/08/2012).
[16] Art. 19 da Lei nº 8.069/1990a. É direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral.
[17] Em situações excepcionais, em observância ao princípio da proteção integral e prioritária da criança e do adolescente previsto na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente, mesmo em hipótese de ocorrência da “adoção à brasileira”, a jurisprudência do STJ consolidou-se no sentido da primazia do acolhimento familiar em detrimento da colação de menor de terna idade em abrigo institucional. A jurisprudência desta eg. Corte Superior também já decidiu que não é do melhor interesse da criança o acolhimento temporário em abrigo, quando não há evidente risco à sua integridade física e psíquica, com a preservação dos laços afetivos eventualmente configurados entre a família substituta e o adotado ilegalmente (HC n. 668.918/MG, relator Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 26/10/2021, DJe de 28/10/2021).
[18] Art. 242 do Decreto-Lei nº 2.848/1940. Dar parto alheio como próprio; registrar como seu o filho de outrem; ocultar recém-nascido ou substituí-lo, suprimindo ou alterando direito inerente ao estado civil: Pena - reclusão, de dois a seis anos.
[19] Art. 50. A autoridade judiciária manterá, em cada comarca ou foro regional, um registro de crianças e adolescentes em condições de serem adotados e outro de pessoas interessadas na adoção. § 13. Somente poderá ser deferida adoção em favor de candidato domiciliado no Brasil não cadastrado previamente nos termos desta Lei quando: I - se tratar de pedido de adoção unilateral; II - for formulada por parente com o qual a criança ou adolescente mantenha vínculos de afinidade e afetividade; III - oriundo o pedido de quem detém a tutela ou guarda legal de criança maior de 3 (três) anos ou adolescente, desde que o lapso de tempo de convivência comprove a fixação de laços de afinidade e afetividade, e não seja constatada a ocorrência de má-fé ou qualquer das situações previstas nos arts. 237 ou 238 desta Lei.
[20] AI nº 70085234896, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Rel. José Antônio Daltoe Cezar, Jul. 12/11/2021.
[21] O direito discutido envolve a defesa de interesse individual e disponível de pessoa maior e plenamente capaz, que não depende do consentimento dos pais ou do representante legal para exercer sua autonomia de vontade. O ordenamento jurídico pátrio autoriza a adoção de maiores pela via judicial quando constituir efetivo benefício para o adotando (art. 1.625 do Código Civil). Estabelecida uma relação jurídica paterno-filial (vínculo afetivo), a adoção de pessoa maior não pode ser refutada sem justa causa pelo pai biológico, em especial quando existente manifestação livre de vontade de quem pretende adotar e de quem pode ser adotado (REsp n. 1.444.747/DF, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 17/3/2015, DJe de 23/3/2015).
[22] A diferença etária mínima de 16 (dezesseis) anos entre adotante e adotado é requisito legal para a adoção (art. 42, § 3º, do ECA), parâmetro legal que pode ser flexibilizado à luz do princípio da socioafetividade. O reconhecimento de relação filial por meio da adoção pressupõe a maturidade emocional para a assunção do poder familiar, a ser avaliada no caso concreto (STJ. REsp n. 1.785.754/RS, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 8/10/2019, DJe de 11/10/2019).
[23]Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132.
[24] É certo que o art. 1º da Lei n. 12.010/2009 e o art. 43 do ECA deixam claro que todas as crianças e adolescentes têm a garantia do direito à convivência familiar e que a adoção fundada em motivos legítimos pode ser deferida somente quando presentes reais vantagens a eles. Anote-se, então, ser imprescindível, na adoção, a prevalência dos interesses dos menores sobre quaisquer outros, até porque se discute o próprio direito de filiação, com consequências que se estendem por toda a vida. Decorre daí que, também no campo da adoção na união homoafetiva, a qual, como realidade fenomênica, o Judiciário não pode desprezar, há que se verificar qual a melhor solução a privilegiar a proteção aos direitos da criança (REsp 889.852/RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 27/4/2010).
[25] A multiparentalidade é instituto criado pela jurisprudência e não previsto expressamente no ordenamento jurídico atual. Foi reconhecida a multiplicidade de vínculos parentais pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 898.060/SC. Em acréscimo, foi também objeto do enunciado nº 09 do IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito da Família), segundo o qual, a multiparentalidade gera efeitos jurídicos. O instituto permite que a filiação biológica e a filiação socioafetiva sejam reconhecidas conjuntamente. Não obstante, para tanto, é necessária a existência de vínculos afetivos concretos formados tanto na relação de filiação biológica quanto na filiação socioafetiva. O instituto visa acomodar juridicamente uma realidade fática já construída, de vínculos multilaterais (TJDF. Acórdão 1199941, 00018984720178070013, Rel. Roberto Freitas Filho, 1ª Turma Cível, data do julgamento: 4/9/2019, publicado no PJe: 18/9/2019).
