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Lar Referencial: um Equívoco Interpretativo da Lei 13.058-14
Fabiano Rabaneda dos Santos é advogado especialista em Direito de família e sucessões
O tema poder familiar, previsto no artigo 1.634 do Código Civil, sempre foi objeto de muitos debates e interpretações, ultimamente agravada pela necessidade absurda de litígio pela guarda dos filhos, sempre com foco na posse física da criança.
Em meio a tantas discussões, surge um questionamento que vem chamando a atenção do sistema protetivo da infância e daqueles que defendem a funcionalidade das famílias: a fixação do "lar referencial" dos filhos.
É muito comum as sentenças tratarem do tema de forma a atribuir o lar referencial na residência de apenas um dos genitores, que por diversos fatores, tem se preponderado ser o da mãe.
A cultura do patriarcado defende a necessidade de se determinar o lar materno como o de referência para os filhos, perpetuando a ideia de que as mulheres devem ser as únicas responsáveis pela criação da prole. Tal crença tem sido historicamente prejudiciais para as mulheres, já que tem por objetivo limitar seus direitos e oportunidades numa visão tradicional que reforça a ideia de que o seu lar e seu dever deve ser um espaço específico para educação e cuidados com os filhos.
Na contramão deste retrógrado pensamento, o artigo 1.634 do Código Civil – que trata do poder familiar – que estabelece os direitos e deveres de ambos os genitores em relação aos seus filhos, assegura de forma igual a ambos o dever de decisão sobre questões relativas à vida, educação e saúde da sua prole.
Em nenhum momento, o referido artigo menciona a necessidade de estabelecer um lar específico como referencial para a criança, pelo contrário, em sintonia com o § 3º do artigo 1.583, o inciso V do artigo 1.634 do Código Civil atribui a ambos os genitores a prerrogativa apenas de consentir a mudança permanente dos filhos para outro município.
O texto original do artigo 1.634 do Código Civil era omisso na questão da fixação de domicílio municipal, sendo alterado em 2014 pela Lei nº 13.058/14, oportunizando ao patriarcado uma interpretação equivocada do termo “cidade considerada base de moradia dos filhos” para “residência considerada base de moradia dos filhos”.
Evidente que o conceito errôneo do "lar referencial" vem da necessidade prática de determinar um domicílio fixo para fins de referência situacional da prole, afetando com tal fixação o próprio conteúdo do “município referencial”, este atrelado às políticas públicas, como matrícula em escolas e acesso a serviços de saúde.
A fixação do lar na residência de um dos genitores contribui para práticas nocivas e que hostilizam as relações familiares, incutindo nos filhos que a outra casa não é a casa deles, ou, quem sabe, um lar secundário ou até mesmo temporário.
O equívoco em interpretar a lei dessa forma é prejudicial para a prole por diversas razões, criando a noção de que um dos lares é menos importante ou menos válido do que o outro, quando tal interpretação contraria o próprio espírito da lei, que é o de assegurar a corresponsabilidade parental.
A corresponsabilidade parental é um conceito central do poder familiar, significa que ambos os genitores têm iguais responsabilidades e deveres em relação à criação dos filhos. Se aceitarmos a ideia de um "lar referencial", estaremos, em essência, minando e minimizando esse conceito.
É fundamental lembrar que os filhos, em meio ao turbilhão emocional que pode ser a separação de seus genitores, necessitam sentir-se amados, valorizados e cuidados em ambos os lares. A noção de um lar referencial leva a criança a perceber um dos lares como menor, o que gera sentimentos de rejeição, insegurança e instabilidade emocional.
Ao crescer, a criança busca estabilidade e segurança. Em um contexto de separação, essa estabilidade é encontrada na certeza de que ambos os genitores continuarão a amá-la e que não dispensarão os cuidados necessários para que cresça cidadã. Estabelecer um lar como referencial cria uma hierarquia artificial entre os lares, o que afetando negativamente a percepção da criança sobre onde ela é verdadeiramente bem-vinda e amada.
Ao se encontrar em seu lar, independente que seja o dito ser da mãe ou o do pai, mesmo que a criança fique mais tempo com um dos genitores em determinado período, mesmo assim, isso não deve ser visto como uma indicação de que esse lar lhe seja o principal, sempre respeitando o sentimento particular que os filhos tenham por aquele local.
