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Direito das Sucessões nos vinte anos do Código Civil
- Discurso -
Prezadas senhoras, prezados senhores, bom dia!
É, para mim, motivo de especial satisfação e de grande responsabilidade falar para uma audiência tão qualificada, neste Congresso em homenagem ao saudoso Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, cuja robusta contribuição para a jurisprudência e a multiplicidade de funções que exerceu demonstram sua importância para nosso sistema jurídico. Ao lado de tão eminentes pares, como o ilustre Ministro Marco Aurélio Bellizze, presidente da mesa, a reconhecida e tão respeitada professora Cláudia Lima Marques, [e] meu brilhante colega de departamento, na Faculdade de Direito da USP, o professor Otávio Luiz Rodrigues Jr, [e meu estimado amigo, diretor da ESA da OAB/SP, o professor Flávio Tartuce, coordenador científico deste Congresso, juntamente com os Ministros Luis Felipe Salomão e Douglas Alencar Rodrigues, a quem também cumprimento] coube a mim fazer um balanço dos avanços e retrocessos do Direito das Sucessões nos vinte anos de vigência do Código Civil.
Meu enfoque dirá respeito aos avanços e aos retrocessos legislativos, mas não poderei deixar de mencionar o belíssimo trabalho atualizador, realizado por nossos Tribunais. Assim, sempre que for possível, à medida que for expondo os temas, indicarei o imprescindível papel que nossa jurisprudência vem desempenhando nessas duas décadas, uma vez que o Código em vigor, como amplamente reconhecido, já nascera velho.
Não se trata, contudo, de uma característica exclusiva do Código de 2002. Em tom anedótico, diria que parece ser uma sina do brasileiro que seus dois únicos Códigos Civis, quando promulgados, tenham sido considerados velhos no nascedouro.
Nosso primeiro Código Civil, de 1916, fruto do belíssimo trabalho de Clóvis Bevilaqua, levou mais de 15 anos tramitando no Congresso Nacional, em boa medida por rivalidades políticas, como reconhecem os jus-historiadores. O fato que gostaria de destacar, contudo, é que após publicado, quase que imediatamente passou a sofrer emendas, haja vista a necessidade de se adequar a sua redação, iniciada ainda no século XIX, aos novos ventos ideológicos resultantes da Primeira Guerra Mundial, em especial, o abalo ao paradigma individualista.
Sobrevindo mudanças cada vez mais profundas e sistêmicas na sociedade, a partir da década de 1930, começou-se a aventar a indispensabilidade de uma reforma mais abrangente, tendo sido constituídas diversas comissões para isso. Várias foram as tentativas. A primeira de maior notoriedade ocorreu, na década de 1940, com o Anteprojeto de Código das Obrigações, elaborado por Orozimbo Nonato, Philadelpho de Azevedo e Hahnemann Guimarães. No início da década de 1960, operou-se nova tentativa, com a redação, confiada a Orlando Gomes, de um Anteprojeto de Código Civil, e com a elaboração, por Caio Mário da Silva Pereira, de um Anteprojeto de Código das Obrigações, destacado do Código Civil.
Não logrando êxito nenhuma dessas comissões, em 1969, o Governo do general Costa e Silva nomeou comissão, a terceira incumbida de atualizar o diploma civil, capitaneada pelo professor Miguel Reale e composta – faço questão de mencionar – pelos professores Moreira Alves, Agostinho Alvim, Sylvio Marcondes, Ebert Chamoun, Clóvis do Couto e Silva, e Torquato Castro.
O Anteprojeto, que posteriormente se tornou o Código Civil de 2002, buscou conjugar o respeito à nossa tradição jurídica com a renovação de diversos dispositivos.
Contudo, é preciso reconhecer, a propósito do Direito das Sucessões, que talvez este tenha sido o ramo do Direito Civil que menos sentira as transformações que ocorreram ao longo do século XX, tanto que se conservara praticamente intacto durante a vigência do Código Bevilaqua, mas que se destacara, por exemplo, ao reconhecer a igualdade entre descendentes legítimos e filhos naturais reconhecidos, ou ao reduzir a transmissão da herança até colaterais de quarto grau, e ao colocar o cônjuge sobrevivente como terceiro a ordem de vocação hereditária.
