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A deserdação do ascendente pelo descendente em caso de abandono afetivo
The disinheritation of the ascendant by the descendant in case of affective abandonment
Caroline Dias Rodrigues[1]
RESUMO: O presente artigo possui como propósito demonstrar a necessidade de se possibilitar a deserdação do ascendente pelo descendente, em caso de abandono afetivo, em função da importância de observância do princípio da afetividade. O fenômeno da constitucionalização do Direito Civil acarretou a exigência de se analisar e aplicar o Direito Civil, com foco principalmente nos princípios e direitos fundamentais da Constituição da República. Nesse sentido, os princípios auferiram maior relevância no âmbito jurídico. A afetividade se trata de um princípio do Direito de Família, aplicável à seara do Direito das Sucessões. Para o campo do Direito, ela importa no aspecto das ações que devem nortear as relações de família. Até o presente momento, não há a possibilidade de deserdar um herdeiro necessário por abandono afetivo, em razão da taxatividade das hipóteses legais. Demonstrar-se-á que essa taxatividade das causas desse tipo de exclusão se mostra descabida e incoerente, de modo que uma reforma do instituto é fundamental.
PALAVRAS-CHAVE: Deserdação. Exclusão Sucessória por Abandono Afetivo. Direito Sucessório. Princípio da Afetividade.
ABSTRACT: The purpose of this article is to demonstrate the need to enable the disinheritance of the ascendant by the descendant, in the case of emotional abandonment, due to the importance of observing the principle of affection. The phenomenon of constitutionalization of Civil Law resulted in the requirement to analyze and apply Civil Law, focusing mainly on the fundamental principles and rights of the Constitution of the Republic. In this sense, the principles gained greater relevance in the legal sphere. Affection is a principle of Family Law, applicable to the area of Succession Law. For the field of Law, it matters in the aspect of actions that should guide family relationships. To date, there is no possibility of disinheriting a necessary heir due to emotional abandonment, due to the limited nature of the legal hypotheses. It will be demonstrated that this definition of the causes of this type of exclusion is unreasonable and incoherent, so that a reform of the institute is essential.
KEYWORDS: Disinheritance. Succession Exclusion due to Affective Abandonment. Inheritance Law. Principle of Affectivity.
1 INTRODUÇÃO
O Direito Sucessório se apresenta como um importante ramo do Direito Civil, que regula a transmissão da herança. Nesse contexto, pode-se dizer que ele possui como condão a preservação do patrimônio da família, por meio da transferência de bens a membros.
Existe uma presunção legal de que o titular do patrimônio possui o interesse em mantê-lo na esfera de sua parentela. Ocorre que, em determinados casos, a vontade do autor da herança é a de não deixá-la a certos herdeiros, em razão de comportamentos injustos praticados contra ele, em vida. Nesse contexto, o legislador criou os institutos da Indignidade e da Deserdação, mecanismos que impossibilitam o direito de herdar.
A deserdação ocorre quando o titular dos bens, por meio de testamento, exclui um herdeiro necessário da transmissão de seu patrimônio. As causas que permitem essa disposição de vontade se encontram nos artigos 1962 e 1963, do Código Civil. Além disso, ela também é cabível nos casos, que possibilitam a declaração de indignidade, elencados no artigo 1814 do mesmo diploma legal. Cabe destacar que, em ambas as formas de exclusão sucessória, há a taxatividade quanto ao rol de motivos.
O artigo 1963, do Código Civil, menciona as hipóteses de deserdação do ascendente pelo descendente. Como se trata de rol exaustivo, não há a possibilidade de o testador deserdar por motivo que não conste no dispositivo.
Demonstrar-se-á que essa taxatividade não se mostra adequada, já que a sociedade mudou e, por conseguinte, surgiram outras causas graves, que também ensejam a privação da herança, a exemplo do abandono afetivo.
Um genitor que nunca prestou qualquer tipo de assistência ao filho viola não só o princípio da afetividade como também o princípio da solidariedade familiar. Nesse contexto, não é razoável permitir que, mesmo diante dessa conduta grave, ele tenha o direito de herdar a herança do filho.
Desse modo, o presente trabalho possui como objetivo demonstrar a necessidade de inclusão da deserdação do ascendente pelo descente, em caso de abandono afetivo, porque não há, na legislação civil, menção que endosse essa hipótese.
A fim de esclarecer a importância dessa inclusão, no estudo, serão desenvolvidos tópicos, que possibilitarão um raciocínio fundamentado, que acarretará uma maior compreensão acerca da temática.
Nesse sentido, o primeiro ponto a ser abordado versará sobre a despatrimonialização do Direito Civil brasileiro. Trata-se de assunto relevante para o trabalho, na medida em que se faz necessário entender que houve uma ruptura do viés apenas patrimonial, de forma a se privilegiar pessoa.
Como o trabalho aborda a temática abandono afetivo, desenvolver-se-á um tópico acerca da noção da afetividade na esfera jurídica. É preciso entender que ela não contempla apenas o caráter sentimental, mas também uma obrigação de assistência mútua entre os entes familiares, por meio de ações.
Outro aspecto fundamental a ser tratado se refere ao princípio da solidariedade familiar, uma das bases nas relações de família. Nessa perspectiva, o trabalho demonstrará a sua importância, principalmente, no contexto da relação entre ascendentes e descendentes.
Além disso, analisar-se-á como ocorrem os institutos da sucessão testamentária e da sucessão legítima, com maior explanação do primeiro. Serão, ainda, indicados os pressupostos da Deserdação.
Por fim, o presente artigo científico versará sobre o abandono afetivo como causa de deserdação.
2 DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO/ DESPATRIMONIALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL BRASILEIRO
O fenômeno da constitucionalização do Direito Civil ensejou profundas modificações no que tange ao Direito Civil brasileiro, na medida em que os valores fundamentais previstos na Constituição Federal passaram a servir de base para esse importante ramo do Direito (SCHAREIDER; KONDER, 2016).
Schareider e Konder (2016, p. 1) assinalam que: “o direito civil constitucional pode ser definido como a corrente metodológica que defende a necessidade de permanente releitura do direito civil à luz da Constituição. ”
Caio Mário da Silva Pereira assinala que o direito civil constitucional consiste em um Direito Civil cuja interpretação e aplicação se baseiam na Constituição, principalmente, em seus princípios e direitos fundamentais (PEREIRA, 2022).
Isso sugere que, ao analisar o Direito Civil, para sua aplicação a um caso concreto, deve-se atentar quanto aos ditames constitucionais, especialmente, quanto aos princípios e garantias fundamentais, previstos na Lei Maior. Isto é, o Código Civil não pode ser examinado, de forma isolada, já que os princípios que fundamentam a Constituição da Federal demandam sempre observação.
Nessa perspectiva, Tepedino e Oliva (2023) assinalam que o direito civil constitucional compreende a necessidade de constante integração entre o Código Civil e a Constituição da República.
A constitucionalização do Direito Civil, conforme Schareider e Konder (2016), teve início na Europa, com o fim da Segunda Guerra Mundial, momento em que muitos Estados criaram Constituições com o condão de assegurar direitos, como democracia, solidariedade e dignidade da pessoa humana.
Ocorre que havia uma incoerência entre o que norteava as Cartas Constitucionais e os Códigos Civis, já que estes se pautavam no individualismo e no patrimonialismo (SCHAREIDER; KONDER, 2016).
Nesse sentido, pode se dizer que a constitucionalização do Direito Civil se deu, em razão da necessidade de se adequar as codificações aos fundamentos das Constituições, porquanto os códigos continham um enfoque voltado ao patrimônio, ao passo que as Cartas Maiores se fundavam, especialmente, na dignidade da pessoa humana.
