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Dano extrapatrimonial
A questão da ocorrência de dano extrapatrimonial indenizável no âmbito das relações familiares é tema bastante controvertido e ainda pouco explorado pela doutrina, além de timidamente amparado pela jurisprudência pátria, visto que a matéria encontra resistência, apesar de não ser novo o tema, dado que pode ocorrer em várias vertentes no seio da família como tem proclamado Brebbia, em especial, "em relação aos danos extra-patrimoniais efetuados por um terceiro a um membro da família, bem como por um membro da família a um terceiro pelo qual deve responder outro integrante da família"
No âmbito da separação e do divórcio, a doutrina se debate na atualidade sobre a possibilidade ou não de aplicação dos princípios gerais da responsabilidade civil e também sobre a questão da extensão a ser dada a reparação do dano em concreto seja pelos fatos geradores do dissenso ou pelo dano causado pelo fato da separação ou do divórcio propriamente dito. Cabe ressaltar - e aqui se quer deixar claro - que o propósito deste ensaio é abrir o debate sobre tão intrincado tema e não banalizar simplesmente o instituto da responsabilidade civil, em especial o dano moral porque o tema central não se avoca no trato de reparação genérica; mas daquela que diante dos pressupostos fáticos produza necessariamente um dano de difícil ou de impossível reparabilidade como é comum na espécie, dano estes que se afiguram como graves infrações aos deveres do casamento consideradas essenciais à pessoa humana: deveres de estima e respeito que afetam a integridade física e moral, o nome, a boa fama, a dignidade, a honradez, a imagem, a liberdade e a intimidade do outro cônjuge, etc. Não serão, pois os incômodos do dia a dia da vida em comum a amparar o pedido de indenização. Haverão de ser expressivos. E nem se fale que tal ponto de vista afigura-se como oportunista, indigna e contraria a realidade brasileira, em especial quando vemos a diário a banalização dos sentimentos.
Independente da causa que provocou à dissolução do casamento, alguns doutrinadores admitem a indenizabilidade por dano ao cônjuge inocente como Yussef Said Cahali, José de Aguiar Dias, Eduardo de Oliveira Leite, Regina Beatriz Tavares da Silva et alii.
Forçosamente implica redargüir, que nem sempre o efeito da separação ou do divórcio causará dano em todos os casos; este só se dará quando houver a conjugação de todos os pressupostos e diante de cada caso a ser analisado de acordo com as circunstâncias, uma vez guardado a relação de causalidade, adequada com a antijuridicidade do fato, até porque, isto implica raciocinar que nem sempre que exista dano haverá lugar a reparação, até porque, o judiciário por certo não patrocina a prebenda; odiosa sinecura! Haverá de estar presente causa segura.
Em sede preliminar, cabe indagar da questão da especialidade das normas de direito de família que, segundo algum setor da doutrina, são incompatíveis com aquelas próprias do âmbito negocial ou relativas a responsabilidade por atos ilícitos já que à míngua de regra expressa. Impreciso, quiçá referir-se sobre a máxima neminem laedere. O argumento antes esposado, á guisa de resposta, se pode estimar, prima facie de que, em face de tão proclamada repersonalização do Direito Privado agindo sobre o influxo dos direitos sociais que reclama evolução da tutela do individuo à da pessoa, como reverba Heloísa Carpena em sua monografia. "Sob o ponto de vista axiológico avança-se rumo aos valores do bem comum e da justiça social sob a perspectiva constitucional de construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3o) em vista a dignidade da pessoa humana (art. 1o, III) ambos da Constituição Federal". O Brasil, fazendo a opção pelo direito geral da personalidade, foi taxativo, elegendo no preâmbulo constitucional a dignidade da pessoa humana como fundamento da República.
A Constituição Federal como elemento unificador do sistema jurídico está acima de qualquer norma, devendo as demais subsumir com atuação harmonizadora da legislação infraconstitucional em razão dos princípios ali inscritos já citados como vislumbra José Afonso da Silva. Neste contexto, o direito de família deve adequar suas normas ao direito civil constitucional e respeitar sua hierarquia ao princípio de não causar dano, e como tal, a fim de solucionar seus conflitos deve buscar recurso na teoria geral do direito civil, pois a proclamada especialidade do direito de família não está a justificar a violação de princípios jurídicos, em especial aquele de - neminem laedere - que tem hierarquia constitucional, já que é um direito implícito porque tornam a dignidade e a integridade física e psíquica da pessoa humana, direitos maiores que reclamam respeito, o que, impõe submissão às normas de direito de família em não violentá-los em nome de sua especialidade, até porque, tais deveres são inerentes as uniões, em especial ao casamento, como proclama o artigo 1.511 verbis: "O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direito e deveres dos cônjuges" assegurados pela Constituição conforme artigo 226, onde a "A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado ". Assim, faltar aos deveres, infringir direitos de um e outro, implica afetar a dignidade da pessoa humana, o que, frente a determinados danos, está a reclamar solução. Na opinião de Aparecida Amarante " não é por serem casados que os cônjuges ficam excluídos da responsabilização por atentados contra a honra do consorte".