É curioso notar que, em vinte anos de vigência do novo Código Civil, promulgado em 2002, a disciplina do Direito das Sucessões, da mesma forma, praticamente, não sofreu nenhuma alteração legislativa, a despeito de sua necessidade – e cito dois exemplos eloquentes.
Vejamos, inicialmente, o artigo 1.829, inciso I, que diz que a sucessão legítima se defere, primeiro, aos descendentes em concorrência com o cônjuge sobrevivente e faz algumas ressalvas quanto aos regimes de bens. Para o que nos interessa, quando exclui da concorrência sucessória o cônjuge casado pelo regime da separação obrigatória de bens, o Código faz remissão, entre parênteses, ao art. 1.640, parágrafo único. Trata-se, porém, de um erro formal grosseiro. A referência correta seria o art. 1.641, que indica as circunstâncias em que o regime da separação de bens é obrigatório, mas não houve correção.
Outro exemplo: com o julgamento dos Recursos Extraordinários nº 646.721 e 878.694, o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional o art. 1.790. Isso em 2017. Desde então, doutrina e jurisprudência cuidaram em promover a equiparação dos regimes sucessórios do cônjuge e do companheiro, mas não houve nenhuma alteração legislativa.
Voltarei a esse tema da distinção dos regimes sucessórios do cônjuge e do companheiro adiante, mas, por ora, gostaria apenas de chamar a atenção para a ausência de revisões, ainda que corretivas, no Livro que rege o Direito das Sucessões. Da forma como foi promulgado, assim permanece.
Há especial interesse em se ressaltar essa linha de continuidade seguida, notadamente, na redação do Livro V, na medida em que se conservou boa parte dos dispositivos e da disciplina do Código anterior, o que, devo dizer, não representa nenhum problema. De alguma forma, pode até ser visto como virtude. Houve, no entanto, pontuais inovações que foram incorporadas ao texto, sobre as quais eu gostaria de fazer um balanço.
Começarei com aquelas que credito como AVANÇOS.
Em primeiro lugar, é importante destacar que o Código, em geral, sob a premissa da operabilidade, buscou sistematizar melhor alguns institutos. Tratarei – assim fui solicitada a fazer, neste evento –, apenas daqueles acomodados no Livro do Direito das Sucessões. Essa melhor sistematização, que entendo como avanço na técnica legislativa, pode ser verificada em relação aos legados, por exemplo, enfeixados em capítulo autônomo. Também pode ser verificada em relação às substituições, tendo o Código dividido a matéria em duas seções, uma consagrada às substituições vulgar e recíproca, e outra à substituição fideicomissária.
Como avanços, propriamente, substanciais, gostaria de citar, em primeiro lugar, a inclusão de um capítulo sobre petição de herança, cuidando, em especial, da teoria do herdeiro aparente. Em segundo lugar, o vintenário Código trouxe solução para o impasse envolvendo o direito de preferência quando da cessão de direitos hereditários. A omissão do Código de 1916 tinha gerado muita controvérsia a respeito, superada pelo Código atual, que ainda determinou a aplicação, entre coerdeiros, das regras do condomínio.
Em terceiro lugar, o legislador inovou ao promover o cônjuge sobrevivente à condição de herdeiro necessário, bem como ao prever sua concorrência com descendentes ou ascendentes. O texto do art. 1.830 ainda avançou ao excluir da sucessão do morto o cônjuge casado, mas separado de fato. A concorrência sucessória também foi prevista em relação ao companheiro, no já referido art. 1.790, mas em condições muito menos vantajosas, como, em instantes, farei menção.
Na seara da sucessão testamentária, a vigente codificação avançou ao reduzir as formalidades para a facção de um testamento, por exemplo ao diminuir o número testemunhas ou ao permitir que as formas ordinárias de testamento sejam grafadas de forma manual ou mecânica.
Também se avançou ao limitar a autonomia do testador em relação a estipulações restritivas da propriedade. Com a nova disciplina, o testador que quiser onerar um bem da legítima com cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade deverá demonstrar justa causa. A lei não definiu o que seria “justa causa”, mas doutrina e jurisprudência têm entendido que a causa, para ser justa, deve ser indicada de forma específica e se referir a singularidades do herdeiro ou a fatos concretos, não se admitindo causas genéricas.
