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União Poliamorosa e Direitos de Refugiados: O Case Gaúcho e a Perspectiva Internacional
Patrícia Gorisch[1]
A recente decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que reconheceu a união de Letícia, Denis e Keterlin, adicionou uma nova camada de complexidade ao debate sobre a legalização do poliamor no Brasil. Entretanto, essa discussão não é única ao contexto brasileiro; ela também tem implicações internacionais, particularmente para refugiados provenientes de culturas onde o poliamor é mais aceito ou praticado.
Legislação Brasileira e Desafios Internacionais
No Brasil, tanto a Constituição quanto o Código Civil apoiam a ideia de uma união monogâmica. Contudo, o caso gaúcho demonstra uma flexibilidade crescente no Judiciário, possivelmente pavimentando o caminho para futuras reformas legislativas. Esse cenário contrasta com a situação de refugiados provenientes de países como alguns da África Subsaariana e Polinésia, onde formas não-monogâmicas de relacionamento são mais comuns. Nessas nações, o poliamor ou a poligamia frequentemente fazem parte da cultura e das tradições locais, embora nem sempre sejam reconhecidos legalmente.
O Poliamor em Contextos de Refúgio
Refugiados que praticam o poliamor enfrentam desafios legais e sociais adicionais quando buscam refúgio em países com leis mais restritivas sobre relações conjugais. Muitos têm suas formas de relacionamento não reconhecidas, enfrentam preconceito e podem até serem criminalizados. Essa falta de reconhecimento legal tem implicações graves, incluindo dificuldades em obter status legal para todos os membros da relação e problemas de reunificação familiar.
Comparações Jurídicas
A decisão do tribunal gaúcho pode não ter um impacto direto no tratamento de refugiados no Brasil, mas abre um precedente para discussões futuras. Em um contexto mais globalizado, o reconhecimento de relações poliamorosas pode facilitar a integração de refugiados de culturas poliamorosas ou poligâmicas, tornando-se uma questão de direitos humanos. Nos Estados Unidos, por exemplo, a cidade de Somerville, Massachusetts, reconheceu uniões poliamorosas em 2020, mas isso ainda é uma exceção e não a norma.
A Importância da Questão Cultural no Contexto do Refúgio
Em sociedades onde o poliamor ou formas não-monogâmicas de relacionamento são culturalmente aceitas ou pelo menos toleradas, a perseguição com base nessa forma de vida seria menos provável. No entanto, refugiados vindos de países onde o poliamor é criminalizado ou altamente estigmatizado podem enfrentar riscos significativos, incluindo violência, discriminação e até pena de morte.
É vital que os sistemas de asilo reconheçam a complexidade e a importância dos fatores culturais ao avaliar pedidos de refúgio. Ignorar a questão cultural pode resultar em decisões que colocam a vida dos requerentes em risco, especialmente quando são devolvidos a um ambiente hostil.
Impactos na Negativa dos Direitos
Uma falha em reconhecer o poliamor como uma parte válida da identidade cultural de um refugiado pode ter graves consequências. A negativa de direitos básicos, como reunificação familiar, pode ser uma realidade. Além disso, a falta de reconhecimento legal do poliamor pode dificultar a integração em sociedades que também são predominantemente monogâmicas.
O impacto vai além dos direitos legais e entra na esfera do bem-estar psicológico. O estigma associado ao poliamor pode resultar em isolamento social, o que é agravado para refugiados que já enfrentam desafios significativos em adaptar-se a uma nova cultura e ambiente.
No Brasil, como em muitos outros países, a legislação está estruturada para favorecer relações monogâmicas, o que torna a questão ainda mais pertinente. Ainda que haja casos judiciais, como o do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que sinalizam uma abertura para a inclusão do poliamor na jurisprudência, essa ainda é uma área cinzenta da lei. Isso pode ser especialmente desafiador para refugiados em relações poliamorosas que buscam proteção no Brasil.
Reflexões Finais
A decisão do TJ-RS e a situação dos refugiados são dois lados da mesma moeda que aponta para a necessidade de reavaliar como a legislação aborda relações não-monogâmicas. Ambos os casos ilustram as complexidades envolvidas na adaptação de sistemas legais a realidades sociais em constante evolução.
O caso de Letícia, Denis e Keterlin não apenas levanta questões importantes sobre a diversidade de relações afetivas dentro do Brasil, mas também traz à tona um tema pertinente no contexto da migração internacional. A sua luta pela regularização, como a de muitos refugiados, destaca a necessidade de atualizações legislativas que acompanhem a evolução das configurações familiares e as complexidades da vida moderna.
Deste modo, as discussões em torno do poliamor e sua legalização não são apenas questões domésticas, mas globais, que necessitam de uma abordagem inclusiva e humanizada, especialmente em um mundo cada vez mais interconectado e diversificado.
O poliamor, como uma questão cultural, merece ser seriamente considerado em pedidos de refúgio. Não fazer isso é perpetuar formas de perseguição e negar a indivíduos o direito fundamental de viver de acordo com sua identidade cultural e amorosa. À medida que as normas sociais evoluem, também deve evoluir nossa compreensão das várias formas que o amor e os relacionamentos podem tomar, garantindo que os direitos humanos sejam universais, independentemente da forma de família escolhida.
Referências
BRASIL. Código Civil (2002). Artigos 1521, 1723.
BRASIL. Lei nº 6.515, de 26 de dezembro de 1977. Dispõe sobre o Divórcio.
BRASIL. Constituição (1988). Artigo 226.
BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher.
BARKER, Meg-John; LANGDRIDGE, Darren. Understanding Non-monogamies. Routledge, 2010.
CHAVEZ, Karma. Queer Migration Politics: Activist Rhetoric and Coalitional Possibilities. University of Illinois Press, 2013.
THIS MASSACHUSETTS TOWN SHOWS WHAT A POLYAMOROUS RECOGNITION ORDINANCE CAN LOOK LIKE. The New York Times, 2020. Disponível em: https://www.nytimes.com/2020/07/01/us/somerville-polyamorous-domestic-partnership.html. Acesso em: 04/09/2023..
[1] Coordenadora da Pós Graduação em Direito das Famílias e Sucessões da Unisanta. Advogada. Presidente Nacional da Comissão de Direitos dos Refugiados do IBDFAM. Membro da Comissão do IBDFAM-Tec. Doutora e Mestre em Direito Internacional. Pós Doutora em Direitos Humanos (Universidad de Salamanca, Espanha), Pós Doutora em Direito da Saúde (Università degli Studi di Messina, Itália) e Pós Doutora em Psicologia (Universidad de Flores, Argentina).
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