[26] A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante, baseada na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios (RE 898.060/SC, Rel. Min. Luiz Fux, com repercussão geral, j. 21.09.2016, publicado no Informativo n. 840 do STF).
[27] Art. 2º da Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.
[28] Conceituado como sendo o poder exercido pelos pais em relação aos filhos, dentro da ideia de família democrática, do regime de colaboração familiar e de relações baseadas, sobretudo, no afeto. O instituto está tratado nos arts. 1.630 a 1.638 do CC/2002 (TARTUCE, 2017, p. 296). Havendo a demonstração de que os genitores não reúnem condições para garantir o desenvolvimento sadio dos filhos, não ostentando qualidades mínimas para o desempenho do poder familiar, inexistindo na família extensa pessoa com condições e interesse em exercer a guarda dos infantes, prevalecendo os princípios da proteção integral, da prioridade absoluta e do melhor interesse da criança, correta a sentença de procedência da ação para desconstituir o poder familiar dos demandados (AC 50110421820198210039, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Carlos Eduardo Zietlow Duro, Julgado em: 26.04.2023).
[29] Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/cnj-servico-saiba-como-funciona-o-cadastro-nacional-da-adocao/>. Acesso em: 30 maio 2023.
[30] A interpretação sistemática e teleológica do disposto no § 1º do art. 39 do ECA conduz à conclusão de que a irrevogabilidade da adoção não é regra absoluta, podendo ser afastada sempre que, no caso concreto, verificar-se que a manutenção da medida não apresenta reais vantagens para o adotado, tampouco é apta a satisfazer os princípios da proteção integral e do melhor interesse da criança e do adolescente (REsp 1.892.782/PR, 3ª Turma, DJe 15/04/2021).
[31] Possibilidade de desistência da adoção durante o estágio de convivência, prevista no art. 46, da Lei n.º 8.069/90, que não exime os adotantes de agirem em conformidade com a finalidade social deste direito subjetivo, sob pena de restar configurado o abuso, uma vez que assumiram voluntariamente os riscos e as dificuldades inerentes à adoção. Desistência tardia que causou ao adotando dor, angústia e sentimento de abandono, sobretudo porque já havia construído uma identidade em relação ao casal de adotantes e estava bem adaptado ao ambiente familiar, possuindo a legítima expectativa de que não haveria ruptura da convivência com estes, como reconhecido no acórdão recorrido. Conduta dos adotantes que faz consubstanciado o dano moral indenizável, com respaldo na orientação jurisprudencial desta Corte Superior, que tem reconhecido o direito a indenização nos casos de abandono afetivo. Razoabilidade do montante indenizatório arbitrado em 50 salários mínimos, ante as peculiaridades da causa, que a diferenciam dos casos semelhantes que costumam ser jugados por esta Corte, notadamente em razão de o adolescente ter sido abandonado por ambos os pais socioafetivos (REsp n. 1.981.131/MS, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 8/11/2022, DJe de 16/11/2022).
[32] A Constituição da República de 1988 consagrou a doutrina da proteção integral e prioritária das crianças e dos adolescentes, segundo a qual tais “pessoas em desenvolvimento” devem receber total amparo e proteção das normas jurídicas, da doutrina, jurisprudência, enfim, de todo o sistema jurídico. Em cumprimento ao comando constitucional, sobreveio a Lei 8.069/90 - reconhecida internacionalmente como um dos textos normativos mais avançados do mundo - que adotou a doutrina da proteção integral e prioritária como vetor hermenêutico para aplicação de suas normas jurídicas, a qual, sabidamente, guarda relação com o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, que significa a opção por medidas que, concretamente, venham a preservar sua saúde mental, estrutura emocional e convívio social (REsp n. 1.587.477/SC, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 10/3/2020, DJe de 27/8/2020).
[33] CNJ. Pretendentes Disponíveis x Crianças Disponíveis para Adoção. Disponível em: <https://paineisanalytics.cnj.jus.br/single >. Acesso em: 4 jun. 2023.
