Artigos
Proposta de Reforma do Código Civil Visa Ampliar Proteção Jurídica aos Refugiados no Brasil
Patrícia Gorisch[1]
O Brasil, no contexto de uma realidade global cada vez mais interligada, confronta-se com o desafio de integrar indivíduos que se deslocam de suas nações de origem em virtude de conflitos, perseguições e ameaças diversas. A revisão do Código Civil, sob a perspectiva das sugestões por nós apresentadas à comissão do IBDFAM, reflete um compromisso com a empatia e a inclusão social. As deliberações em curso não apenas formulam um arcabouço jurídico mais abrangente, mas também evocam questionamentos sobre as repercussões práticas, culturais e sociais dessas inovações legais.
À medida que o Brasil enfrenta a crescente realidade de acolher pessoas deslocadas por conflitos e perseguições globais, surge uma proposta de reforma legislativa que busca adaptar o Código Civil às necessidades desses indivíduos. Esta iniciativa, apresentada para deliberação da comissão do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), sinaliza um avanço significativo em direção à consolidação da equidade e justiça social.
A questão dos refugiados é uma das mais prementes do século XXI. O aumento global dos fluxos migratórios devido a conflitos armados, perseguições étnicas, religiosas, e desastres naturais amplificados pelas mudanças climáticas, forçou muitos países a repensarem suas políticas e leis de acolhimento e integração.
O Brasil, que tradicionalmente tem sido visto como uma nação de braços abertos, também enfrenta desafios significativos quando se trata de lidar com essa realidade complexa e multifacetada. Sua legislação, sobretudo no que tange ao Código Civil, necessita adaptar-se para garantir proteção e direitos que estejam alinhados com os compromissos internacionais de direitos humanos e que atendam às especificidades da situação dos refugiados.
Historicamente, o Brasil ratificou a Convenção de 1951 Relativa ao Estatuto dos Refugiados e seu Protocolo de 1967, bem como adotou uma legislação específica para refugiados em 1997, conhecida como Lei do Refúgio. Entretanto, as disposições civis, em particular as que regulam questões de família, casamento, divórcio e reconhecimento de uniões estáveis, permaneceram relativamente inalteradas frente aos novos contextos sociais e humanitários.
A proposta enviada por nós e em análise pela Comissão do IBDFAM, visa a modernização do Código Civil para contemplar as realidades dos refugiados, buscando simplificar processos legais que muitas vezes constituem barreiras para a plena integração dessas pessoas na sociedade. Por exemplo, refugiados podem enfrentar dificuldades em reunir a documentação necessária para casamentos civis ou encontrar obstáculos burocráticos no processo de reunificação familiar devido à rigidez das leis atuais.
Tais reformas legislativas são cruciais não apenas para os refugiados, mas também para o Brasil como um todo, pois refletem o respeito às convenções internacionais e um compromisso com uma sociedade inclusiva e multicultural. A iniciativa de reformar o Código Civil nesta direção é um passo relevante para que o Brasil continue a ser um exemplo de hospitalidade e integração em um mundo cada vez mais globalizado e diversificado.
No atual cenário legislativo brasileiro, delineia-se a possibilidade de expansão normativa do Direito Civil com o advento de um projeto de lei voltado à regulamentação de direitos dos refugiados. Esta proposição, agora sob análise da comissão do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), que está em processo de recepção de sugestões para alterações no Código Civil, promete instituir garantias que vislumbram a equidade e a justiça para aqueles em situação de refúgio.
Reunião Familiar
No âmago desta proposição legislativa está o direito à reunificação familiar, uma garantia que a proposta enviada pretende fortalecer. A proposta de inclusão de um artigo no código civil propõe uma sistemática que prevê a agilização dos processos de reunião de refugiados com seus familiares, considerando a realidade do deslocamento involuntário, e visando garantir a manutenção do núcleo familiar como um pilar de estabilidade para esses indivíduos.
O direito à reunificação familiar é um pilar central nas legislações internacionais sobre refugiados, destacando-se como uma das dimensões fundamentais da proteção humanitária. Este direito reconhece a família como unidade básica da sociedade e um ambiente natural para o crescimento, bem-estar e proteção dos indivíduos. Para refugiados, a possibilidade de se reunirem com suas famílias não é apenas uma questão de direito humano essencial, mas também uma das pedras angulares para a reconstrução de suas vidas após a desestabilização causada pelo deslocamento forçado.
