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ORDEM PÚBLICA INTERNACIONAL E O CASO CHEMOUNI: o tunisiano polígamo que não queria pagar a pensão alimentícia para uma das ex-esposas
ORDEM PÚBLICA INTERNACIONAL E O CASO CHEMOUNI: o tunisiano polígamo que não queria pagar a pensão alimentícia para uma das ex-esposas
Carlos E. Elias de Oliveira1
Hoje, cuidaremos de um caso clássico de adaptação stricto sensu: o caso Chemouni. Ele foi apreciado pelo Judiciário francês nos idos das décadas de 1950 e 1960[1].
Chemouni era um tunisiano israelita. Era polígamo e veio a adquirir a nacionalidade francesa por ter-se estabelecido na França. Casara-se com duas esposas concomitantemente na Tunísia. Após chegar à França, separou-se de sua segunda esposa, a qual recorreu a Cour de Cassation em busca da condenação do marido a lhe pagar alimentos. Sua esposa também era tunisiana israelita.
Nesse caso, contrapõe-se, de um lado, a lei francesa (que proíbe a poligamia) e, de outro lado, a lei da Tunísia (que admite a poligamia).
À luz das normas de conflito tradicionais – fornecidas pela lex fori (direito francês) –, deveria ser aplicada a lei francesa por ser a lei nacional comum dos cônjuges. Por consequência, o segundo casamento seria nulo.
A corte francesa, porém, para evitar esse resultado inadmissível, valeu-se da técnica de adaptação stricto sensu para aplicar a lei ao tempo da celebração do casamento, ou seja, a lei tunisiana.
Esse caso merece destaque por se tratar de hipótese em que a técnica da adequação stricto sensu para alterar as regras de conflitos de lei no espaço no lugar de alterar o próprio conteúdo da norma. A adaptação stricto sensu, portanto, corrigiu o resultado inadmissível criando uma nova regra conflitual, sem intervir no conteúdo das leis em conflitos.
Ainda em relação ao caso Chemouni, há outros autores que fazem leitura diversa da fundamentação do julgado francês. Há quem sustente que, na verdade, não houve adaptação, mas apenas delimitação espaciotemporal das normas: a lei tunisiana aplica-se à validade do casamento por este ter ocorrido antes da naturalização francesa de Chemouni, ao passo que a lei francesa aplica-se aos efeitos do casamento (como o dever de alimentos) após a naturalização[2].
Foi com base nessa concepção hospitaleira de ordem pública que o Tribunal de Versalhes entendeu que proteger a segunda esposa de Chemouni com o direito aos alimentos não violaria a ordem pública francesa. Esta rejeita casamento polígamos celebrados na França. Não rejeita, porém, casamentos polígamos celebrados legitimamente à luz da lei doméstica da época nem deixa desprotegidos os cônjuges cujo estatuto pessoal mude para o francês. Essa situação de mudança de estatuto pessoal (uma hipótese de conflito móvel de normas), do tunisiano para o francês, deve ser feita sem prejudicar as legítimas expectativas dos envolvidos.
Há ainda quem tenha enfrentado esse caso sob a ótica da ordem pública internacional. Sabe-se que normas estrangeiras não podem ser admitidas em um país em contrariedade à ordem pública doméstica. O conceito de ordem pública, porém, precisa ser visto com maior flexibilidade, sob uma ótica internacionalista, destinada a não contrariar legítimas expectativas de sujeitos envolvidos em situações jurídicas transnacionais. No caso Chemouni, o Tribunal de Versalhes (que apreciou o caso antes da Cours de cassation) sublinhou essa noção mais universalista, aberta e tolerante de ordem pública para evitar que resultados agressivos contra a justiça e a equidade.
Antonio Marques dos Santos manifesta-se favoravelmente a essa ideia, rotulando-a como um efeito atenuado da ordem pública internacional[3]. Com base nas palavras do Procurador da República adjunto Flamant que atuou perante o Tribunal de Versalhes, deve-se defender “uma ordem pública que une as nações em vez de opô-las”, “que não varia de uma fronteira para outra”[4].
O conceito de ordem pública precisa ser mais tolerante com situações jurídicas que nasceram legitimamente no exterior e que, por razões de transnacionalidade, reivindicam agora efeitos com base na lei doméstica.
No caso acima, o casamento polígamo nasceu legitimamente, mas, por conta da mudança de estatuto pessoal, a segunda esposa reivindica, com base na lei francesa, um efeito do casamento: o dever de pagar alimentos. O conceito de ordem pública não pode ser empregado contra essa situação.