[34] Frisa-se, ainda, que a inserção de crianças e adolescentes em famílias substitutivas objetiva atender primordialmente os interesses dos menores (art. 1.625, CC) e não as pretensões dos pais, mesmo que altruísticas, em que pese não raramente egoísticas. Castigar imoderadamente os filhos, humilhá-los e desqualificá-los no seio familiar e publicamente, ameaçá-los com castigos e malefícios diversos, inclusive a “desconstituição” da adoção, o abuso de autoridade, violência psicológica, desamparo emocional e a conferição de tratamento desigual entre os irmãos adotados, e, entre estes e o filho biológico do casal adotante, entre outras práticas vis, são suficientes para ensejar a destituição do poder familiar com fulcro no art. 1.637 c/c art. 1.638, incisos I, II e IV do Código Civil, e art. 18 c/c art. 24 do ECA, na exata medida em que o instituto jurídico da adoção confere aos adotados idêntica condição de filho, com os mesmos direitos e qualificações, segundo regra insculpida na Lei Maior (art. 227, § 7º), art. 1.626 do Código Substantivo Civil e art. 20 do ECA (TJSC, AC n. 2011.020805-7, de Gaspar, Rel. Joel Figueira Júnior, Primeira Câmara de Direito Civil, j. 21/06/2011).
[35] As instituições de acolhimento têm como dever resguardar a incolumidade emocional e física dos seus acolhidos, sejam crianças ou adolescentes, que, por qualquer motivo, tais como abandono ou negligência dos genitores, foram entregues ao Estado para a sua proteção. No entanto, é indispensável registar que esta providência pode influenciar a evolução e o desenvolvimento da própria personalidade de seres humanos tão vulneráveis. Assim, é aconselhável que o abrigamento perdure o mínimo tempo possível e apenas seja adotado quando imprescindível, com o obrigatório acompanhamento estatal, dada a sua importância para a sociedade em geral (STJ. HC n. 564.961/SP, 2020/0055858-0, Terceira Turma, Rel. Min. Villas Bôas Cueva, Jul. 19/05/2020, DJe. 27/05/2020).
[36] STJ - Jurisprudência em tese. Direito da Criança e do Adolescente. Ed. n. 27, 2014.
[37] Com base no Estatuto da Juventude, é oferecendo apoio e moradia em repúblicas aos jovens de 18 a 21 anos, egressos de outros serviços de acolhimento (GOV, 2019).
[38] Art. 2º, da Lei n. 13.431, de 2017. A criança e o adolescente gozam dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhes asseguradas a proteção integral e as oportunidades e facilidades para viver sem violência e preservar sua saúde física e mental e seu desenvolvimento moral, intelectual e social, e gozam de direitos específicos à sua condição de vítima ou testemunha. Parágrafo único. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios desenvolverão políticas integradas e coordenadas que visem a garantir os direitos humanos da criança e do adolescente no âmbito das relações domésticas, familiares e sociais, para resguardá-los de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, abuso, crueldade e opressão.
[39] A disciplina do art. 50 do ECA, ao prever a manutenção dos cadastros de adotantes e adotandos, tanto no âmbito local e estadual quanto em nível nacional, este último regulamentado pela Resolução n. 54/2008 do Conselho Nacional de Justiça, visa conferir maior transparência, efetividade, segurança e celeridade no processo de adoção, assim como obstar a adoção intuitu personae. Contudo, não se pode perder de vista que o registro e classificação de pessoas interessadas em adotar não têm um fim em si mesmos, antes devem servir, precipuamente, ao melhor interesse das crianças e dos adolescentes. Portanto, a ordem cronológica de preferência das pessoas previamente cadastradas para a adoção não tem um caráter absoluto, pois deverá ceder ao princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, razão de ser de todo o sistema de defesa erigido pelo Estatuto, que tem na doutrina da proteção integral sua pedra basilar (HC n. 468.691/SC, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 12/2/2019, DJe de 11/3/2019).
[40] Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/informacoes/infancia-e-juventude/programas-e-projetos/em-busca-de-um-lar-1>. Acesso em: 8 abr. 2023.
[41] Disponível em: <https://adot.org.br/>. Acesso em: 18 abr. 2023.
[42] As políticas estatais baseadas em discriminações positivas serão legítimas quando presentes finalidades razoavelmente proporcionais ao fins visados, devendo conter demonstração empírica de que a neutralidade do ordenamento jurídico produz resultados prejudiciais a determinados grupos de indivíduos, reduzindo-lhes as oportunidades de realização pessoal (viabilidade fática); bem como vantagem jurídica idônea proposta pelo ato normativo para reverter o quadro de exclusão verificado na realidade social, gerando mais consequências positivas do que negativas (viabilidade prática) (MORAES, 2020, p. 124).
Os artigos assinados aqui publicados são inteiramente de responsabilidade de seus autores e não expressam posicionamento institucional do IBDFAM