Na realidade enfrentada por refugiados, o processo de reunificação familiar muitas vezes se torna sinuoso e repleto de desafios burocráticos. Documentação perdida ou inexistente, procedimentos legais complexos e lentidão nos sistemas de processamento podem manter famílias separadas por períodos extensos, exacerbando o sofrimento psicológico e dificultando a integração no país de acolhimento.
Com a proposta de revisão do Código Civil brasileiro, busca-se estabelecer mecanismos mais eficazes para a agilização desses processos. A inclusão de um artigo específico destinado a tratar da reunificação de famílias de refugiados reflete um esforço legislativo em reconhecer e priorizar a urgência desses casos. O objetivo é garantir que, uma vez reconhecido o status de refugiado, o indivíduo possa iniciar rapidamente o procedimento para trazer seus familiares próximos.
A nova sistemática proposta poderia envolver a simplificação de requisitos documentais, estabelecendo procedimentos claros e de rápida execução para a verificação de laços familiares e a consequente autorização de entrada e permanência dos familiares no Brasil. Além disso, a proposta poderia contemplar disposições que ajudem a salvaguardar o direito à moradia, ao trabalho e ao acesso a serviços sociais e de saúde para os familiares reunidos, garantindo assim a estabilidade e a dignidade do núcleo familiar.
Esta iniciativa legislativa também está alinhada com os compromissos assumidos pelo Brasil sob o Marco Global de Resposta a Refugiados (Global Compact on Refugees), que sublinha a importância dos Estados garantirem o direito à reunificação familiar. Com a consolidação deste direito no Código Civil, o Brasil dá um passo significativo no sentido de reforçar suas políticas de acolhimento e integrar plenamente os refugiados na sociedade, ao mesmo tempo em que respeita e promove os laços familiares que são essenciais para o suporte emocional e a recuperação desses indivíduos.
Desburocratização do Casamento Civil
A desburocratização do casamento civil para refugiados representa uma resposta empática e prática às adversidades enfrentadas por aqueles que foram forçados a deixar seus países sob circunstâncias adversas. Refugiados frequentemente fogem de seus lares com pouca ou nenhuma documentação pessoal e, em muitos casos, a obtenção de novos documentos pode ser uma tarefa quase impossível devido à falta de acesso a embaixadas, registros civis ou autoridades competentes em seus países de origem.
O processo atual para o casamento civil no Brasil exige uma série de documentos, como identidade, certidão de nascimento e comprovação de estado civil, que muitos refugiados simplesmente não têm condições de fornecer. A proposta de revisão legislativa sugerida visa, portanto, flexibilizar esses requisitos, permitindo que o casamento civil seja acessível também àqueles que estão em situação de refúgio.
A simplificação pode incluir a aceitação de declarações pessoais testemunhadas ou a implementação de procedimentos alternativos para comprovação de identidade e estado civil. Isso poderia ser operacionalizado por meio de entrevistas detalhadas, a utilização de testemunhos de terceiros, ou o reconhecimento de documentos emitidos por organizações internacionais como o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR).
Essas medidas visam não somente facilitar o exercício do direito ao casamento, mas também garantir que os refugiados possam desfrutar dos benefícios legais decorrentes da união civil. No Brasil, o casamento é uma instituição que confere uma série de direitos e proteções legais, como a regularização de status migratório, direitos de herança, benefícios sociais, e a possibilidade de inclusão do cônjuge em planos de saúde e de seguridade social.
A desburocratização do casamento civil seria, então, um passo importante na integração de refugiados na sociedade brasileira, reconhecendo a necessidade de adaptação das estruturas legais para acomodar as realidades dessas populações vulneráveis. A intenção é que, com menos barreiras legais e administrativas, os refugiados possam reconstruir suas vidas de maneira digna e segura, fortalecendo também o tecido social do país acolhedor.
A proposta também aponta para a simplificação do rito matrimonial entre refugiados, de acordo com nossa proposta enviada para o IBDFAM. Entendendo as dificuldades inerentes à obtenção de documentação em cenários de crise humanitária, busca-se uma forma de validar o matrimônio civil na ausência de documentação tradicional, atenuando as exigências formais para a celebração do casamento.