No Brasil, o termo “direito civil constitucional” incorporou-se no país, na década de 1990, por meio dos civilistas Gustavo Tepedino e Maria Celina Bodin de Moraes, aos quais, por meio de Pietro Perlingieri, apresentou-se a metodologia, embora, bem antes desse período, já houvesse a necessidade de estabelecer unidade entre a Carta Constitucional e o Código Civil (SCHAREIDER; KONDER, 2016).
A promulgação da Constituição Federal de 1988 representou um marco para a sociedade brasileira, de forma a elevar a dignidade da pessoa humana, estabelecer a necessidade de redução das desigualdades, entre outros. Ocorre que havia um descompasso entre essas previsões constitucionais e o Código Civil de 1916, uma vez que este possuía uma orientação fortemente patrimonialista (SCHAREIDER; KONDER, 2016).
De acordo com Tepedino e Oliva (2023), por apresentar grande influência dos códigos que antecederam 1970, o Código Civil de 2002 foi elaborado sem a preocupação de indicar valores norteadores de seus institutos. Nessa perspectiva, tornou-se necessário utilizar os fundamentos da Constituição Federal, a fim de conferir intepretação às disposições do Direito Civil, o que corroborava para um enfoque menos patrimonial e mais humanizado.
Cabe destacar que a despatrimonialização do Direito Civil constitui um dos efeitos da Constitucionalização do Direito Civil, uma vez que esta prega que o Direito Civil deve ser interpretado e aplicado com foco, sobretudo, na dignidade da pessoa humana (SCHAREIDER; KONDER, 2016).
Contudo, os referidos autores sustentam.
O direito civil constitucional não propõe uma segregação absoluta entre situações existenciais e situações patrimoniais. Numa reversão da perspectiva histórica do direito privado, que se interessava pelo sujeito de direito apenas sob o prisma patrimonial (o proprietário, o testador, o contratante), a metodologia civil constitucional vem exigir que a pessoa passe a ser valorizada pela sua condição humana. O ter deixa, assim, de ser um valor em si mesmo para se tornar mero instrumento de realização do ser. A atividade econômica passa a estar subordinada ao atendimento de valores não econômicos, como a solidariedade social, a igualdade substancial e a dignidade da pessoa humana (SCHAREIDER; KONDER, 2016, p. 19).
Com base nesse entendimento, deduz-se que a despatrimonialização consiste em não privilegiar o patrimônio em detrimento da pessoa. Nesse contexto, a questão patrimonial deve sim existir, porém com a ressalva de que o sujeito, como pessoa, é o mais importante.
Conquanto o fenômeno da constitucionalização do Direito Civil tenha sido aderido no Brasil, o Código Civil de 2002, em razão de sua tardia confirmação, praticamente copiou o que constava no Código de 1916, elaborado em um período em que o patrimonialismo ainda encontrava respaldo, de acordo Anderson Schreider e Carlos Nelson Konder.
Seu texto repete substancialmente aquele do Código Civil de 1916. Fruto de projeto elaborado na década de 1970, durante o período mais severo da ditadura militar brasileira, o novo Código Civil chega com um atraso de mais de três décadas – quando a conveniência de uma nova codificação já era vista com reservas– e em flagrante descompasso com a Constituição (SCHAREIDER; KONDER, 2016, p. 15).
Infere-se, com isso, que o viés patrimonialista ainda vigora em alguns institutos do Direito Civil brasileiro, como no Direito Sucessório, que, muitas vezes, privilegia o patrimônio em detrimento da vontade do autor da herança. Como exemplo, pode-se mencionar a taxatividade das hipóteses de deserdação, uma das formas de exclusão sucessória, visto que força o titular da herança a deixá-la, por exemplo, àquele que violou o princípio da afetividade, mecanismo fundamental nas relações de família.
Dessa forma, verifica-se que o Direito Civil Constitucional, que possui como reflexo a despatrimonialização, constitui importante recurso que possibilita a aplicação dos valores constitucionais ao Direito Civil, em que pese o Código Civil atual ainda não esteja totalmente cristalizado nos preceitos da Constituição Federal de 1988.
3 DA AFETIVIDADE NA ESFERA JURÍDICA
Muito se discute sobre a afetividade na esfera jurídica. Trata-se de um tema relevante, na medida em que, na contemporaneidade, mostra-se bastante utilizada pela doutrina e pela jurisprudência como fundamentação e pela sociedade como forma de obter direitos.
A temática passou a se tornar importante, no Direito brasileiro, conforme Tartuce (2023), em razão da constitucionalização do Direito Civil. Isso ocorre porque esta ocasionou a necessidade de uma leitura do direito privado, com base nos preceitos constitucionais, mormente, nos princípios e direitos fundamentais (PEREIRA, 2022).
Ressalta-se que, segundo Lôbo (2023), a afetividade consiste em um princípio que se encontra implícito na Constituição da República.
Atualmente, doutrina majoritária reconhece a afetividade como um princípio do Direito de Família, de forma que entendem que ele deve ser observado tanto pelos aplicadores do Direito quanto pela população. A jurisprudência brasileira também tem se posicionado nesse sentido, porquanto, em vários julgados, admite a afetividade como princípio na esfera jurídica do Brasil (CALDERÓN, 2017).
Depreende-se, com isso, que a afetividade já encontra respaldo no Direito do Brasil, como um princípio previsto na Constituição da República, que se aplica ao Direito de Família. Isso se dá, porque a maior parte da doutrina e a jurisprudência reconhecem a afetividade como um princípio jurídico.
Sendo assim, faz-se necessário compreender por que a afetividade se trata de um princípio jurídico, bem como qual é o seu real significado para o Direito.
3.1 Da Afetividade como valor normativo no Direito Civil
Antes de adentrar propriamente o tema, faz-se necessário compreender no que consistem os princípios.
Conforme Justen Filho (2021), os princípios são normas jurídicas que possibilitam a efetividade dos valores. Nessa perspectiva, pode-se dizer que eles possuem força normativa, mesmo porque estabelecem direitos e obrigações, conforme o caso concreto, segundo o autor.
Tepedino e Teixeira (2023) assinalam que os princípios consistem em normas jurídicas que possuem conteúdo aberto e que instituem orientação de comportamentos.
A partir dos entendimentos supracitados, infere-se que os princípios devem ser observados não só pelos aplicadores do Direito, mas por toda a coletividade.
A constitucionalização do Direito Civil, análise do direito privado à luz da Constituição, de acordo com Pereira (2023), acarretou uma nova força normativa aos princípios. Nesse caso, eles passaram a se encontrar no centro da interpretação, principalmente, no que se refere ao Direito Civil e, em especial, ao Direito das Famílias.
Ricardo Calderón aponta que:
Uma das principais consequências do fenômeno da constitucionalização do Direito foi a alteração sobre a concepção, sentido e papel conferido aos princípios, que de meros coadjuvantes passaram a protagonistas deste novo cenário jurídico (CALDERÓN, 2017, p.113).
Cabe destacar que a constitucionalização também ensejou a necessidade de inclusão de novos princípios aplicáveis no âmbito da família, como o princípio da afetividade (TARTUCE, 2023).
Com base nisso, deduz-se que os princípios já eram considerados relevantes para o Direito. Contudo, após a constitucionalização do direito privado, a eles se concedeu um maior enfoque e importância.
Como exemplo, pode-se mencionar o princípio afetividade, que é reconhecido como princípio jurídico pela doutrina majoritária (CALDERÓN, 2017).