De ressaltar, existem outros ramos do direito, que por sua própria especialidade não ficam excluídos da apreciação do direito comum, como é o caso do direito empresarial, reais e outros, cujas normas se mesclam às gerais e como tal, o "direito de família não cria, por si só um terceiro ramo do direito e nem impede a aplicação de princípios gerais" como sustenta Castan Tobeñas. Nesta linha de idéias, é de admitir-se a obrigação de serem reparados os danos que porventura sejam causadores e ou que originaram o divórcio ou a separação, como vem sendo aplicado no dano causado pela ruptura de noivados entre outros na mesma esfera. Também, a vingar a tese da auto-suficiência das normas de direito de família seria sustentar equivocadamente que só existe o dever de indenizar quando estivermos frente a normas expressas, o que afronta o próprio Código Civil, artigos 186, 187, 927, e também a Constituição Federal no caso específico, nos artigos 5o, V e X e 226, parágrafo 8o, o que leva este último a dar nova concepção ao Direito de Família, na qual se permita reconhecer a incidência da responsabilidade por dano moral nas relações familiares.
Agora, qual a extensão deste dever de indenizar? Na linha de raciocínio que seguimos, parece indiscutível que o dano a ser indenizado seja o dano moral oriundo de uma conduta antijurídica, no caso, quando culmina com o desenlace, desde que configure grave afetação aos legítimos interesses pessoais diante da gravidade da ofensa. Tais aspectos podem ser analisados na legislação alienígena como nos códigos suíço, grego e peruano, entre outros como o italiano e o francês que prevêem o "dano ao projeto de vida". Também cabe pensar mais adiante na hipótese do dano experimentado pelo próprio divórcio ou separação em si mesmo (res ipsa loquitur), pelas seqüelas próprias da frustração de todo um projeto de vida, companhia, assistência, educação da prole, solidão, depressão, status social, etc., "0 que em muitas vezes acabam por aniquilar as legítimas expectativas dos cônjuges" como preleciona Francisco Ferrer.
Outro ponto tormentoso é a questão da culpa, já que o nosso sistema privado não trata dos graus de culpa (grave e leve). Logo, frente a uma hipótese de dano em conseqüência do fato gerador do desenlace o que nos leva a pensar que a conduta antijurídica haverá de ser aquela de índole dolosa e acentuada dependendo das circunstâncias, que deverá afigurar-se como grave violação aos deveres relacionais, como o dever de fidelidade, por exemplo, no caso de adultério, prática de sevicias ou lesões que inabilita ao trabalho (CC, rts. 927 e 950), difamação com repercussão social ou laboral, moléstia grave, entre outros. Outra não é a opinião de Sérgio Cavaliere Filho quando se manifesta favorável ao "dever ser reputado dano moral, a dor, vexame, sofrimento ou humilhação que, fugindo à normalidade, interfira intensamente no psicológico do indivíduo, causando-lhe aflições, angústia e desequilíbrio em seu bem estar".
O quantum indenizatório a compensar a lesão é outro fator tormentoso, fato este que comete ao juiz o seu temperamento, confiando-se, ipso facto aos Tribunais a determinação em concreto dos parâmetros, atendendo às concepções dominantes no tráfico jurídico, sendo os artigos 186, 187, 927, 953 e 954 do Código Civil como disposições paradigmáticas de certo afrouxamento da vinculação do julgador à lei do reconhecimento deste a um poder modelador, "fatores que caracterizam os Direitos contemporâneos em várias latitudes" como expressado por Dário Manuel Lentz de Moura Vicente.
O critério para aferição, inclusive esposado na opinião da maioria da doutrina s.m.j, deverá, levando-se, em conta, a intensidade do sofrimento experimentado, o grau de dolo ou culpa do ofensor, a repercussão da ofensa, além da situação econômica das partes (razoabilidade e eqüidade), servindo o valor encontrado como fator pedagógico de desestimulo ou inibição aos figurantes da prática, bem como para a sociedade como demonstração da repulsa do direito as práticas antijurídicas. O reconhecimento da infração aos direitos da personalidade está claramente evidenciado no voto do Ministro Waldemar Zveiter, como se transcreve:
"(...) O dano moral, como é cediço, é a lesão praticada contra os direitos da personalidade, considerados essenciais à pessoa humana (integridade física e moral, nome, fama, dignidade, honradez, imagem, liberdade, intimidade). Tamanha é a dimensão e a relevância desses direitos que sua tutela jurídica foi elevada ao patamar constitucional. Isto porque, a par do ressarcimento de natureza material, o indivíduo é titular de direitos integrantes de sua personalidade, não podendo a ordem jurídica conformar que tais garantias sejam impunemente atingidas".
No contexto destas considerações nem caberia cogitar-se que a pensão alimentícia poderia cumprir tal desiderato, pois a mesma tem caráter assistencial e não indenizatório. Cumpre, ainda ressaltar que a interrupção da convivência entre os cônjuges, em si, não é causa de responsabilidade, pois é melhor a ruptura a continuar um projeto de vida falido, tormentoso e insustentável.
Notas
1 - Algumas decisões como o (Resp. 37.051, de 17.04.01 do STJ), inclusive outros julgados do TJSP, proferido pela 4a Câmara Cível, na Apelação Cível n. 220.943-1/1, de 09.03.95 e outro da 6a Câmara de Direito Privado, na Apelação Cível n. 272.221-1/2, de 10.10.96.
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(*) Professor adjunto da UFPEL, Especialista em Direito Civil e Empresarial, Master Experto Universitário em Direito do Consumo e Orientação ao Consumidor, Doutor em Direito de Informação do Consumidor pela Universidade de Granada e Advogado: thadeu@ufpel.tche.br
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