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Um silêncio que fala
A legislação brasileira é omissa em relação à presunção de filiação originada por meio de inseminação artificial caseira, realizada por casais lésbicos, pois ao tratar de inseminação artificial heteróloga, o art. 1.597, V[1], faz expressa menção ao consentimento do “marido”. Se essa fosse a única barreira enfrentada pelas mulheres que optam por tal procedimento, uma interpretação extensiva do dispositivo “talvez” solucionaria o problema. Todavia, o art. 17, II, do Provimento 63/2017[2] do Conselho Nacional de Justiça vem sendo o maior óbice enfrentado por essas mães, que, inevitavelmente, precisam buscar o Poder Judiciário para garantir a dupla maternidade na certidão de nascimento de seus filhos, ante a omissão legislativa sobre o assunto.
Ao tratar do assento de nascimento de filho havido de técnica de reprodução assistida, o artigo 17, II, do Provimento 63/2017 exige para fins de registro e de emissão da certidão de nascimento, a apresentação da declaração do diretor da clínica que realizou a reprodução assistida, documento que, obviamente, não existe numa inseminação artificial caseira. Assim, a ausência dessa declaração tem se tornado um entrave na presunção de filiação das crianças que são filhas de mulheres casadas ou que vivem em união estável, mas que adotaram a inseminação artificial caseira (igualmente heteróloga), pois não tinham como arcar com os custos de uma reprodução artificial assistida.
Nesse contexto, vivemos um contrassenso, pois as mulheres que buscam a inseminação caseira são justamente aquelas que não tem tantas condições financeiras, mas que, devido a uma omissão legislativa, precisam do Poder Judiciário para garantir os direitos de filiação de seus filhos.
Em razão das diversas ações judiciais nesse sentido, o CNJ já foi provocado, inclusive pelo IBDFAM, que pediu a revogação do inciso II, do art. 17, do Provimento 63/2017, no Pedido de Providências de nº 0002889-82.2022.2.00.0000[3]. De outro lado, parte da doutrina se preocupa com as questões de bioética relacionadas à reprodução e, por isso, exige rigor nas técnicas de reprodução artificial humana.
Todavia, não me parece razoável esse excesso de “zelo”.
Parece-me que o fundamento bioético argumentado para rechaçar a inseminação caseira como forma legal de presunção de filiação, na verdade, é uma maneira de mascarar o preconceito daqueles que o sustentam em relação aos casais homoafetivos. Explico.
Se um casal heterossexual sem condições financeiras optar pela inseminação artificial caseira, qualquer um deles poderá registrar a criança como filho de ambos no Tabelionato de Notas, sem problema algum, bastando levar a Declaração de Nascido Vivo e a Certidão de Casamento ou Escritura de União Estável deles.
Ninguém questionará a esse casal como aquela criança foi gerada. Ninguém questionará a esse casal se eles fizeram exames de saúde antes. Ninguém questionará se existe relação de consanguinidade entre eles. Apenas por ser apresentada por um casal heterossexual, irá se presumir que aquela criança compartilha o mesmo material genético dele, o que, automaticamente, já o transforma em “moralmente ético”.
Esquece-se que, na maioria das vezes, as pessoas não pedem exames de saúde antes do ato sexual (tem gente que não pergunta nem o nome), não deixam de se casar ou de se unir com alguém porque aquela pessoa tem determinada doença. Em outras palavras: na prática, as condições morais e bioéticas não fazem parte do cálculo da reprodução humana natural.
Então, quando, na prática, as tantas regras impostas só atingem os casais homoafetivos, em especial, aqueles que não têm elevadas condições financeiras para pagar os altos custos da reprodução assistida, tais regras se revelam preconceituosas e elitistas. Para além disso, são barreiras aos direitos constitucionais de igualdade, da isonomia entre filhos, do planejamento familiar e da dignidade da pessoa humana.
Diante disso, o legislador precisa produzir uma norma que contemple a filiação advinda da inseminação artificial caseira para proteger as famílias que assim se constituem, preocupando-se com as peculiaridades que as envolvem, de modo a não aumentar a vulnerabilidade de um grupo já oprimido socialmente.
[1] Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:
[...]
V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.
[2] Art. 17. Será indispensável, para fins de registro e de emissão da certidão de nascimento, a apresentação dos seguintes documentos:
[...]
II – declaração, com firma reconhecida, do diretor técnico da clínica, centro ou serviço de reprodução humana em que foi realizada a reprodução assistida, indicando que a criança foi gerada por reprodução assistida heteróloga, assim como o nome dos beneficiários;
[3]Disponível em: https://ibdfam.org.br/noticias/11017/CNJ+pede+manifesta%C3%A7%C3%A3o+do+CFM+e+ANVISA+sobre+pedido+de+provid%C3%AAncias+do+IBDFAM+que+afeta+insemina%C3%A7%C3%A3o+caseira#:~:text=Ainda%20conforme%20o%20IBDFAM%2C%20o,chamada%20de%20'insemina%C3%A7%C3%A3o%20caseira%22. Acesso em 5 set. 2023
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