Conforme Calderón (2017), os poucos autores, cujo número decresce, que compreendem o contrário, acreditam que a afetividade não constitui um princípio, por se tratar apenas de um valor sentimental, de cunho subjetivo.
Ocorre que, de acordo com Calderón:
A afetividade jurídica que ora se sustenta não resta apegada às questões de sentimento ou meramente subjetivas, mas sim se refere a fatos que externem determinadas relações intersubjetivas, nas quais, em vista disso, seria presumida a manifestação afetiva subjetiva (CALDERÓN, 2017, p.111).
A afetividade, nesse sentido, não corresponde ao valor sentimental, mas aos atos que, quando praticados, acredita-se que há o viés subjetivo. Para o Direito, importa a afetividade jurídica, ou seja, a que não se liga ao aspecto do sentimento.
Carvalho (2020) cita que alguns princípios, como o princípio da afetividade, possuem maior relevância para a doutrina. Quase a totalidade dos autores consideram a afetividade como princípio e reconhecem a sua importância.
Cabe destacar que, conquanto ele não se encontre expresso na Constituição Federal, conforme Dias (2022), isso não lhe retira a condição de princípio constitucional das relações de família.
Tartuce (2023) também compreende nesse sentido, ao argumentar que a afetividade é um princípio do sistema jurídico brasileiro, mesmo que não esteja expresso na legislação pátria.
Segundo Pereira (2023), a afetividade se trata de um princípio das relações de família implícito na Carta Magna, que possui como alicerces o princípio da dignidade da pessoa humana, o da solidariedade, o da convivência familiar assegurada à criança e ao adolescente, independentemente da origem, entre outros.
Verifica-se, com isso, que os fundamentos da consagração do princípio da afetividade situam-se nos demais princípios constitucionais, como a dignidade da pessoa humana, prevista entre os fundamentos da República, o princípio da solidariedade, o reconhecimento da união estável, a proteção à família monoparental e dos filhos por adoção, a paternidade responsável, a adoção como escolha afetiva e a igualdade entre os filhos independentemente da origem (DIAS, 2022).
Caio Mário da Silva Pereira assinala que:
O princípio jurídico da afetividade, em que pese não estar positivado no texto constitucional, pode ser considerado um princípio jurídico, à medida que seu conceito é construído por meio de uma interpretação sistemática da Constituição Federal (art. 5º, § 2º, CF) princípio é uma das grandes conquistas advindas da família contemporânea, receptáculo de reciprocidade de sentimentos e responsabilidades (PEREIRA, 2022, p. 69).
Nessa perspectiva, pode-se dizer que a Constituição Federal valoriza a afetividade no que refere às relações de família e, por conseguinte, a consagra como um princípio em seu texto, mesmo que de forma implícita, o que demanda interpretação.
Ressalta-se que, em função da constitucionalização do Direito Civil, a interpretação, bem como a aplicação de seus institutos devem-se fundamentar nos princípios e direitos constitucionais (PEREIRA, 2022).
Pode-se dizer, assim, que, ainda que o princípio da afetividade não se encontre expresso, na Carta Constitucional, sua aplicação se faz necessária na esfera do Direito Civil, em razão do fenômeno da constitucionalização.
Maria Berenice reforça a ideia da importância do princípio da afetividade nas relações familiares, quando cita que “o afeto ganhou status de valor jurídico. Tornou-se o elemento balizador e catalizador dos vínculos familiares e sua base de sustentação” (DIAS, 2022, p.69).
Depreende-se desses entendimentos que a afetividade é um princípio das relações familiares, com previsão constitucional, e que, por isso, deve ser observado, não só no âmbito da família, mas por toda a sociedade.
Dias (2022), ainda, ressalta que, embora, para o campo do Direito, o afeto, como sentimento, não importe, como dever de afetividade, há o seu reconhecimento como princípio jurídico, em que a sua materialização ocorre por meio da solidariedade entre os membros de uma família.
Nessa mesma linha de entendimento, Dimas Messias de Carvalho esclarece como a afetividade interessa ao Direito.
O afeto, como a vontade, só se torna juridicamente relevante quando externado por condutas objetivas, por comportamentos dos membros de uma entidade familiar manifestadas pela convivência, demonstrando a afetividade. A teoria do afeto como valor jurídico é externalizada pelas condutas objetivas de cuidados, solidariedade, exercício dos deveres de criar, educar e assistir, demonstradas na convivência familiar (CARVALHO, 2020, p.108).
Infere-se, com isso, que não se deve analisar a afetividade, no âmbito jurídico, como valor sentimental, o que corrobora também a linha de raciocínio de Paulo Lôbo, que esclarece, com objetividade, o conteúdo desse princípio:
A afetividade, como princípio jurídico, não se confunde com o afeto, como fato psicológico ou anímico, porquanto pode ser presumida quando este faltar na realidade das relações; assim, a afetividade é dever imposto aos pais em relação aos filhos e destes em relação àqueles, ainda que haja desamor ou desafeição entre eles (LÔBO, 2023, p.35).
Verifica-se, então, que o princípio da afetividade deve ser observado, independentemente da seara sentimental, de forma que as condutas, no caso concreto, apresentam-se como importantes. Ressalta-se que essas condutas não correspondem apenas à ajuda material, mas sim configuram um conjunto de ações que possibilitam o bem-estar da outra pessoa.
Paulo Lôbo cita o exemplo da afetividade dos pais para com os filhos, o que torna possível deduzir, assim, que comportamentos, como participar de uma reunião escolar, estar presente em festividades, a exemplo de aniversários, prestar assistência material e psicológica, entre outros, constituem observância do princípio da afetividade.
Lôbo (2023) também adverte que esse dever de afetividade entre pais e filhos só se extirpa com o fim da vida ou em caso de perda do poder familiar.
A partir desse entendimento, pode-se dizer que a violação desse encargo poderia acarretar, por exemplo, a deserdação do ascendente pelo descendente, uma forma de exclusão sucessória. Isso ocorre porque um pai que abandona o filho, de forma a não lhe conceder qualquer tipo de assistência, não merece herdar os seus bens.
De acordo com Rodrigo da Cunha Pereira, “o afeto para o Direito de Família não se traduz apenas como um sentimento, mas como uma ação, uma conduta. É o cuidado, a proteção e a assistência na família parental e conjugal” (PEREIRA, 2023, p.89).
Portanto, infere-se que a afetividade é um princípio das relações de família, que não possui conteúdo sentimental, já que deve ser analisado no campo das ações, o que importa ao Direito. Além disso, precisa ser compreendido como um dever de solidariedade. Isto é, as condutas de cada membro familiar devem se voltar para a proteção e amparo uns dos outros.
3.2 Do Princípio da Solidariedade familiar
O princípio da solidariedade, segundo Lôbo (2023), decorreu da superação do individualismo, que predominou nos primeiros séculos da modernidade e ainda pode ser observado, em alguns casos, na contemporaneidade.
A Constituição da República de 1988 conferiu papel relevante ao princípio da solidariedade. Em seu sentido lato, descreveu-o entre os seus objetivos fundamentais. No que se refere ao sentido específico, atribuível à seara familiar, mencionou-o em seus arts. 227, 229 e 230. Em função disso, a esse princípio se concedeu força normativa constitucional (CARVALHO, 2020).
Com base nesses entendimentos, pode-se dizer que o princípio da solidariedade representa uma vitória para a sociedade, de forma que se mostra tão importante que houve a sua positivação no Texto Constitucional.
No que tange ao âmbito da família, o princípio da solidariedade familiar provém dos vínculos afetivos e possui como fundamentos a fraternidade e a reciprocidade. Nesse sentido, em um núcleo familiar, a lei institui deveres recíprocos, o que, por conseguinte, propicia ao Estado menos encargos (DIAS, 2022).