Simplificação do Divórcio
A simplificação do processo de divórcio para refugiados é um componente vital da proposta de reforma do Código Civil Brasileiro. Tal medida reconhece as circunstâncias excepcionais pelas quais os refugiados passam, que frequentemente envolvem deslocamentos forçados e a ruptura de relações familiares preexistentes.
Para refugiados, os desafios de navegar por um sistema jurídico estrangeiro podem ser exacerbados pela barreira da língua, falta de compreensão dos procedimentos legais locais, e acesso limitado a serviços jurídicos e assessoria. A exigência de documentação oficial, que muitas vezes é perdida ou inacessível devido à natureza de suas migrações, pode tornar o processo de divórcio desproporcionalmente difícil.
A iniciativa de simplificar o divórcio para refugiados visa a reduzir essas barreiras, tornando o procedimento mais acessível e menos oneroso. Isso poderia ser alcançado através de várias mudanças processuais, tais como: Permitir que refugiados que não possuem certidões de casamento ou documentos de identidade tradicionais utilizem declarações juramentadas ou outros tipos de prova que demonstrem a existência do casamento; Implementar um processo mais rápido para refugiados, que reconheça as dificuldades únicas que eles enfrentam, talvez até mesmo criando vias legais específicas para suas situações; Oferecer serviços de tradução e assistência jurídica gratuita para refugiados, ajudando-os a entender e a cumprir os requisitos legais para o divórcio; Reconhecer e acomodar as diferenças culturais em práticas matrimoniais e de divórcio, assegurando que as decisões legais sejam informadas e respeitosas com as tradições e valores dos indivíduos; Assegurar que os direitos dos refugiados sejam protegidos durante o processo de divórcio, especialmente em casos envolvendo custódia de crianças, pensão alimentícia e divisão de bens.
Ao remover esses obstáculos burocráticos e tornar o processo de divórcio mais justo e acessível, o sistema jurídico brasileiro estaria não apenas reforçando o compromisso com os direitos humanos, mas também facilitando a integração de refugiados na sociedade. Isso permitiria que indivíduos em situações de refúgio pudessem concluir capítulos de suas vidas que foram afetados por circunstâncias além de seu controle, e começar a reconstruir sua autonomia e independência no Brasil.
A proposta estende sua abrangência à descomplicação do processo de divórcio para refugiados, visando à manutenção dos direitos individuais e à facilitação do acesso à justiça. Esta questão é uma das que estão sendo ponderadas pela comissão, com a intenção de remover obstáculos burocráticos desnecessários.
Reconhecimento de Uniões Estáveis Plurais
O reconhecimento de uniões estáveis plurais para refugiados incorpora uma faceta importante no contexto da reforma do Código Civil brasileiro. Ao considerar tal reconhecimento, o Brasil sinaliza uma postura de respeito e inclusão à diversidade cultural, levando em conta práticas e arranjos familiares que podem diferir significativamente da norma jurídica tradicional brasileira.
As uniões estáveis plurais referem-se a relações afetivas entre mais de duas pessoas que são reconhecidas como um núcleo familiar. Enquanto o conceito pode se chocar com as normas jurídicas e sociais predominantes no Brasil, muitas culturas ao redor do mundo praticam formas de relacionamentos familiares plurais, incluindo, mas não limitado a, a poligamia.
A proposta de reconhecimento dessas uniões para refugiados sugere várias considerações. É imperativo que todas as partes envolvidas na união estável plural consintam livremente no arranjo, sem qualquer forma de coação ou abuso.As uniões estáveis plurais não devem infringir os direitos humanos internacionalmente reconhecidos. Isso significa que elas devem ser estabelecidas sem discriminação, abuso ou violência e com respeito à igualdade de todas as partes.
Ao reconhecer legalmente tais uniões, o estado poderia garantir que todos os indivíduos envolvidos tenham seus direitos protegidos em termos de propriedade, herança, pensão e outros benefícios legais.
Reconhecer as uniões estáveis plurais de refugiados seria uma forma de respeitar as práticas culturais dos refugiados, ao mesmo tempo em que se integram às estruturas legais do Brasil.
Introduzir reconhecimento legal de uniões estáveis plurais pode apresentar desafios, incluindo como estas uniões se relacionariam com o sistema legal atual, que é baseado em uniões monogâmicas.
Seria necessário um esforço de sensibilização e educação para que tanto refugiados quanto a sociedade brasileira compreendam os direitos e responsabilidades associados a tais uniões.Políticas de transição e apoio podem ser necessárias para ajudar refugiados que entram ou saem dessas uniões estáveis, assegurando que seus direitos sejam mantidos durante o processo.