Ao interpretar a mudança trazida pelo artigo 2º da Lei nº 13.058/14 como estabelecedora de um "lar referencial", cria-se obstáculos práticos para o regular trânsito dos filhos entre lares, tornando a prática como fonte de conflito desnecessário entre os genitores, prejudicando substancialmente o bem-estar dos filhos.
Como o bem-estar dos filhos deve ser sempre a prioridade máxima em qualquer discussão sobre guarda, a interpretação equivocada do instituto “fixação de município referencial”, ao criar a noção de um "lar referencial", leva, indiscutivelmente, a situações que contrariam esse princípio fundamental.
A fixação de um "lar de referência" não encontra amparo na legislação vigente, eis que não se encontra previsto na lei a necessidade de se estabelecer um domicílio específico como ponto de referência. Pelo contrário, a legislação enfatiza a importância da corresponsabilidade parental e da manutenção de relações familiares saudáveis.
Muitas das decisões proferidas sobre o assunto têm por fundamento que “o lar de referência do menor, na guarda compartilhada, é o local onde ele desenvolve sua referência espacial, onde se relaciona com vizinhos, amigos, escola”(PORTELA, 2020), como se a criança não desenvolvesse tais relações quando convivendo no seu outro domicílio.
Em suma, a interpretação equivocada do conceito de "lar referencial" a partir da Lei nº 13.058/14 representa um desvio do espírito da legislação relativa ao poder familiar, eis que a ideia de fixar um lar como referencial para os filhos é prejudicial, pois cria uma hierarquia artificial entre os lares, minando a corresponsabilidade parental e afetando negativamente o bem-estar emocional dos filhos.
Como o verdadeiro objetivo da legislação é assegurar que ambos os genitores tenham igualdade de direitos e deveres em relação à criação dos filhos, independentemente de onde residam, é essencial que o sistema judiciário compreenda a importância de promover relações familiares saudáveis e de garantir o bem-estar das crianças durante situações de separação dos genitores, implicando com isso em não apenas evitar a ideia de um "lar referencial", mas também incentivar a cooperação entre os genitores para o benefício das crianças na ideia de dupla residência.
Em última análise, sob o prisma da Doutrina da Proteção Integral, a proteção dos direitos e interesses das crianças deve ser a prioridade máxima em qualquer debate sobre a guarda dos filhos e a interpretação equivocada da lei que leva à fixação de um "lar referencial" não serve ao melhor interesse das crianças, mas sim cria obstáculos e conflitos desnecessários, sendo fundamental promovermos uma abordagem mais equilibrada e sensível que reconheça a importância de ambos os lares na vida dos filhos e promova a corresponsabilidade parental. Isso, por sua vez, contribuirá para um ambiente mais saudável e estável para o desenvolvimento das crianças em situações familiares complexas.
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Fontes consultadas:
Brazil, Glicia Barbosa de Mattos. "Quais os Efeitos Psicológicos, para as Crianças, na Fixação de Duas Casas?" Revista IBDFAV Família e Sucessões, n°33, Maio/Junho de 2019, páginas 49-69.
BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 jan. 2002.
BRASIL. Lei nº 11.698, de 13 de junho de 2008. Dispõe sobre a guarda compartilhada. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 16 jun. 2008.
BRASIL. Lei nº 13.058, de 22 de dezembro de 2014. Dispõe sobre a guarda compartilhada. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 23 dez. 2014.
Salzer e Silva, Fernando. "Fixação do domicílio na guarda compartilhada." Conjur. Publicado em 18 de fevereiro de 2017. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-fev-18/fernando-salzer-silva-fixacao-domicilio-guarda-compartilhada. Acessado em 21 de setembro de 2023.
TJ-DF. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Processo nº 0714117-08.2018.8.07.0016. Segredo de Justiça. Acórdão da 6ª Turma Cível. Relator: ARQUIBALDO CARNEIRO PORTELA. Data de Julgamento: 22/07/2020. Publicado no Diário de Justiça Eletrônico em 13/08/2020. Página não cadastrada.
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