A título de exemplo, há a imposição aos pais do dever de prestar assistência aos filhos, mandamento previsto no art. 229 da Constituição Federal, que, conforme Dias (2022), advém do princípio da solidariedade familiar.
Ainda, pode-se mencionar o dever de os filhos mais velhos prestarem ajuda aos pais, quando necessário, isto é, na velhice, na carência ou na enfermidade BRASIL (1988).
Madaleno (2023) também apresenta como exemplo o dever de mútua assistência entre os cônjuges, previsto no Código Civil. Isto é, em uma relação conjugal, deve haver uma cooperação entre o casal.
Infere-se, a partir disso, que há a violação do princípio da afetividade, quando um genitor abandona o filho; quando o filho de maior idade não presta assistência ao genitor, em caso de necessidade, e quando um dos cônjuges não age com dever de cooperação em relação ao outro.
Nota-se que o princípio da solidariedade familiar possui várias vertentes. Nesse contexto, o autor Rodrigo da Cunha Pereira o descreve e enfatiza o seu real conteúdo.
A solidariedade, antes concebida apenas como dever moral, compaixão ou virtude, passou a ser entendida como princípio jurídico após a Constituição da República de 1988, expressamente disposto no art. 3º, I. Este princípio também está implícito em outros artigos do texto constitucional, ao impor à sociedade, ao Estado e à família (como entidade e na pessoa de cada membro) a proteção da entidade familiar, da criança e do adolescente e ao idoso (Arts. 226, 227 e 230, respectivamente). Portanto, advém do dever civil de cuidado ao outro (PEREIRA, 2023, p. 91).
Depreende-se desse entendimento que o princípio da solidariedade familiar configura um dever de assistência recíproca entre os membros de uma parentela. Nessa perspectiva, é obrigação dos pais, em relação aos filhos; e destes, em relação àqueles, quando necessário; e do cônjuge, em relação ao outro, a ajuda, a colaboração e o apoio.
Esse dever de cuidado também ocorre no âmbito afetivo dos pais para com os filhos. Em caso de abandono afetivo, pode haver a imposição como obrigação jurídica (PEREIRA, 2023).
Deduz-se que, como a afetividade, conforme já estudada, configura o conjunto de condutas, como assistência, cuidado, zelo, entre outras, há a sua relação direta com o princípio da solidariedade. Nesse sentido, se um pai falta com o dever de afetividade em relação ao filho, ele viola não só princípio da afetividade, mas também o da solidariedade. Nesse caso, a deserdação do ascendente pelo descendente, em caso de abandono afetivo, deveria ser viável.
Ressalta-se que o princípio da solidariedade familiar contempla o caráter afetivo, o social, o moral, o patrimonial, o espiritual e o sexual. Nessa perspectiva, responder pelo outro, quando preciso; preocupar-se com ele, entre outros exemplos, configura observância desse princípio (TARTUCE, 2023).
Carvalho (2020) também possui entendimento nesse sentido, ao declarar que o princípio da solidariedade familiar externa-se, por meio da assistência recíproca, entre os membros familiares, seja ela de cunho material ou moral.
Nesse cenário, nota-se a que o princípio da solidariedade familiar representa um papel fundamental nas relações familiares, na medida em que estabelece deveres aos membros de uma parentela, de modo que uns devem cuidar dos outros, em um verdadeiro movimento de cooperação (TEPEDINO; TEIXEIRA 2023).
Dessa forma, deduz-se que ele deve ser obedecido por todos os entes familiares, a fim de que um preceito constitucional, aplicável no contexto familiar, seja observado no caso concreto.
4 DA HERANÇA
Herança, segundo Venosa (2023), consiste no conjunto de direitos e obrigações que se transmite a uma ou mais pessoas, quando do falecimento de seu titular.
Paulo Lôbo esclarece que “integram a herança todos os bens ou valores de dimensão econômica ou estimativa que possam ser objeto de tráfico jurídico, além das dívidas (patrimônio ativo e passivo), deixados pelo morto” (LÔBO, 2023, p.22).
Infere-se, com isso, que herança não se trata apenas do conjunto de bens, mas também dos encargos estabelecidos, em vida, pela pessoa. Nesse sentido, aos sucessores não se destina apenas o acervo patrimonial, mas também as obrigações devidas pelo autor da herança.
Ressalta-se, contudo, que os encargos a serem adimplidos só se transmitem aos herdeiros até o valor total da herança (LÔBO, 2023).
Deduz-se, então, que os beneficiários do patrimônio não terão de arcar com as obrigações do falecido que excederem àquilo que herdarem, o que se mostra justo, já que não são os titulares de tais ônus.
Conforme Dias (2022), o Direito de Sucessório se fundamenta no desejo de que a propriedade privada continue no âmbito de uma parentela. Nessa perspectiva, a hereditariedade se apresenta como questão fundamental, na medida em que possibilita que a herança seja destinada a membros da família, o que gera incentivo ao trabalho, bem como à constituição de patrimônio.
Em função do afeto e da bondade, existentes no âmbito familiar, há o desejo de que a descendência desfrute de um futuro com qualidade de vida, o que se dará com o recebimento da herança (DIAS, 2022).
Depreende-se, a partir dos ensinamentos, que a essência da herança é a conservação do patrimônio no âmbito da família, de forma que o esforço, para constituí-lo, se dá em virtude da intenção de que ele seja usufruído por entes próximos.
Nesse contexto, o direito à herança é fundamental, uma vez que, de acordo com Venosa (2023), ele se apresenta como impulso, para que cada indivíduo produza, poupe e construa o seu patrimônio, a fim de que este seja destinado à sua prole.
Tamanha se mostra a importância do direito à herança que a Constituição Federal de 1988 o mencionou, entre os seus direitos fundamentais, de forma a criar uma harmonia entre o Direito Sucessório e o Direito Constitucional, o que consagra a constitucionalização do direito civil (TARTUCE, 2023).
Cabe destacar que, conforme Tartuce (2023), o direito hereditário se opera na sucessão causa mortis, isto é, ele existe, em razão do falecimento do titular dos direitos e das obrigações. Infere-se, assim, que a morte configura requisito, para que ocorra a sucessão.
O Direito Sucessório se encarrega da sucessão causa mortis, mecanismo que possibilita a transmissão de bens e de obrigações, em função da morte, ou seja, trata-se de um ramo do Direito que regula a sucessão da herança (DIAS, 2022).
Diante do exposto, pode-se dizer que a herança constitui um importante instituto para a esfera familiar, de modo que representa um estímulo, a fim de que se erga um patrimônio. A sua transmissão será regulada pelo Direito das Sucessões, por meio da sucessão, causa mortis.
5 DO DIREITO DAS SUCESSÕES
O falecimento de uma pessoa que deixa patrimônio importa ao Direito. Nessa perspectiva, como em outros casos, também se mostra necessário existir um ramo na legislação, a fim de tratar acerca do tema.
No Brasil, fala-se em Direito das Sucessões, quando há a morte de um sujeito e, com isso, há a necessidade de que os seus bens e obrigações, isto é, a sua herança, seja transmitida a uma ou mais pessoas, sucessão causa mortis (DIAS, 2022).
Maria Helena Diniz conceitua o Direito das Sucessões.
O direito das sucessões vem a ser o conjunto de normas que disciplinam a transferência do patrimônio de alguém, depois de sua morte, ao herdeiro, em virtude de lei ou de testamento (CC, art. 1.786). Consiste, portanto, no complexo de disposições jurídicas que regem a transmissão de bens ou valores e dívidas do falecido, ou seja, a transmissão do ativo e do passivo do de cujus ao herdeiro (DINIZ, 2023, p.10).