A inclusão de uniões estáveis plurais na proposta de reforma do Código Civil reflete uma abordagem progressista, voltada para a inclusão e o reconhecimento da diversidade. Seria um passo significativo para acomodar a realidade dos refugiados que trazem consigo práticas matrimoniais que são parte integral de suas identidades culturais e pessoais.
Adicionalmente, o reconhecimento de uniões estáveis plurais de refugiados é um tema de grande relevância dentro da proposta de reforma do Código Civil. Propusemos a inclusão com vistas a respeitar a diversidade cultural, desde que haja consentimento mútuo entre as partes e que não haja infração aos direitos humanos estabelecidos.
Considerações Finais
As alterações propostas para o Código Civil brasileiro, que estão sendo avaliadas pela comissão do IBDFAM, carregam uma significativa expectativa de proporcionar uma proteção mais eficaz e ampla aos refugiados, que buscam no Brasil um novo lar e uma nova esperança de vida. Estas propostas refletem o potencial de evolução do sistema jurídico brasileiro em resposta a um fenômeno global complexo e diversificado, e a sua capacidade de promover uma integração mais humanizada e justa para esses indivíduos.
A revisão do código pode representar um avanço importante, não apenas no que diz respeito ao direito individual dos refugiados mas também no reconhecimento e na valorização de suas experiências e culturas. As mudanças sugeridas indicam a disposição do Brasil em ajustar-se às dinâmicas sociais contemporâneas, reconhecendo a mobilidade humana como uma realidade permanente e procurando adaptar suas estruturas legais para oferecer respostas mais adequadas e inclusivas.
Importante destacar que o sucesso dessas mudanças depende de um processo deliberativo inclusivo e abrangente. Isso requer o engajamento não só dos profissionais do direito e dos formuladores de políticas, mas também de organizações da sociedade civil, acadêmicos, e dos próprios refugiados. Sua experiência vivencial e expertise são essenciais para assegurar que as reformas atendam às necessidades reais e fomentem uma integração significativa e respeitosa.
Finalmente, o processo de reforma do Código Civil em relação à condição jurídica dos refugiados no Brasil é uma oportunidade valiosa para reafirmar os compromissos internacionais do país com os direitos humanos e com a solidariedade global. A concretização dessas propostas poderá solidificar o papel do Brasil como um ator humanitário proativo e como uma sociedade que não apenas acolhe a diversidade, mas que também é fortalecida por ela.
As modificações propostas, atualmente em fase de avaliação pela comissão do IBDFAM, têm o potencial de fortalecer a condição jurídica dos refugiados no Brasil, promovendo a dignidade e a equidade de tratamento. Além disso, são indicativos do preparo do país para a incorporação da pluralidade cultural e da expansão do entendimento de instituições familiares dentro do espectro jurídico. Permanece evidente a necessidade de um diálogo contínuo e a contribuição de todos os setores da sociedade brasileira neste processo deliberativo.
Tags: #ReformaCódigoCivil
#ProteçãoRefugiados
#DireitosRefugiadosBrasil
#ReunificaçãoFamiliar
#CasamentoCivilSimplificado
#DivórcioFacilitado
#UniõesEstáveisPlurais
#InclusãoSocialRefugiados
#IBDFAMReformaLegislativa
#JustiçaParaRefugiados
#DignidadeRefugiado
#DesburocratizaçãoImigração
#EmpatiaLegislaçãoBrasileira
#CulturaDiversidadeLegal
#BrasilPaísDeAcolhida
#NormativasHumanitárias
#AcessoÀJustiça
#LegislaçãoInclusiva
#PluralidadeCulturalDireito
#AdvocaciaDireitosHumanos
[1] Fundadora da @sociedadedeadvogadas. Doutora e Mestre em Direito Internacional. Pós Doutora em Direitos Humanos pela Universidad de Salamanca, Espanha. Pós Doutora em Direito da Saúde pela Università Degli Studi di Messina, Itália. Coordenadora do Observatório dos Direitos do Refugiados da Unisanta. Presidente da Comissão Nacional de Dir. Refugiados do IBDFAM.
Os artigos assinados aqui publicados são inteiramente de responsabilidade de seus autores e não expressam posicionamento institucional do IBDFAM