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O curioso caso da “Lei Benjamin Button” – lei nº. 14.713-2023
Elton Costa
Servidor do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Compõe o gabinete e atua como conciliador na 3ª Vara Cível da Comarca de Caxias – Família, Sucessões, Infância e Juventude, Tutela, Curatela e Ausência. Mestrando em Direito e Gestão de Conflitos (UNIFOR). Especialista em Direito de Família e Sucessões (ESAPI). Professor e Palestrante.
Obviamente o título do texto é uma alusão ao filme estrelado por Brad Pitt em 2008. Para fins de contextualização do presente diálogo, vale a pena rememorarmos sinteticamente a história de Benjamin retratada no drama hollywoodiano: Benjamin Button é um homem que nasce idoso e rejuvenesce à medida que o tempo passa.
Digressões vencidas, passemos a tratar da Lei nº. 14.713 de 30 de outubro de 2023. A nova lei modifica o art. 1.584 do Código Civil, em seu parágrafo segundo, bem assim acrescenta o art. 699-A ao código processualista:
Art. 1º O § 2º do art. 1.584 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 1.584. § 2º Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, encontrando-se ambos os genitores aptos a exercer o poder familiar, será aplicada a guarda compartilhada, salvo se um dos genitores declarar ao magistrado que não deseja a guarda da criança ou do adolescente ou quando houver elementos que evidenciem a probabilidade de risco de violência doméstica ou familiar.
Art. 2º A Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), passa a vigorar acrescida do seguinte art. 699-A: “Art. 699-A. Nas ações de guarda, antes de iniciada a audiência de mediação e conciliação de que trata o art. 695 deste Código, o juiz indagará às partes e ao Ministério Público se há risco de violência doméstica ou familiar, fixando o prazo de 5 (cinco) dias para a apresentação de prova ou de indícios pertinentes.
A dicção da lei, numa primeira vista, parece bem simples: havendo elementos que evidenciem a probabilidade de risco de violência doméstica e familiar não deverá ser aplicada a modalidade compartilhada da guarda dos filhos (art. 1.584, § 2º, CC). Ainda, antes de iniciada a audiência de mediação e conciliação nas ações de guarda, o juiz indagará – verbo impositivo – às partes (genitores) e ao Ministério Público se há risco de violência doméstica ou familiar.
Apesar da fácil interpretação semântica da norma, os caminhos que serão trilhados daqui para frente nas varas de família do país não guardam a mesma facilidade. Algumas questões se desvelam quando observamos a lei com uma vista um pouco mais apurada, vejamos: (I) como se dará essa audiência na prática forense? (II) quais seriam os tais elementos que evidenciem a probabilidade de risco de violência doméstica e familiar? (III) aumentarão os casos de “falsas denúncias” de violência a fim de conseguir a guarda unilateral? E, por fim, (IV) estaríamos regredindo para a guarda unilateral como sendo a regra?
Obviamente cada leitor pode ter seus próprios questionamentos acerca da nova lei, afinal, a perspectiva de visão difere diante do contexto fático e filosófico de cada um, todavia, acredito que as questões aqui suscitadas merecem o diálogo.
I - Como se dará essa audiência na prática forense?
Primeiramente, parece-me que o legislador se equivocou ao incluir o art. 699-A no CPC, pois, sendo claramente uma menção à audiência do 695, mais sensato seria incluir o art. 695-A no diploma processualista. Preciosismo técnico, alguns podem achar. Porém, a disposição lógica dos artigos facilita a interpretação do aplicador e, consequentemente, leva a uma aplicação sistêmica das normas.
Seguindo. A prática forense atual é de que a audiência de mediação e conciliação de que trata o art. 695 do CPC sejam conduzidas por mediadores e conciliadores e não pelo magistrado. Quem nunca foi intimado para comparecer ao Cejusc para a audiência de mediação? Claro que em várias comarcas do país essa audiência é presidida pelo juiz da unidade, mas essa não é a regra.
