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A multiconjugalidade é incentivada pela justiça
Uma realidade que sempre existiu, em todos os tempos e em todos os lugares do mundo: homens mantêm simultaneamente mais de um vínculo familiar.
Apesar disso, a família é – e continua sendo – a base da sociedade.
Mas qual família merece a especial proteção do Estado?
Em um primeiro momento, para garantir que o patrimônio familiar fosse transferido aos seus descendentes "legítimos", glorificou-se a virgindade feminina como um atributo de sua honra. Tanto que o marido podia pedir a anulação do casamento se descobrisse que a esposa não era virgem ao se casar. E mais, ele tinha o direito de matá-la em caso de traição, sob o fundamento de ter agido em legítima defesa da honra.
Cabe lembrar que, além de indissolúvel, o casamento subtraía da mulher sua capacidade plena. Afinal, ela tinha o dever de obediência ao marido, que era o chefe da sociedade conjugal e o cabeça do casal.
Claro que, de lá para cá, muita coisa mudou, pois o conceito de família se esgarçou, enlaçando estruturas de convívio outras. O divórcio se transformou em um direito potestativo e a violência doméstica passou a ser severamente reprimida.
Contudo, exemplos de submissão impostos às mulheres, até hoje, não faltam. Basta atentar à sua participação rarefeita nas estruturas do poder, à desigualdade salarial no desempenho das mesmas funções, à desvalia das atividades de cuidado, historicamente desempenhadas por elas.
O que não mudou é a tendência de os homens manterem multiconjugalidades: famílias simultâneas ou poliafetivas.
Ou seja, o homem tem uma família. E, apesar de cometer adultério, descumprir o dever de fidelidade, ao constituir outra entidade familiar, não lhe é atribuída nenhuma responsabilidade. É absolvido. Condenada é sempre a mulher.
E qual das famílias será condenada à invisibilidade? A mais recente? A que não está formalizada pelo casamento? Qual o critério a ser adotado? Qual das mulheres e respectivos filhos devem ser punidos?
Trata-se de uma lógica absurda que afronta todo o sistema que baliza a sociedade. As leis são pautas de conduta, impondo sanções a quem as descumpre. Quem comete homicídio vai para a prisão. Quem causa dano a outrem é obrigado a indenizar.
E por que aquele que mantém duas famílias simultâneas é favorecido?
Alguém dúvida de que tal escolha é fruto do machismo estrutural, fruto de um fundamentalismo que vem-se alastrando de uma forma assustadora?
E como as coisas chegaram aonde chegaram?
Ora, o Legislativo é preponderantemente composto por homens. As Cortes Superiores do Judiciário também.
Claro que existe um certo corporativismo! Ao não serem reconhecidas como entidades familiares as estruturas de convívio que atendam a todos os requisitos legais, o grande beneficiado é o homem.
Daí cabe questionar. Esta realidade, que muitas vezes conta com a concordância de todos os envolvidos, como afeta a sociedade? Será que compromete a estrutura do Estado? Afronta o preceito monogâmico? Prejudica alguém?
Como todas as respostas necessariamente são negativas, por que este repúdio social, esta injustificável omissão legal, esta cegueira da justiça em atribuir deveres ao homem e negar direitos à mulher que integra uma destas estruturas de convívio?
A justiça não é, e nem pode ser cega. É preciso arrostar a vida como ela é e encontrar respostas que imponham a todos a responsabilidade ética pelas próprias escolhas.
Maria Berenice Dias
Advogada especialista em Direito das Famílias
Vice-Presidente Nacional do IBDFAM
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