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Regime de bens e etarismo presumido velado: breve análise da decisão do Supremo Tribunal Federal no ARE 1.309.642
Patricia Novais Calmon*
Vitor Almeida**
Nos últimos anos, as mudanças no campo do direito das famílias foram céleres e incessantes, especialmente a partir do protagonismo dos tribunais superiores pátrios, com a consolidação de entendimentos fundamentais na conformação da legislação infraconstitucional aos ditames de uma renovada ordem constitucional, que irradia valores centrais à sociedade brasileira, tais como a igualdade substancial, a não-discriminação, a solidariedade familiar, todos iluminados pelo princípio fundante da dignidade humana. Não é de hoje que o direito de família codificado apresenta nítidos sinais de insuficiência frente às contemporâneas dinâmicas familiares que pouco (ou nada) lembram a fisionomia patriarcal, sexista, etarista, excludente, enfim, opressora em relação às pessoas não aliançadas com o projeto do casamento heterossexual, indissolúvel e desigual. Decerto, a tarefa do intérprete é complexa, uma vez que muitas são as camadas de discriminação, por vezes veladas e arraigadas, que permeiam a disciplina jurídica do mosaico familiar. É o caso, por exemplo, da possibilidade de formação de múltiplos vínculos parentais, por meio da multiparentalidade (STF, RE n. 898.060/SC) ou, ainda, o reconhecimento jurídico do abandono afetivo em relações entre pais e filhos (STJ, REsp n. 1.159.242/SP)
Sem embargo, o aguardado julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, da repercussão geral reconhecida no Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1.309.642, descortina mais uma histórica decisão dos últimos anos, que altera substancialmente os pilares do hoje plural direito das famílias, na qual se teve a oportunidade de fixar a seguinte tese: “nos casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoa maior de 70 anos, o regime de separação de bens previsto no art. 1.641, II, do Código Civil, pode ser afastado por expressa manifestação de vontade das partes, mediante escritura pública”.
Sem dúvida, está-se diante de decisão relevantíssima e que tentou escapar de uma mera polarização entre o manto constitucional ou sua flagrante inconstitucionalidade. A princípio, parece-nos ter a decisão permanecido no meio do caminho, numa nítida tentativa de equilibrar a autonomia e a proteção da pessoa idosa com mais de 70 anos de idade, que outrora já foi de 60 anos e em passado ainda mais distante em idades desiguais para homens e mulheres. O avanço, como se vê, é jubiloso. A balança escolhida pelo STF, por meio desta decisão, considerou que a previsão contida no artigo 1.641, II, do Código Civil, é constitucional, mas, deu interpretação conforme à Constituição de 1988, sem redução de texto, ao reputar que há facultatividade na sua aplicação, sendo possível o seu afastamento por meio de escritura pública, em instrumento próprio se casamento ou união estável.
Nesse caso, não obstante o artigo 1.641, II, do Código Civil, seja expresso em apontar que “é obrigatório o regime da separação de bens no casamento da pessoa maior de 70 anos”, a interpretação passou a ser, então, que é facultativo, não havendo, permita-se a insistência, a referida obrigatoriedade na aplicação do regime.
Em termos práticos, significa que é facultado à pessoa idosa com mais de 70 anos, em legítimo exercício de sua autonomia, celebrar pactos antenupciais ou contratos de convivência (de acordo com a Súmula 655 do STJ, tal norma também é aplicável às uniões estáveis), mas, no entanto, diante do silêncio dos nubentes ou companheiros, o regime legal supletivo será o da separação (obrigatória) de bens, em aplicação ao que consta no artigo 1.641, II, do Código Civil.
O caráter histórico da decisão desnuda duas perspectivas distintas. Em primeira e superficial análise, revela avanço inegável em superação ao odioso regime da separação obrigatória para pessoas maiores de 70 anos, em claro descompasso com o processo contínuo e crescente do envelhecimento populacional, bem como com uma ordem jurídica voltada à promoção da liberdade existencial na legalidade constitucional. Em segundo lugar, um exame mais detido da decisão descortina que a discriminação é silenciosa e mesmo diante de conquistas civilizatórias e em movimento contramajoritário do Poder Judiciário, ela lá permanece, à espreita, com silhueta de etarismo às avessas.
