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Aspectos jurídicos da "barriga solidária" - útero de substituição - doação temporária do útero - cessão de útero: um diálogo entre Direito, Medicina e Psicologia
“Um ato de amor que o
Direito contemplou.”
(Ricardo Politano
Inicialmente, cumpre esclarecer que um diálogo entre Medicina, Direito e Psicologia deve se pautar, por óbvio, pela mais absoluta ética.
E, por falar em ética, muito embora esse não seja o objetivo fulcral deste artigo, mas vertente elementar a norteá-lo, vamos repisar aqui um importante conceito.
Com efeito, seria possível citar importantes e marcantes filósofos do passado, tais como Aristóteles e Kant, mas preferimos o conceito/citação do filósofo brasileiro contemporâneo, Mario Sergio Cortella, que muito nos atende, ao conceituar ética como “o conjunto de valores e princípios que usamos para responder a três grandes questões da vida: (1) quero?; (2) devo?; (3) posso? Nem tudo que eu quero eu posso; nem tudo que eu posso eu devo; e nem tudo que eu devo eu quero. Você tem paz de espírito quando aquilo que você quer é ao mesmo tempo o que você pode e o que você deve” (sic).
As perguntas que o eminente filósofo nos sugere a refletir serão por nós respondidas in fine.
Tema relativamente novo para o Direito brasileiro e, notadamente, para o Direito de Família, é a denominada gestação por substituição, vulgarmente e corriqueiramente abordada como “barriga solidária”.
Saliente-se, neste passo, que existem outras nomenclaturas utilizadas, tais como, “útero de substituição”, “doação temporária do útero”, “cessão de útero” – mas, jamais, barriga de aluguel! Isto porque em que pese a legalidade em diversos países do mundo afora, tais como, EUA, Índia, Tailândia, Ucrânia e México, no Brasil há expressa vedação, embora existam inúmeras discussões no âmbito acadêmico.
Nesta altura, o leitor deve estar se perguntando, o que vem a ser a “barriga solidária”?
Trata-se de uma gestação em que um casal (obviamente com problemas para gestação) procede à doação/cessão dos gametas que serão fecundados in vitro e implantados no útero de uma mulher, a qual os recebe, de forma voluntária, que por sua vez irá gerar o bebê em seu útero.
Consigne-se que a mulher em que será implantado o material genético do casal não terá, em caso de fecundação, gestação e nascimento, quaisquer direitos sobre o embrião, nascituro e o bebê, seja no âmbito das relações jurídicas inerentes ao parentesco, bem como todos os direitos decorrentes, tais como filiação (nem biológica e tampouco social), eventuais direitos de guarda ou visitas, alimentos, sucessão etc.
Se para aquela que receberá o material nenhum vínculo cria, lado outro, os vínculos inerentes a tais institutos jurídicos do Direito de Família e Sucessões, acima referenciados, existirão entre o casal que cedeu/doou o material genético e a criança.
Dessa forma, numa terminologia jurídica mais apropriada, denomina-se doadora a mulher que, voluntariamente, deseja gestar por substituição, e donatários o casal que fornece o material genético.
Mas dissemos acima que o material genético é implantado no útero de uma mulher. Indaga-se: qualquer mulher? A resposta é negativa.
A matéria é regulada pelo Conselho Federal de Medicina e Conselho Nacional de Justiça, preceitos
O Conselho Federal de Medicina, abordou a temática, e assim se manifestou por meio da Resolução nº 2.320/2022, ora em vigor “Adota normas éticas para a utilização de técnicas de reprodução assistida – sempre em defesa do aperfeiçoamento das práticas e da observância aos princípios éticos e bioéticos que ajudam a trazer maior segurança e eficácia a tratamentos e procedimentos médicos, tornando-se o dispositivo deontológico a ser seguido pelos médicos brasileiros e revogando a Resolução CFM nº 2.294, publicada no Diário Oficial da União de 15 de junho de 2021, Seção I, p. 60” (sic).