Tartuce (2023) também compreende nesse sentido, ao dispor que o Direito das Sucessões consiste em um ramo do Direito Civil, que trata da transmissão de direitos e encargos de um sujeito, em função de sua morte. Isso pode se dar por disposição de última vontade ou por disposição da lei.
Deduz-se, com isso, que o Direito Sucessório existe porque, quando há o falecimento de uma pessoa, a sua herança precisa ser destinada a um ou mais sujeitos, de modo que o patrimônio deve receber um novo titular.
Ressalta-se que a sucessão pode se dar inter vivos, como no caso do direito das obrigações, ou mortis causa, seara do Direito das Sucessões. Por sucessão mortis causa entende-se a transmissão da herança, em função do falecimento de uma pessoa (GONÇALVES, 2023).
Para o Direito Sucessório, segundo Dias (2022), mostra-se importante a sucessão causa mortis, a qual demanda que haja a morte de uma pessoa que tenha deixado bens e a existência de outros sujeitos, aos quais se destinará a herança. Caso esta não exista, não há que se falar em Direito das Sucessões.
Infere-se que, para que o Direito Sucessório possa intervir, faz-se necessário que haja a morte e que exista patrimônio. Nesse caso, trata-se de requisitos cumulativos, porquanto o falecimento só importará a esse ramo do Direito Civil se a pessoa que faleceu deixou herança.
Cabe destacar que a sucessão causa mortis, no ordenamento jurídico brasileiro, pode ocorrer ou por sucessão legítima ou por sucessão testamentária. No primeiro caso, a transmissão da herança se mostra regulada por lei. Já a sucessão testamentária contempla a disposição de última vontade do titular do patrimônio, que possui o condão de definir como a sua herança será transmitida (LÔBO, 2023).
5.1 Da Sucessão Legítima e da Sucessão Testamentária
Existem dois tipos de sucessão, em função da morte: a sucessão legítima e a sucessão testamentária. Abordar-se-á, com mais ênfase, a segunda, já que, para o estudo deste artigo, ela deve ser compreendida com maior profundidade, uma vez que a deserdação ocorre por meio dela.
A sucessão legítima possui o condão de preservação do patrimônio de uma pessoa no âmbito de sua família. Nesse sentido, pode-se dizer que ela se fundamenta na solidariedade familiar, uma vez que a intenção daquele que falece, muitas vezes, é a de que a sua herança seja destinada aos membros de sua família (DIAS, 2022).
Gonçalves (2023) assinala que, por meio desse tipo de sucessão, entrega-se a herança a membros da família do falecido, de acordo com a ordem de vocação hereditária.
Maria Helena Diniz esclarece do que se trata a sucessão legítima:
Com a morte de alguém, verificar-se-á, primeiramente, se o de cujus deixou testamento indicando como será partilhado seu patrimônio. Em caso negativo, ou melhor, se faleceu sem que tenha feito qualquer declaração solene de última vontade; se apenas dispôs parte dos bens em testamento válido; se seu testamento caducou ou foi considerado ineficaz ou nulo ou, ainda, se havia herdeiros necessários, obrigando a redução da disposição testamentária para respeitar a quota reservatória, a lei promoverá a distribuição, convocando certas pessoas para receber a herança, conforme ordem nela estabelecida, que se denomina ordem de vocação hereditária. Em todas essas hipóteses ter-se-á sucessão legítima, que é a deferida por determinação legal (DINIZ, 2023, p. 40).
Isso sugere que a vontade do falecido será o primeiro ponto a ser analisado no que se refere à sucessão. Isto é, a sucessão legítima só se operará se não houver uma exteriorização do desejo do autor do patrimônio ou se ela se apresentar viciada.
De acordo com Carvalho (2023), a sucessão legítima é aquela em que, em razão da ausência, da nulidade, da anulabilidade ou da caducidade do testamento, cabe à lei definir como será feita a transmissão da herança. Como exemplo, a norma estabelecerá a ordem de vocação, ou seja, a sequência dos que serão chamados a suceder.
Pereira (2022) afirma que a sucessão legítima ou ab intestato ocorre quando não há a vontade do autor da herança, por não haver testamento. Nesse contexto, a lei define como ocorrerá a sucessão.
Cabe enfatizar que, na sucessão legítima, a vontade do autor da herança se mostra presumida, na medida em que a ele a lei concede a opção de elaborar testamento e, por conseguinte, alterar a ordem de transmissão do patrimônio, desde que observados os direitos dos herdeiros necessários (GONÇALVES, 2023).
Depreende-se desses entendimentos que a sucessão legítima é aquela em que a transmissão da herança ocorrerá por regulamentação da lei. Nesse sentido, haverá uma ordem legal de recebimento do patrimônio, de forma que não competirá aos herdeiros definir esse critério, mas apenas obedecer ao comando legal. Para que ela ocorra, não deve haver testamento e, se existir, ele deve cumprir todos os requisitos legais, a fim de que seja possível a sua abertura e cumprimento.
Em contrapartida, sucessão testamentária é aquela que ocorre por disposição de última vontade do testador, externada em testamento, que, se for omisso ou não obedecer às formalidades legais, serão aplicadas as disposições da lei (DINIZ, 2023).
Maria Berenice Dias conceitua sucessão testamentária da seguinte forma:
Como sugere o próprio nome, sucessão testamentária é a transmissão da herança por meio de testamento. Ocorre quando houve manifestação de vontade da pessoa - claro que enquanto viva estava - elegendo quem deseja que fique com o seu patrimônio depois de sua morte (DIAS, 2022, p. 164).
Segundo Lôbo (2023), a sucessão testamentária configura obediência à disposição de última vontade do falecido, que se encontra expressa em documentos permitidos por lei.
Isso significa que o testamento se apresenta como instrumento fundamental da sucessão testamentária, que existe, para que a vontade do titular do patrimônio seja considerada.
A fim de que a sucessão testamentária se mostre possível, Dias (2022) aponta que deve haver pessoa capaz de dispor de seu patrimônio, sujeito capaz de recebê-lo, disposição de vontade realizada na forma da lei e observação dos limites legais do que se pode testar.
A sucessão testamentária tem fundamento na vontade do testador. Ocorre que essa vontade se mostra limitada, porquanto ele não possui a faculdade de dispor de todo o seu patrimônio por testamento, caso existam herdeiros necessários. Isso ocorre porque se deve respeitar a quota parte desses sujeitos, cinquenta por cento da herança, que se denomina legítima (TEPEDINO; NEVARES, 2023).
Maria Berenice Dias esclarece que o autor da herança, com a sucessão testamentária, ostenta uma liberdade bem considerável, mas não total.
Na sucessão testamentária, o poder discricionário do titular é quase absoluto. Ao fim e ao cabo, é um ato de liberalidade. As concessões de bens ou direitos configuram verdadeiras doações: o titular do patrimônio brinda quem quiser, podendo condicionar o seu recebimento da forma como lhe aprouver (DIAS, 2022, p. 464).
Infere-se, a partir disso, que o testador goza de bastante liberdade no que se refere à constituição de seu testamento, de modo que pode definir quem receberá os seus bens, qual será a fração, como se dará esse recebimento, entre outros. No entanto, caso existam herdeiros necessários, essa liberdade será mitigada, visto que a legítima, cinquenta por cento do acervo hereditário, não se mostra passível de negociação, devendo ser respeitada.