É de se espantar que, sob ângulo técnico, um regime obrigatório possa, por vontade das partes, ser afastado, estremecendo a própria essência de sua existência, tornando-se facultativo obrigatoriamente. Força-nos a refletir, ainda, porque permanece a presunção (discriminatória) de casamentos argentários para pessoas acima de 70 anos e blindagem de uma herança sequer existente. Além disso, em matéria de educação e acesso de direitos, pergunta-se a quem a norma se dirige e qual o seu alcance, eis que ao mirar no alvo de antidiscriminação etarista, pode ter incorrido em preconceito elitista.
Em certa mirada, entrevê-se uma tentativa de se buscar um equilíbrio entre a autonomia e a proteção (paternalista, é verdade), pois se a pessoa nada estipular por escritura pública, a própria lei substituiria a vontade das pessoas idosas de maneira automática. Nessa linha, a consequência principal da decisão em análise consiste na sujeição das pessoas com mais de 70 anos ao regime da separação (obrigatória) de bens, ao contrário de todas as demais pessoas que, ao se enlaçarem formal ou informalmente, se não escolhem um outro regime de bens, se submeterão ao supletivo regime de comunhão parcial de bens (art. 1640, CC). Cabe refletir se há discrímen razoável na inevitável distinção gerada a partir da decisão da Corte Constitucional, que acabou por criar regimes supletivos diferentes para pessoas abaixo e acima de 70 anos, em diferenciação que sequer foi cogitada pelo legislador e conversão de um regime de natureza obrigatória em feição facultativa.
Tem sido áspero o movimento em prol da promoção da autonomia das pessoas idosas, podada pelas representações sociais estereotipadas e obsoletas, mas também restringida por normas legais, como o dispositivo central da atual discussão. Versões sociais antigas, mas sempre às espreitas em uma sociedade pendular – de avanços e recuos -, ainda resistem em perspectivas que conduzem à ultrapassada ideia de invalidade e de inutilidade das pessoas idosas. Vale sempre sublinhar que velhice não é sinônimo de incapacidade civil. A aspereza dessa trajetória talvez encontre seu pavimento mais iluminado nesta decisão do STF, que, ao olhar de uma fresta, admite a escolha do regime de bens que melhor convier aos pares afetivos com mais de 70 anos, que, a um só tempo, consagra a liberdade individual, sobretudo no tráfego patrimonial, o direito ao envelhecimento ativo e saudável e, por fim, o princípio da livre estipulação do regime de bens, todos em sintonia com os valores constitucionais. Mas seja como for, a decisão perpetua distinções simplesmente por fatores etários, com aplicação de regimes supletivos distintos entre pessoas idosas e não idosas.
É de se dizer que, como não houve declaração de inconstitucionalidade, permanece a existência de dois regimes de separação de bens, não tendo a decisão ora em análise extirpado o regramento específico atinente ao regime de separação obrigatória de bens. Além de não ter ceifado tal regime, também não o equiparou ao regime de separação convencional. Por isso, permanecem as distinções entre as duas espécies de regime de bens, com seus peculiares efeitos, o que não impede as inescapáveis adaptações interpretativas e, talvez até mesmo de nomenclatura, pois se antes chamado regime de “separação obrigatória de bens”, agora sua alcunha melhor encaixa numa espécie de “regime de separação de bens supletivo”.
Aliás, a permanência do artigo 1.641 do Código Civil de forma estruturalmente hígida, porém funcionalmente modificada, impõe, em primeira reflexão, afirmar que, preambularmente, nenhuma alteração incorre em relação aos aspectos sucessórios, pois ainda vigente a disciplina jurídica que exclui o cônjuge ou companheiro da concorrência sucessória (art. 1.829, I, CC). Nessa senda, parece que os entendimentos já consolidados nos tribunais superiores seguem inalterados, em uma primeira análise.