Como Justificativa para a edição da Resolução, o Conselho Federal de Medicina, trouxe o arcabouço legal e principiológico, in verbis,
“O CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (CFM), no uso das atribuições que lhe confere a Lei nº 3.268, de 30 de setembro de 1957, regulamentada pela Decreto nº 44.045, de 19 de julho de 1958, alterado pelo Decreto nº 10.911, de 22 de dezembro de 2021; a Lei nº 12.842, de 10 de julho de 2013; e o Decreto nº 8.516, de 10 de setembro de 2015, e
CONSIDERANDO o Código de Ética Médica, especialmente o artigo 15 e seus parágrafos e o artigo 40;
CONSIDERANDO a infertilidade humana como um problema de saúde, com implicações médicas e psicológicas, e a legitimidade do anseio de superá-la;
CONSIDERANDO o aumento das taxas de sobrevida e cura após os tratamentos das neoplasias malignas, possibilitando às pessoas acometidas um planejamento reprodutivo antes de uma intervenção com risco de levar à infertilidade;
CONSIDERANDO a postergação da gestação pela população, evidenciada pelas estatísticas atuais, e a diminuição da probabilidade de engravidar com o avanço da idade; CONSIDERANDO que o avanço do conhecimento científico permite auxiliar nos processos de reprodução humana a todas as pessoas que deles necessitem;
CONSIDERANDO o reconhecimento e qualificação como entidade familiar a união estável homoafetiva pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal, na sessão de julgamento de 5 de maio de 2011, ao julgar a ADI 4.277 e a ADPF 132;
CONSIDERANDO a necessidade de harmonizar o uso dessas técnicas com os princípios da ética médica;
CONSIDERANDO o disposto na Resolução CFM nº 2.217, de 27 de setembro de 2018, que aprova o Código de Ética Médica;
CONSIDERANDO o Decreto nº 678, de 8 de novembro de 1992;
CONSIDERANDO a Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005, que dispõe sobre a criação do Conselho Nacional de Biossegurança; e
CONSIDERANDO, finalmente, o decidido na sessão plenária do Conselho Federal de Medicina, realizada em 1º de setembro de 2022” (sic)
Com efeito, o item VII da Resolução 2.320/2022, do Conselho Federal de Medicina, estabelece as condições para a “barriga solidária”, a saber:
VII – SOBRE A GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO (CESSÃO TEMPORÁRIA DO ÚTERO)
As clínicas, centros ou serviços de reprodução podem usar técnicas de reprodução assistida para criar a situação identificada como gestação de substituição, desde que exista uma condição que impeça ou contraindique a gestação.
- A cedente temporária do útero deve:
a) ter ao menos um filho vivo;
b) pertencer à família de um dos parceiros em parentesco consanguíneo até o quarto grau (primeiro grau: pais e filhos; segundo grau: avós e irmãos; terceiro grau: tios e sobrinhos; quarto grau: primos);
c) na impossibilidade de atender o item b, deverá ser solicitada autorização do Conselho Regional de Medicina (CRM).
2. A cessão temporária do útero não pode ter caráter lucrativo ou comercial e a clínica de reprodução não pode intermediar a escolha da cedente.
3. Nas clínicas de reprodução assistida, os seguintes documentos e observações devem constar no prontuário da paciente:
a) termo de consentimento livre e esclarecido assinado pelos pacientes e pela cedente temporária do útero, contemplando aspectos biopsicossociais e riscos envolvidos no ciclo gravídico - puerperal, bem como aspectos legais da filiação;
b) relatório médico atestando a adequação da saúde física e mental de todos os envolvidos ;
c) termo de Compromisso entre o(s) paciente(s) e a cedente temporária do útero que receberá o embrião em seu útero, estabelecendo claramente a questão da filiação da criança;
d) compromisso, por parte do(s) paciente(s) contratante(s) de serviços de reprodução assistida, públicos ou privados, com tratamento e acompanhamento médico, inclusive por
equipes multidisciplinares, se necessário, à mulher que ceder temporariamente o útero, até o puerpério;
e) compromisso do registro civil da criança pelos pacientes, devendo essa documentação ser providenciada durante a gravidez; e
f) aprovação do(a) cônjuge ou companheiro(a), apresentada por escrito, se a cedente temporária do útero for casada ou viver em união estável” (sic, g.n.).
Portanto, por meio de uma análise perfunctória da resolução do Conselho Federal de Medicina, pode-se constatar que, de fato, não é qualquer mulher que pode realizar a gestação por substituição.
Neste passo, o advogado familiarista deve orientar adequadamente os envolvidos, sempre com muita ética.
Por sua vez, no intuito de conferir segurança jurídica às técnicas de reprodução assistida (RA), e resolução do CFM, o Conselho Nacional de Justiça, fundamentando-se no artigo 227, parágrafo 6º, da Constituição Federal e 1.609 da Lei nº 10.406/2002 (Código Civil), editou, alguns provimentos acerca da temática e o que se encontra em vigor é o Provimento 63, editado em 14 de novembro de 2017, sob a gestão do eminente ministro corregedor João Otávio de Noronha que “Institui modelos únicos de certidão de nascimento, de casamento e de óbito, a serem adotadas pelos ofícios de registro civil das pessoas naturais, e dispõe sobre o reconhecimento voluntário e a averbação da paternidade e maternidade socioafetiva no Livro “A” e sobre o registro de nascimento e emissão da respectiva certidão dos filhos havidos por reprodução assistida” (sic)
O caput do artigo 17, do provimento 63/2017 do CNJ, traz em seu bojo os documentos exigidos para o caso de doação voluntária de gametas ou de gestação por substituição e, por sua vez, o § 1º dispõe que não constará no registro o nome da parturiente, informado na declaração de nascido vivo, devendo ser apresentado termo de compromisso firmado pela doadora tempora?ria do u?tero.