Diferente seria a solução se o casamento polígamo tivesse nascido ilegitimamente, como se tivesse sido celebrado na França, cuja lei o censura. Nesse caso, o conceito de ordem pública poderia ser um obstáculo aos efeitos desse casamento nulo.
Portanto, o conceito de ordem pública é mais flexível e universal quando lida com situações transnacionais nascidas legitimamente no exterior relativamente ao conceito de ordem pública para situações jurídicas nascidas contrariando a legislação aplicável.
Cuida-se de um problema interessantíssimo de Direito de Família em situações de transnacionalidade.
Enfim, o caso em pauta é interessantíssimo por despertar discussão sobre a flexibilização da ordem pública para a recepção de situações jurídicas transnacionais.
Também enseja debates sobre conflito móvel[5]. O “conflito móvel” é o conflito de normas no Direito Internacional Privado em razão da mudança, no tempo ou no espaço, do elemento de conexão relativamente a uma situação jurídica. Essa mudança pode ocorrer em razão da superveniência de mudança legislativa (as regras de conexão mudam por mudança legislativa) ou de mudança fática (ex.: mudança de domicílio para outro país, transporte da coisa para outro país, mudança de nacionalidade etc.).
Assim, uma situação jurídica transnacional ficará potencialmente sujeita a dois ordenamentos jurídicos no tempo, gerando ao jurista o conflito em definir se se deve aplicar o direito antigo (de um país) ou direito novo (do outro país)[6].
O caso Chemouni é um exemplo de conflito móvel por envolver situação de mudança do elemento de conexão em razão da mudança de domicílio e de nacionalidade.
[1] Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Advogado, Parecerista, Árbitro, ex-Advogado da União e ex-assessor de ministro STJ. Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Professor de Direito Civil, Notarial e de Registros Públicos em diversas instituições. Membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual-IBDCONT. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFam. Membro da Comissão de Juristas responsáveis pela Revisão e Atualização do Código Civil (Senado Federal/2023). Instagram: @profcarloselias. E-mail: carloseliasdeoliveira@yahoo.com.br.
Já tivemos a oportunidade de tratar de adaptação de direito estrangeiro e, outras ocasiões. Confira-se este artigo:https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-direito-privado-estrangeiro/397629/adaptacao-lato-sensu-de-direitos-estrangeiros--parte-vi.
[1] Ut FERRER CORREIA, Antonio. Considerações sorbe o método do direito internacional privado. In: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J. J. Teixeira Ribeiro (Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, número especial). Coimbra/Portugal, 1983, p. 31. MARQUES DOS SANTOS, António. Breves considerações sobre a adaptação em direito internacional privado. In: Estudos em Memória do Professor Doutor Paulo Cunha. Lisboa/Portugal: Faculdade de Direito de Lisboa, 1989, pp. 561-570. O caso percorreu diferentes instâncias da justiça francesa 1955 e 1963.
[2] MARQUES DOS SANTOS, António. Breves considerações sobre a adaptação em direito internacional privado. In: Estudos em Memória do Professor Doutor Paulo Cunha. Lisboa/Portugal: Faculdade de Direito de Lisboa, 1989, p. 567.
[3] MARQUES DOS SANTOS, António. Breves considerações sobre a adaptação em direito internacional privado. In: Estudos em Memória do Professor Doutor Paulo Cunha. Lisboa/Portugal: Faculdade de Direito de Lisboa, 1989, p. 562.
[4] MARQUES DOS SANTOS, António. Breves considerações sobre a adaptação em direito internacional privado. In: Estudos em Memória do Professor Doutor Paulo Cunha. Lisboa/Portugal: Faculdade de Direito de Lisboa, 1989, p. 563.
[5] Embora o conflito móvel geralmente gere problemas de transposição (uma outra espécie de adaptação lato sensu), pode também atrair a aplicação da adaptação stricto sensu.
[6] Felipe Rocha dos Santos lembra que, nesses casos de conflitos móveis, a doutrina divide-se em três posições: (1) a aplicação da teoria dos direitos adquiridos; (2) a aplicação da teoria do direito transitório; e (3) a aplicação contextual e valorativa da norma do Direito Internacional Privado com olhos na sua principiologia e nos seus objetivos (SANTOS, Felipe Rocha dos Santos. A problemática do conflito móvel no Direito Internacional Privado. Publicado em 2008 (Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/34129. Acesso em 4 de abril de 2022).
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