Salienta-se que a ausência de herdeiros necessários configura liberdade total ao titular do patrimônio, para dispor como quiser de seus bens. Nesse contexto, mostra-se plenamente cabível destinar frações desiguais aos demais herdeiros, não contemplá-los em seu testamento e, até mesmo, transmitir toda a sua herança a terceiros (LÔBO, 2023).
Observa-se que, se não houver herdeiros necessários, a autonomia da vontade do testador se mostra ampliada, de maneira que a totalidade de seu patrimônio se encontra livre de qualquer imposição, o que lhe confere a prerrogativa de dispor da forma como considerar conveniente.
Por herdeiros necessários compreendem-se os ascendentes, os descendentes e o cônjuge ou companheiro, aos quais se atribui a legítima. Nesse sentido, ao testador se reserva para testar a chamada parte disponível, cinquenta por cento do de seu patrimônio (DIAS, 2022).
Tamanha se mostra a importância da legítima que, se, por exemplo, o testador dispuser de fração superior à parte disponível, de modo a interferir no quinhão dos herdeiros necessários, há a possibilidade de se reduzir o percentual excedido, a fim de garantir a preservação da metade da herança (DIAS, 2022).
Pereira (2022) enfatiza que pode ser declarada ineficaz a disposição de vontade do testador, quando não observada a fração dos herdeiros necessários. Menciona também a possibilidade de redução do que fora testado, para que a legítima seja respeitada.
Quanto à fração disponível da herança, o testador possui a faculdade de transmiti-la a quem desejar. Nesse sentido, herdeiros ou, até mesmo, terceiros podem se beneficiar da transmissão dos bens, sendo intitulados herdeiros testamentários, a título universal, pois são contemplados com parte do todo do acervo patrimonial (DIAS, 2022).
Deduz-se, então, que a vontade do autor dos bens poderá ser desconsiderada se, em razão dela, houver prejuízo aos ascendentes, aos descendentes, ao cônjuge ou ao companheiro no que se refere à legítima. Porém, em relação à parte disponível, há uma liberdade absoluta do testador, que poderá transmitir o seu acervo patrimonial a qualquer pessoa ou grupo de pessoas.
Ressalta-se que se mostra possível gravar a legítima com cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade, o que demonstra que ela poderá sofrer restrição. Todavia, para que isso seja legal, deve haver manifestação dos motivos expressa no testamento (TEPEDINO; NEVARES, 2023).
A partir desse entendimento, conclui-se que a fração, correspondente a cinquenta por cento do patrimônio do testador, não se encontra totalmente livre, para que os herdeiros necessários a conduzam como assim entenderem. O testador, quando preciso, poderá opor restrições a ela, com a finalidade de preservá-la.
Outro aspecto bastante relevante é que nem sempre será assegurada aos herdeiros necessários a legítima. Isso se dá porque há a possibilidade de deserdá-los ou de excluí-los da sucessão por indignidade (DINIZ, 2023).
Carvalho (2023) cita que, por meio da disposição de vontade, exarada em testamento, o testador, além de disciplinar como se dará a transmissão de seu patrimônio, detém a faculdade de excluir um herdeiro necessário de sua sucessão, através da deserdação (CARVALHO, 2023).
Isso sugere que o autor da herança não estará obrigado sempre a deixar o seu patrimônio a herdeiro necessário, haja vista que a lei lhe confere a prerrogativa de deserdá-lo, isto é, privá-lo de suceder.
Desse modo, nota-se que a sucessão testamentária representa um meio bastante eficaz, para que a vontade do autor da herança seja realizada. Embora se tenha que respeitar a legítima, há vantagens consideráveis em favor do titular dos bens, como não contemplar certos herdeiros, decidir as frações a serem transmitidas, mesmo que não sejam equânimes, e, principalmente, deserdar aquele que não merece ser agraciado com o seu patrimônio.
5.2 Da Deserdação e seus Pressupostos
Quando há o falecimento de uma pessoa que deixa bens, pressupõe-se que o seu desejo é de que eles sejam herdados por seus familiares mais próximos. Ocorre que nem sempre essa se apresenta como vontade do titular. Nesse sentido, a lei criou o instituto da deserdação, uma forma de privar herdeiros de receberem a herança.
A deserdação, conforme Diniz (2023), consiste no ato, exarado pelo autor da herança, por meio de testamento, com expressa menção da causa, que impede herdeiro necessário de receber a legítima, em razão de sua exclusão da sucessão. Isso ocorre porque há casos em que o herdeiro pratica condutas inadequadas para com o titular do acervo, previstas em rol taxativo do dispositivo legal.
Gonçalves (2023, p. 172) cita que a “deserdação é o ato unilateral pelo qual o testador exclui da sucessão herdeiro necessário, mediante disposição testamentária, motivada em uma das causas previstas em lei.”
A deserdação se trata de uma cláusula testamentária que priva herdeiro necessário de receber a legítima, por ser excluído da sucessão, em função de ter praticado condutas autorizadoras da exclusão, expressas em lei (VENOSA, 2023).
Depreende-se desses entendimentos que a deserdação se apresenta como um importante instituto concedido ao titular da herança, para que não seja obrigado a deixar os seus bens a herdeiros necessários que contra ele praticaram condutas desabonadoras, que constam na norma.
Ressalta-se que o instituto da deserdação só se aplica a herdeiros necessários, porquanto, a fim de que os facultativos não herdem, basta que o titular da herança não os contemple em seu testamento, por meio da omissão ou da exclusão, sem a necessidade de externar os motivos (CARVALHO, 2023).
Nessa perspectiva, pode-se dizer que a rigidez da exclusão sucessória se aplica, com maior rigor, à privação de recebimento dos herdeiros necessários. Para que os demais não sucedam, a lei prevê procedimento simples por parte do autor dos bens.
Alguns doutrinadores não concordam com o instituto da deserdação, com o argumento de que se confere um poder excessivo e discricionário ao titular da herança, mesmo que diante de um dos motivos previstos em lei. Entendem que essa possibilidade de exclusão sucessória é inconstitucional, em razão do direito à herança (LÔBO, 2023).
Ocorre que Caio Mário da Silva Pereira pontua por que a exclusão por deserdação deve existir.
Não é arbitrário, todavia, privar o herdeiro necessário de sua legítima, nem quanto à deliberação do testador, nem quanto ao fundamento. Calcado há de ser este (como a indignidade) no descumprimento de deveres por parte do herdeiro necessário ou na “ingratidão conspícua” cometida pelos filhos (PEREIRA, C., 2022, p.324).
Diniz (2023) assinala que a deserdação configura uma exceção ao direito à legítima, na medida em que ao herdeiro necessário a lei estabelece que ela deve ser garantida. Essa hipótese de exclusão se mostra essencial, visto que o titular dos bens não pode ser obrigado a deixá-los àqueles que contra ele praticaram condutas injustas.
Maria Berenice reforça que o instituto da deserdação é necessário, por isso cabível no direito brasileiro.
Basta uma mirada no rol de posturas dos herdeiros que autoriza a deserdação, para reconhecer não só a possibilidade, mas a necessidade de permitir que o titular do patrimônio afaste quem assim agiu. Ainda que alguém possa ser reconhecido como herdeiro necessário, nem por isso tem a liberdade de agir de modo a afrontar a quem deve respeito (DIAS, 2022, p. 444).
Com base nisso, pode-se dizer que deserdação se trata de um instituto bastante importante do Direito Civil, uma vez que não penalizar condutas desonrosas contra o titular da herança seria descabido. Um herdeiro necessário não pode se aproveitar dessa condição, para agir com desrespeito ao autor dos bens, sob a perspectiva de que a sua legítima sempre estará garantida.
Contudo, para que a exclusão por deserdação seja possível, faz-se necessário obedecer a alguns pressupostos, quais sejam: existência de herdeiros necessários, testamento válido e declaração da causa (DIAS, 2022).