Por outro lado, apesar de progressos como os mencionados, houve também retrocessos significativos em relação ao sistema jurídico anterior, instituído a partir do Código Civil de 1916, bem como omissões, para não dizer inércia do legislador, em outras.
Menciono, brevemente, (1) a conservação do exame da culpa mortuária como requisito de legitimidade sucessória do cônjuge sobrevivente, no art. 1.830, apesar da manifesta impossibilidade de defesa do morto no caso concreto; (2) a limitação imposta ao fideicomisso, admitido, nos termos do art. 1.952, tão somente como espécie de substituição testamentária, instituída em favor de herdeiros não concebidos ao tempo da morte do testador, o que alguns alegam ser inconstitucional, por violar o direito de herança; (3) outro retrocesso sentido foi a ausência de previsão de direito real de habilitação em favor do filho portador de deficiência que o impossibilite para o trabalho, como estava previsto no vetusto Código, desde o ano 2000, por alteração trazida pela Lei n. 10.050. Claramente, o legislador preferiu estabelecer uma criticável legítima estática, instituía sobre uma questionável isonomia formal, sem ponderar eventuais particularidades dos herdeiros e sem diferenciar os bens conforme sua origem.
Em quarto lugar, um importante retrocesso se refere à ausência de correspondência entre as disposições relativas à sucessão do cônjuge e do companheiro. Após a promulgação da Constituição Federal de 1988 e, em especial, ao longo da década de 1990, buscou-se equiparar os direitos sucessórios do cônjuge e do companheiro, visto que não mais se cogitava de hierarquia entre as entidades familiares. Com o Código de 2002, contudo, inverteu-se o equilíbrio da balança e, em vez de se igualar tais direitos, foram atribuídos mais direitos sucessórios aos casados do que aos que viviam em união estável. Com efeito, o cônjuge foi alçado à condição de herdeiro necessário, vocacionado na terceira ordem, e contemplado com direito real de habitação vitalício, enquanto, em clara violação ao comando constitucional, as conquistas logradas até então pelos companheiros foram, praticamente, desconsideradas.
O art. 1.790 limitou o direito do companheiro a bens adquiridos, onerosamente, na constância da união estável; diferenciou sua quota hereditária em relação às dos filhos exclusivos do morto, quando concorresse com eles; deixou de reservar a quarta parte, quando a concorrência se operasse com descendentes comuns; restringiu à terça parte sua quota quando concorresse com outros parentes; admitiu concorrência com colaterais, sem indicar o grau máximo de parentesco legitimado a herdar; e vocacionou o companheiro como herdeiro único só na falta destes últimos. Inegável, assim, a discriminação entre a família baseada no casamento e a decorrente da união estável, o que alimentava a crítica de que o Código estabelecia uma hierarquia axiológica entre as entidades familiares.
Em boa hora, portanto, a decisão do Supremo Tribunal Federal, fixada no Tema 809 da repercussão geral, que reconheceu ser inconstitucional a distinção de regime sucessórios entre cônjuges e companheiros, conforme prevista no art. 1.790, e determinou dever ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829, ainda que não tenha resolvido a questão de ser também, o companheiro, herdeiro necessário.
Por fim, o quinto retrocesso que gostaria de destacar atine à ausência de previsão de concorrência do cônjuge ou companheiro sobrevivente com descendência híbrida – tema esse que me é muito caro. A questão era, especialmente, intrincada, porque, em relação ao cônjuge, o art. 1.832 previa a reserva da quarta parte se concorresse com descendentes comuns, e, no que tocava ao companheiro, o art. 1.790 diferenciava as quotas hereditárias, conforme concorresse com filhos comuns ou exclusivos do morto. Devendo tais regras coexistirem com o princípio da igualdade formal entre os filhos na sucessão legítima, denunciei, ao lado de outros grandes juristas, a impossibilidade matemática de se conciliar as regras legais. Nosso homenageado, o saudoso Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, deixou um belo legado quando tratou da questão, nos autos do Recurso Especial n. 1.617.650/RS, decidindo que em tais casos deve-se aplicar as regras da concorrência com descendentes exclusivos do morto.