Em um ordenamento jurídico que deve pressupor unidade e coerência, mais uma incoerência se revela, na medida em que o Superior Tribunal de Justiça já entendeu que, no casamento ou na união estável regidos pelo regime da separação obrigatória de bens, é possível que os nubentes/companheiros, em exercício da autonomia privada, estipulando o que melhor lhes aprouver em relação aos bens futuros, pactuem cláusula mais protetiva ao regime legal, com o afastamento da Súmula n. 377 do STF, impedindo a comunhão dos aquestos (REsp 1.922.347-PR). Como se vê, é difícil explicar a tentativa de correção das distorções interpretativas que, em efeito cascata, seguem os tribunais. Nessa linha, com ainda mais evidência, a partir da decisão do STF, no ARE 1.309.642, nada obsta, pelo contrário, a celebração de pactos antenupciais nos quais haja a expressa opção pelo regime de separação convencional de bens e afastamento dos efeitos da Súmula 377 do STF, o que, em plano panorâmico, permitiria compreender que, ao final, hoje seria cabível que pessoas acima de 70 anos pudessem escolher expressamente o regime da separação convencional de bens, afastando a própria disciplina do agora melhor denominado regime de separação de bens supletivo.
Vale observar que a decisão, de forma salutar, modulou os efeitos para o futuro, prestigiando a segurança jurídica e resguardando o patrimônio anteriormente amealhado.
O STF também vislumbrou a possibilidade de alteração de regime de bens por pessoas que constituíram suas uniões formais ou informais sob o crivo do regime de separação obrigatória de bens, consoante interpretação anterior que impunha, efetivamente, a obrigatoriedade na incidência deste regime. Nesse caso, todos os requisitos previstos em lei deverão ser observados, consoante previsão do artigo 1.639, § 2º, do Código Civil (“é admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros”). Nesse ponto, por óbvio, nem de longe poderá se questionar que, dentro dos referidos “direitos de terceiros”, estariam incluídos os pretensos interesses dos potenciais herdeiros daquele que optou pela alteração do seu regime de bens, em razão da expressa vedação legal (art. 426, CC). Permanece, no entanto, mais uma restrição desarrazoada: as pessoas idosas casadas sob o manto do regime anterior que manifestarem o desejo de alteração do regime serão obrigatoriamente submetidas a processo judicial com forte intervenção estatal, o que reforça o demasiado ônus imposto às pessoas idosas.
A decisão é histórica na medida em que revela um passo importante em prol da garantia da autonomia das pessoas idosas no ambiente afetivo, mas igualmente descortina que o etarismo é estrutural e insidioso. Primeiro, a norma em si não declarada inconstitucional, embora nitidamente violadora do princípio do melhor interesse (art. 230, CF/88), da autonomia, da igualdade material, da não-discriminação e da própria dignidade humana, bússolas valorativas de todo ordenamento, por si só revela que um traço de paternalismo foi preservado.
Nesse cenário, permanece discriminatória a compreensão de que, no silêncio das pessoas idosas, o regime obrigatório revigorado decorativamente de forma supletiva ainda mantém silenciosas, sobretudo, as pessoas idosas mais acentuadamente vulneráveis, que, na escassez de direitos, continuarão alijadas da sua liberdade moldada para fins afetivos.
* Advogada. Mestre em Direito Processual pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Autora de livros jurídicos. Professora em diversas instituições nacionais. Palestrante. Presidente da Comissão do Idoso do IBDFAM-ES (Instituto Brasileiro de Direito de Família). Membro do Grupo de Pesquisa e o Observatório de Jurisprudência “Labirinto da Codificação do Direito Processual Civil Internacional”, da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Membro da Comissão Especial de Direito de Família e Sucessões da OAB-ES. Vice-Presidente da Comissão da Pessoa Idosa da OAB-ES (2023). Membro da International Society Of Family Law.
** Doutor e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor Adjunto do Departamento de Direito Civil da UERJ. Professor do Departamento de Direito da PUC-Rio. Professor Colaborador e Coordenador Adjunto do Instituto de Direito da PUC-Rio. Coordenador Assistente do Mestrado Profissional em Direito Civil Contemporâneo e Prática Jurídica da PUC-Rio. Associado do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCIVIL), do Instituto Brasileiro de Estudos em Responsabilidade Civil (IBERC) e Instituto Brasileiro de Direito das Famílias (IBDFAM). Advogado.
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