A lei 14.713/2023 é bem clara: “o juiz indagará” às partes e ao Ministério Público. Dessarte, audiência de guarda conduzida por mediador – seja no Cejusc, seja na própria vara de família – seria nula por contrariar a lei? Poderia o mediador “indagar” às partes se há risco de violência doméstica ou familiar? (art. 699-A, do CPC). Naquela questão, parece-me que sim. Nesta, certamente não. Percebem as implicações de ordem prática trazidas pela nova lei.
Precisamos ressaltar que a imposição legislativa para que o juiz realize as audiências de medicação e conciliação quando o litígio envolve guarda dos filhos não é novidade introduzida pela 14.713. Só a título exemplificativo podemos observar o disposto nos art. 1.584 do CC e o 694 do CPC:
Art. 1.584. (...). § 1º Na audiência de conciliação, o juiz informará ao pai e à mãe o significado da guarda compartilhada, a sua importância, a similitude de deveres e direitos atribuídos aos genitores e as sanções pelo descumprimento de suas cláusulas. (Incluído pela Lei nº 11.698, de 2008).
Art. 694. Nas ações de família, todos os esforços serão empreendidos para a solução consensual da controvérsia, devendo o juiz dispor do auxílio de profissionais de outras áreas de conhecimento para a mediação e conciliação.
Qual seria o caminho mais salutar a ser trilhado daqui em diante? Talvez os juízos de família começarem a adotar pautas específicas de mediação e conciliação onde as audiências seriam presididas pelo magistrado? Parece uma solução bastante razoável. Mas qual a viabilidade prática disso acontecer em breve tempo? O sistema de justiça está minimamente apto para suportar essa mudança? Afinal, a Lei 14.713 já está em vigor!
As implicações de ordem fática no cotidiano forense relacionadas às audiências de guarda não serão simples de serem ultrapassadas, mas as medidas precisam ser adotadas para efetivar a nova lei, gostemos ou não.
II - Quais seriam os tais elementos que evidenciem a probabilidade de risco de violência doméstica e familiar?
Esse aspecto me preocupa ainda mais! Sempre que a subjetividade ganha ares de protagonismo tem-se a possibilidade clara de decisões enviesadas e injustas.
Quando a lei dita balizas bem especificas e limitativas, as chances das decisões serem mais justas aumentam, pois, a objetividade permeará as decisões, ao menos na sua maioria. Outro aspecto relevante acerca da possível subjetividade nas decisões diz respeito à insegurança jurídica, ou seja, se cada julgador escolher quais critérios adotar para cada caso em concreto a probabilidade disso se tornar uma torre de Babel aumenta exponencialmente.
Mas afinal, quais seriam esses tais “elementos que evidenciem a probabilidade”? Confesso a vocês que minha hermenêutica sofre até mesmo para entender essa assertiva. Começo a imaginar como serão as audiências de guarda. Fotos da criança com marcas de palmada; áudios descontextualizados do filho reclamando do genitor (sentido latu); declarações da cuidadora em desfavor desse ou daquele genitor; B.O relatando supostas (ainda não comprovadas) violências familiares perpetradas por um genitor em desfavor do outro.
O presente rol é meramente exemplificativo. Experimente parar 5 minutos para pensar em quais “elementos que evidenciem a probabilidade” poderiam ser usados pelos genitores e certamente precisará de um remédio para dor de cabeça ou, pior ainda, para enjoo.
III - Aumentarão os casos de “falsas denúncias” de violência a fim de conseguir a guarda unilateral?
Infelizmente, infelizmente mesmo, à luz da experiência forense, estamos diante de uma possibilidade real e preocupante.
Quem nunca teve ao menos a notícia de um caso onde a genitora – peço a permissão para fazer esse recorte de gênero, mas, que fique bem claro que não se trata de uma generalização – levou ao processo de divórcio acusações de violência contra ela praticadas pelo cônjuge ou, até mesmo, de abuso do genitor em relação ao filho para fins de afastar os dois (pai e filho)?
Os motivos para essas situações acontecerem são variados, mas, em regra, dizem respeito às questões mal resolvidas no campo da conjugalidade e que, infelizmente para os filhos, desencadeiam uma parentalidade disfuncional. Reservo-me a encerrar por aqui o diálogo sobre o assunto, não por ausência de importância da temática, mas, sim, por receio de me furtar ao assunto principal da presente análise. Quem sabe em outro momento.