Apenas o testamento configura meio legal, para que ocorra a exclusão sucessória por deserdação. Ele se apresenta como condição de procedibilidade. Nesse contexto, precisa ser válido, haja vista que, se não for, impossível será a deserdação. Além disso, devem-se indicar os motivos que ensejaram a decisão de privar o herdeiro necessário da legítima, causas estas que demandam estar previstas entre as hipóteses legais (DIAS, 2022).
Pereira (2022) também apresenta o que se exige, para que haja a deserdação de um herdeiro necessário, ao mencionar que é preciso a existência de um testamento válido, com expressa menção do motivo; a propositura de uma ação judicial, com prazo decadencial de quatro anos, contados da abertura do testamento, a fim de comprovar a causa que acarretou a exclusão, e a previsão do motivo, no rol taxativo legal.
De modo mais simplificado e objetivo, Carvalho (2023) aponta como pressupostos para a deserdação: a existência de herdeiros necessários, testamento válido, propositura de ação no prazo legal, comprovação do motivo e sentença judicial.
Nota-se que o procedimento, para que seja possível a deserdação, mostra-se complexo, visto que exige que o autor dos bens indique os motivos, dispostos em lei, bem como que exista testamento válido, com essa disposição de vontade. Ademais, uma ação deve ser proposta, para se provar o que o autor dos bens alegou, como motivo para deserdar.
As causas que possibilitam a deserdação se encontram no Código Civil, nos arts. 1962 e 1963. Há também a possibilidade de deserdar pelos mesmos motivos ensejadores da indignidade, previstos no art. 1814, do mesmo diploma legal (DIAS, 2022).
No rol do art. 1814 do Código Civil, segundo Dias (2022), consta que é cabível a deserdação, em caso de prática de delito doloso contra a vida do titular da herança ou de alguns de seus familiares. Além disso, a exclusão também é possível, quando se age contra a honra dele ou de seu cônjuge ou companheiro. Por fim, se houver ofensa à sua liberdade de testar.
Nos dispositivos 1962 e 1963 também do Código Civil, há as possibilidades de exclusão apenas por deserdação. No primeiro artigo, consta que o ascendente pode excluir o descendente, em caso de ofensas físicas contra o autor dos bens; injúria grave contra ele ou contra o seu cônjuge ou companheiro; relações ilícitas contra a madrasta ou contra o padrasto e, ainda, o desamparo do ascendente em alienação mental ou grave enfermidade (PEREIRA, 2022).
Da mesma forma, o descendente poderá deserdar o ascendente nas hipóteses de indignidade e nas do art. 1963 do Código Civil, sendo estas: ofensas físicas contra o titular da herança; injúria grave proferida a ele ou a seu cônjuge ou companheiro; relações ilícitas com a mulher ou companheira do filho ou a do neto ou com o cônjuge ou companheiro da filha ou da neta e, por fim, o desamparo do filho ou do neto em alienação mental ou enfermidade grave (PEREIRA, 2022).
Observa-se que as causas de exclusão por deserdação se mostram bastante restritas, de forma a contemplar poucas possibilidades ao autor da herança. Ademais, não bastasse isso, após a morte do titular dos bens, com a abertura do testamento, deve-se propor uma ação judicial, a fim de se comprovar o motivo indicado pelo de cujos.
Ressalta-se que as hipóteses de deserdação, descritas, nos arts.1814, 1962 e 1963, do Código Civil, possuem natureza taxativa, de modo que não comportam interpretação por parte do juiz (LÔBO, 2023).
Dias (2022) destaca que essa limitação legal se apresenta como absurda, na medida em que há inúmeros outros atos, tão graves quanto os indicados pela norma, que também deveriam constar no dispositivo, como o abandono afetivo. Isso ocorre porque a afetividade já é reconhecida como um princípio geral do Direito de Família, plenamente, aplicável ao Direito das Sucessões. Além disso, quando violado, há uma quebra da boa-fé familiar.
Infere-se que a taxatividade das hipóteses de deserdação representa ausência de consideração com o testador, que, muitas vezes, precisa deixar os seus bens a um sujeito que lhe fez mal, que, em relação a sua pessoa, agiu com total indiferença e desprezo. A condição de herdeiro necessário e a restrição legal quanto às causas desse tipo de exclusão configuram fundamento para isso.
Dessa forma, pode-se dizer que, conquanto o instituto da deserdação se mostre importante ao titular da herança, a taxatividade das causas, que possibilitam essa exclusão, não permite a ele excluir um herdeiro necessário por inúmeras outras condutas tão graves quanto às menções legais, o que se mostra incoerente e descabido.
6 DO ABANDONO AFETIVO COMO HIPÓTESE DE DESERDAÇÃO
No estudo acerca do instituto da deserdação, foi possível notar que, em que pese ele seja bastante importante, suas hipóteses limitadas e que não permitem interpretação extensiva pelo julgador acabam obrigando o autor dos bens a deixá-los a herdeiros necessários que agiram de modo injusto em relação a sua pessoa.
Isso ocorre porque não houve a atualização do instituto, com o Código Civil de 2002, já que, tanto no caso da exclusão por indignidade quanto na por deserdação, o legislador praticamente repetiu as hipóteses previstas no Código de 1916. Nesse caso, manteve-se a limitação descabida das causas que permitem a privação ao recebimento da herança, de forma a não se atentar que a maldade do ser humano não possui limites (DIAS, 2022).
O Código Civil de 2002 não apresentou quase nenhuma mudança, se comparado ao de 1916, pois o seu texto copiou basicamente tudo da codificação anterior. Ressalta-se que ele é resultado de projeto da década de 1970 e que a sua confirmação se deu com um atraso de mais de trinta anos (SCHAREIDER; KONDER, 2016).
Observa-se, a partir desses entendimentos, que, na elaboração do Código Civil de 2002, o legislador não se atentou quanto à necessidade de atualizar o texto, de acordo com os novos anseios sociais. Como não houve inovação, mas apenas a repetição do diploma de 1916, institutos que demandavam alteração, como a deserdação, permaneceram praticamente com a mesma redação e com o rol exaustivo.
Lôbo (2023) acentua que as causas da deserdação são taxativas, a fim de que não haja a possibilidade de o juiz decidir acerca de uma possível hipótese de exclusão sucessória.
Cabe enfatizar que esse rol reduzido e taxativo acarreta prejuízo ao titular do acervo hereditário, porquanto ele fica impossibilitado de excluir herdeiros por outras razões até mais graves do que as se encontram expressas no texto legal (DIAS, 2022).
Nos artigos que versam sobre as possibilidades de deserdação, não há todos os motivos capazes de ensejar a exclusão sucessória, outros tão ou até mais relevantes também deveriam servir como fundamento, para a privação à legítima (POLETTO, 2012).
Frisa-se, a redação da norma não contempla todas as condutas que deveriam acarretar a deserdação. Cristiano Chaves de Farias e Conrado Paulino da Rosa descrevem, por exemplo, que o abandono afetivo também representa uma conduta séria que deveria servir como motivo.
No entanto, é certo e incontroverso que tão grave quanto o desamparo material (de conteúdo econômico) é o abandono imaterial, com o rompimento do vínculo familiar de solidariedade e cuidado, como no exemplo de parentes que não resguardam, entre si, qualquer relação solidária, com absoluta indiferença, sem sequer visitação, contatos eletrônicos ou preocupação pessoal, ignorando, até mesmo, datas comemorativas, como aniversários, dia dos pais, dia das mães, Natal, etc. Trata-se da violação do cuidado necessário que deve existir entre os membros de uma família (FARIAS; ROSA, 2022, p. 240).