Dessa forma, repisa-se que os termos do compromisso e regras infralegais relativas à temática asseguram que a mulher/gestante que cederá o útero para a implantação do material genético não terá quaisquer direitos sobre o embrião, o nascituro e ou o bebê, não havendo quaisquer direitos de filiação guarda, visita, pensão alimentícia ou direitos sucessórios.
Lado outro, o casal que cedeu o material genético para a fertilização tem todos os direitos e deveres advindos do Direito de Família e de Sucessões.
Foi, por assim dizer, um importantíssimo passo, pois, até 15/3/2016 com o provimento 52/2016, revogado pelo provimento 63/2017, o registro da criança só poderia ocorrer por meio de decisão judicial, situação essa que, além de contrariar o princípio da dignidade da pessoa humana, demandando tempo, constrangimento e insegurança jurídica.
A partir de então, os cartórios devem registrar, haja vista o comando normativo existente.
Por derradeiro, salientamos que, além do médico e do advogado, mister a participação, neste planejamento/procedimento, de um psicólogo, que deverá acompanhar a doadora do útero e os donatários.
A bem da verdade, o advogado deve ser cauteloso, orientando sempre de maneira proficiente e criteriosa.
Ao receber em seu escritório o casal e os envolvidos para a gestação por substituição, tome a devida cautela e, primeiramente, avalie se não se trata de “acordo financeiro/existência de lucratividade” e, caso positivo, oriente-os para a não realização, ante a expressa vedação legal e possível cometimento de crime.
1) caso seja um ato de amor e, portanto, voluntário, certifique-se da existência de laudos médicos atestando a impossibilidade de uma gravidez e os motivos que levaram o médico a sugerir tal procedimento.
2) sugira que a doadora e os donatários procurem um psicólogo para compreender todo o processo.
3) caso tudo esteja na mais perfeita ordem, solicite certidão de casamento/nascimento/escritura de união estável, laudos médicos e psicológicos.
4) proceder à elaboração de ata notarial cujo ato jurídico será o “consentimento prévio para registro de nascimento em nome de outrem”, pela opção de gestação por substituição (“barriga solidária”). Na aludida ata notarial, deverá constar as declarações da doadora (se casada ou unida estavelmente, acompanhada do cônjuge ou convivente) e da donatária (do mesmo modo, acompanhada do cônjuge ou convivente), sendo certo que tais declarações deverão restringir à ciência inequívoca de que o nascituro(s)/filho(s) concebido(s) terá(ão) o reconhecimento para com os donatários (aqueles que doaram/cederam o material genético). É dizer, mais especificamente, que todos os direitos e deveres inerentes à relação paterno/materno/filial e, por assim dizer, do Direito de Família e Sucessões filiação/alimentos/guarda/direito de convivência/sucessão etc.) não poderão, em hipótese nenhuma, guardarem qualquer relação com a doadora (“barriga solidária”), eis que desprovido de qualquer suporte jurídico.
Mas lembram-se quando dissemos, no início deste artigo, que a ética deve permear não só o estudo, como também o caso concreto? Ademais, nos prontificamos a responder três importantes reflexões do eminente filósofo Mario Sergio Cortella, que nos levariam, em tese, a classificar algo como ético.
Vamos lá.
Primeira pergunta: “quero”? Resposta: o desejo do cliente é o dever do advogado.
Segunda pergunta: “devo”? Resposta: em se tratando de relação advogado/cliente, deve-se, sempre, buscar a satisfação do interesse do seu representado, desde que se observe os princípios constitucionais e as normas infralegais.
Terceira pergunta e, acrescento eu, a principal: “posso”? Resposta: se estiveres diante de um caso em que haja (i) ausência de lucratividade entre os envolvidos; (ii) laudo médico conclusivo pela possibilidade da gestação por substituição; (iii) laudo psicológico favorável; (iv) parentesco em 4º grau entre doadora e donatária: (v) enfim, obediência aos comandos da resolução do Conselho Federal de Medicina e do provimento do Conselho Nacional de Justiça, bem como aos princípios constitucionais e eceitos do ordenamento jurídico aplicáveis à espécie, são o bastante para uma conclusão positiva.
Logo, parafraseando o aludido filósofo: “Você tem paz de espírito quando aquilo que você quer é ao mesmo tempo o que você pode e o que você deve”.
Por derradeiro, a “barriga solidária” deverá ser planejada, atendo-se à necessidade de um diálogo entre três ciências: Direito, Medicina e Psicologia, acompanhadas pari passu pela mais absoluta ética.
Ricardo Politano, é advogado atuante, inscrito na OAB/SP nº 160.756, especialista em Direito de Família e Sucessões pela Escola Paulista de Direito; Especialista em Direito Civil e Processual Civil pela Escola Paulista de Direito; diversos cursos extracurriculares; membro associado do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, Ex-membro de diversas comissões da Ordem dos Advogados do Brasil/SP;
e-mail: ricardo@politano.com.br
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