Enfim, se o sistema de justiça, em regra, tem sérias dificuldades para gerenciar as “falsas acusações” atualmente, como será se os casos aumentarem? Seria o caso de aumentar a baliza acerca da credibilidade dessas acusações? Mas qual seria a altura do sarrafo?
Percebem o quão complexo já o é, e a tendência é que se torne mais ainda, gerir adequadamente os conflitos familiares que envolvem os interesses dos filhos crianças e adolescentes?
Uma coisa me parece cristalina neste momento, e espero estar equivocado: para o genitor - pai ou mãe - que intenta usar o filho como ferramenta de “gozo” na sua insana e eterna luta contra o outro genitor a nova lei será uma ferramenta afiada, capaz de produzir cicatrizes indeléveis, principalmente em quem mais deveriam proteger!
IV – Nosso ordenamento jurídico estaria regredindo para a guarda unilateral como sendo a regra?
Alguns podem imaginar: perspectiva absurda essa! Segue uma pequena contextualização histórica acerca da entrada da guarda compartilhada no nosso ordenamento jurídico que talvez ajude a entender onde quero chegar com esse questionamento.
Somente em 2008, com o advento da Lei nº. 11.698, a guarda compartilhada foi legalmente instituída em nosso ordenamento jurídico, alterando o Código Civil no que diz respeito à proteção dos filhos:
Art. 1.583. A guarda será unilateral ou compartilhada. (Redação dada pela Lei nº 11.698, de 2008). § 1 o Compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um só dos genitores ou a alguém que o substitua (art. 1.584, § 5 o ) e, por guarda compartilhada a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns. (Incluído pela Lei nº 11.698, de 2008).
Art. 1.584. (...). §2º Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, será aplicada, sempre que possível, a guarda compartilhada. (Incluído pela Lei nº 11.698, de 2008).
Nota-se, primeiramente, que até 2008 a regra era a guarda unilateral. Verifica-se, ainda, que a modalidade compartilhada não passou a ser a regra, pois deveria ser aplicada sempre que possível. “Tai a guarda compartilhada que vocês tanto queriam”, mas só a aplicaremos se for possível. Dá para imaginar que qualquer desarmonia entre os genitores tornaria a sua aplicação impossível e, claro, sob a bênção da lei.
Em 2014 nasceu a Lei nº. 13.058 que impôs a modalidade compartilhada da guarda como a regra a ser observada, salvo, em duas situações apenas: inaptidão de um dos genitores ou se um deles declarasse que não desejava a guarda.
Art. 1.584. A guarda, unilateral ou compartilhada, poderá ser: § 2 o Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, encontrando-se ambos os genitores aptos a exercer o poder familiar, será aplicada a guarda compartilhada, salvo se um dos genitores declarar ao magistrado que não deseja a guarda do menor. (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014)
Aos menos avisados pode até parecer fácil essa jornada normativa trilhada para sairmos da guarda unilateral (até 2008) e chegarmos na compartilhada como sendo a regra a ser adotada. Recomendo a leitura das justificativas dos PLs que versaram sobre o assunto.
Onde quero chegar? Estaríamos com a esta nova lei, que criou mais uma exceção à guarda compartilhada fazendo o caminho inverso? Não estamos, mesmo que ingenuamente, retrocedendo ao tempo em que a guarda compartilhada era a exceção?
Tal qual a estória do Benjamin Button, não estaria a Lei 14.713/2023 fazendo com que a regra da guarda dos filhos, atualmente a compartilhada - adulta, madura, fruto de muito diálogo - retroceda à sua infância normativa, voltando ao tempo em que modalidade unilateral era regra?
Espero que, diferente do filme – Benjamin rejuvenesce até morrer (perdão pelo spoiler para quem não assistiu) - a guarda compartilhada não sucumba a mais essa alteração legislativa e que a nobre intenção do legislador seja alcançada: proteger as crianças e os adolescentes da indelével violência doméstica e familiar.
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