Isso sugere que outras ações praticadas por ascendentes, descendentes, cônjuge ou companheiro também teriam de servir como hipótese de deserdação. Ora, esse instituto deveria comportar, pelo menos, interpretação extensiva, de modo a possibilitar a exclusão sucessória desses herdeiros, por outras justificativas graves, como o abandono afetivo, na medida em que a afetividade, conforme já estudado, é um princípio constitucional aplicável às relações de família.
Maria Berenice assinala que:
Ninguém mais duvida que a afetividade é princípio geral do Direito das Famílias, com clara repercussão no campo sucessório. Assim, quando existe quebra de afeto entre herdeiros necessários, tal deveria autorizar o autor da herança a deserdá-los. É o que se chama de falta da boa-fé familiar, motivação suficiente como causa à deserdação (DIAS, 2022, p. 448).
Infere-se que, por exemplo, um genitor ausente, no sentido de não prestar qualquer tipo de assistência, deveria ser excluído da sucessão do filho, que falece deixando um patrimônio considerável. Todavia, isso não se mostra possível, já que não há essa hipótese de exclusão entre as possibilidades legais e porque a lei não permite interpretação judicial quanto aos motivos de deserdação.
Dias (2022, p.453) cita que “no caso de o filho falecer sem descendentes, o genitor recebe o patrimônio amealhado por ele sem qualquer auxílio paterno. ”
Isso se mostra um desprestígio com o titular do acervo patrimonial. Imagina-se que o autor da herança tenha recebido, durante toda sua vida, apenas o apoio de um tio, que lhe criou, educou e prestou todos os tipos de assistência. Quando ocorre a sua morte, havendo apenas o seu genitor e o tio vivos, metade da herança deve ser resguardada àquele que foi omisso na sua obrigação.
Cabe destacar que a afetividade jurídica se mostra externalizada pelas condutas objetivas de dever de cuidado, de solidariedade, bem como de criação, de educação e de assistência (CARVALHO, 2020).
Pode-se dizer, com isso, que, entre as hipóteses de deserdação, deveria constar a possibilidade de excluir da sucessão um genitor que se apresentou ausente na vida do filho, de modo a violar o princípio da afetividade, com a não observância da obrigação de prestar assistência, de ser solidário, de criar, de educar, em entre outros.
Lôbo (2023) assinala que o princípio da afetividade entre pais e filhos só deixa de existir com a morte ou com a perda do poder familiar. Nessa perspectiva, pode se dizer que, se não houver uma dessas causas, é obrigação do pai praticar a afetividade para com o filho.
Diante do exposto, o abandono afetivo deveria acarretar a exclusão por deserdação, uma vez que a afetividade jurídica, ações objetivas, que evidenciam o cuidado, a solidariedade, a assistência, entre outros, deve ser observada por todos os membros de uma família. Na relação entre pais e filhos, esse dever se evidencia ainda mais, haja vista que os genitores possuem um papel fundamental na formação dos filhos, que não contempla apenas a assistência material, mas todo o conjunto de condutas que possibilitam esse desenvolvimento.
7 CONCLUSÃO
No decorrer do presente estudo, verificou-se que a constitucionalização/ despatrimonialização do Direito Civil brasileiro representou uma conquista à sociedade, na medida em que se tornou necessário interpretar e aplicar esse ramo do Direito, de acordo com os preceitos constitucionais. Em razão disso, houve uma maior valorização da pessoa em detrimento do patrimônio.
Esse fenômeno conferiu mais importância aos princípios do ordenamento jurídico, bem como ensejou a criação de novos, a fim de se adequar às atuais realidades sociais, como o princípio da afetividade.
Observou-se que a doutrina majoritária o reconhece como um princípio constitucional, que se aplica ao campo das relações de família e que deve ser entendido como um conjunto de ações, como a solidariedade, o auxílio, o cuidado, bem como a obrigação de criar e de educar.
Nessa perspectiva, foi possível concluir que a afetividade não se encontra ligada apenas ao aspecto sentimental, mas também à esfera das condutas que devem existir por parte de cada ente familiar, de modo que esse caráter objetivo que importa ao Direito.
Por se tratar de um princípio tão importante do Direito de Família, a afetividade deve ser observada por todos, de forma que a não obediência deve acarretar consequências.
Nesse contexto, surge o Direito das Sucessões, com o instituto da deserdação, que versa sobre a exclusão de herdeiro necessário do seu direito à legítima. Ocorre que, como estudado, as causas que autorizam a deserdação integram um rol taxativo, o que inviabiliza a punição de herdeiros por outros motivos mais graves, como o abandono afetivo.
Essa limitação de possibilidades ao titular da herança se deu, uma vez que, com o Código de 2002, não houve uma atualização do instituto, que apenas representou, basicamente, uma cópia do diploma de 1916.
A taxatividade das causas de deserdação, como visto, configura prejuízo ao autor do acervo hereditário, na medida em que o força a deixar os seus bens a herdeiros necessários que contra ele praticaram condutas desabonadoras, como o abandono afetivo. Isso ocorre, simplesmente, por essa conduta não se encontrar entre as hipóteses da lei.
Nesse caso, até o presente momento, se, por exemplo, um pai praticar o abandono afetivo em ralação ao filho, de forma a não participar de sua criação, educação, bem como não lhe prestar qualquer outro tipo de auxílio paterno, ainda assim terá direito à herança do filho, caso este não tenha deixado descendentes.
Isso se mostra totalmente descabido e incoerente, já que não há qualquer tipo de punição a esse sujeito que violou o seu dever como pai. Isto é, o filho constrói o seu acervo patrimonial, mesmo diante da ausência de uma pessoa a qual representaria papel fundamental em sua formação, e, apesar disso, mostra-se obrigado a contemplá-la com sua herança.
Considerando que não há a possibilidade de deserdação do ascendente pelo descendente, em caso de abandono afetivo, por não existir essa hipótese entre o rol legal, que é taxativo, faz-se necessária uma reforma do instituto.
Recentemente, o Senado instalou uma comissão de juristas, para que haja a atualização do Código Civil de 2002, uma vez que já se passaram mais de 20 anos da última atualização do diploma (AGÊNCIA SENADO, 2023).
Entre os membros da comissão, conforme Agência Senado (2023), encontra-se Maria Berenice Dias, uma grande doutrinadora que defende a necessidade de se incluir o abandono afetivo como hipótese de deserdação.
Nesse sentido, espera-se que haja uma reforma no instituto da deserdação, seja para incluir a possibilidade de exclusão do herdeiro necessário por abandono afetivo, seja para tornar o rol exemplificativo, de forma a se permitir interpretação extensiva pelo juiz.
Não há coerência em manter as mesmas hipóteses do Código Civil de 1916, para essa forma de exclusão sucessória, porquanto já se passaram mais de um século. A sociedade evoluiu e, junto, surgiram novos direitos, novos princípios, novas demandas, o que requer sempre a atualização do ordenamento jurídico.
Dessa forma, o presente trabalho buscou demonstrar a importância da afetividade, bem como a necessidade de incluir a sua violação, abandono afetivo, entre as causas da exclusão sucessória por deserdação. O texto legal, que versa acerca dessa privação à herança, carece de inovação urgente, a fim de que não se obrigue o titular do acervo hereditário a contemplar herdeiro necessário que contra ele praticou condutas desonrosas.
REFERÊNCIAS
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[1] Acadêmica do Curso de Direito da Universidade Professor Antônio Edson Velano – UNIFENAS.
Orientador: professor Matheus Correia Diniz Ferreira.
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