Feito este balanço a respeito dos avanços e retrocessos do Código Civil em matéria de Direito das Sucessões, gostaria de encerrar minha exposição, mudando a perspectiva de análise. Até este momento, praticamente, olhamos para trás, a fim de ponderar o que o Código de 2002 tinha trazido de positivo e o que trouxera de antiquado.
Minha proposta, agora, é olhar adiante, para o futuro.
Ao longo dos últimos anos, em muitas oportunidades, tratei daquilo que chamei de “futuralização” do Direito das Sucessões”. Por meio desse neologismo – “futuralização” –, tenho me referido à necessidade de revisar a disciplina sucessória, dado seu perfil anacrônico e descolado da realidade. A sociedade, a família, as ideias, a forma de adquirir e possuir riqueza, tudo isso tem passado por profundas e revolucionárias transformações e o Direito das Sucessões não pode permanecer engessado, estável, estático, reproduzindo regras típicas de uma sociedade patriarcal superada.
Penso que o Código em vigor, a despeito de seus méritos e da contribuição que deu para a ciência jurídica, é produto de um momento histórico-cultural. Não se desconhece que a lei tem certa elasticidade, que lhe permite se adaptar aos novos fatos e aos novos valores. Em determinado tempo, contudo, chega-se a um esgarçamento do vínculo de aderência das normas legais ao tecido social, que impõe, sob pena de perda da efetividade, a substituição da regra. Parece-me que este momento se aproxima, sendo imperioso buscarmos resolver o déficit crescente do Código em vigor em relação às demandas histórico-sociais de nosso tempo.
Assim, muito brevemente, em respeito ao tempo que me foi designado, gostaria de indicar alguns eixos temáticos para a revisão, atualização e adequação da disciplina sucessória aos novos tempos. Trata-se de uma exposição preliminar e apenas exemplificativa, mas que vem amparada em ideias compartilhadas com vários outros ilustres doutrinadores e sucessionistas.
Em primeiro lugar, no que se refere à legitimidade sucessória passiva, creio que, no futuro, o legislador deve resolver a questão da legitimidade do filho havido de reprodução humana assistida post mortem. Além disso, seria muito salutar se as causas de indignidade fossem ampliadas para contemplar, por exemplo, o abandono material e afetivo injustificado do autor da herança, situação que já exclui o direito de alimentos, ou para excluir o genitor condenado por abuso praticado contra o descendente sucessível.
Em segundo lugar, a legítima deve ser repensada, passando por uma revisão qualitativa e quantitativa, de modo a permitir, por exemplo, maior autonomia ao testador se ausentes certas condições.
Penso – e depois de muito refletir sobre o tema – que o cônjuge e o companheiro, como regra, devem deixar de figurar como herdeiros necessários, e seu direito concorrencial deve estar limitado às situações de comprovada vulnerabilidade econômica.
Mesmo a porção indisponível reservada a descendentes e ascendentes deveria ser repensada a fim de atender quem, de fato, precise de uma tutela mais interventiva do Estado. Atualmente, o simples fato de haver herdeiros necessários, independentemente, da existência de qualquer outra exigência, impõe, de forma automática, a observância da legítima – o que pode ser, por vezes, repensável.
Com relação aos direitos transmissíveis, deve o legislador incluir expressa possibilidade de se transmitir o direito à compensação por danos morais e deve disciplinar, na medida do possível, a transmissão de bens digitais, cujas peculiaridades impõem a aplicação de um regime diverso em relação à regra da transferência imediata e completa dos bens aos sucessores, que caracteriza o droit de saisine.
O § 2º do art. 1.805, que trata da confusa cessão gratuita que não constituiria aceitação da herança, deve ser eliminado, atendendo-se ao princípio da operabilidade, que penso ter-se incorporado em nossa tradição jurídica, e à simplificação do texto legal.
Em matéria de sucessão testamentária, deve-se avançar na simplificação das formalidades testamentárias e no tratamento dos atos eletrônicos; disciplinar, em lei, as diretivas antecipadas de vontade, atualmente regulamentadas por atos infralegais, a despeito de sua relevância e dos interesses que gerencia; e atualizar o fideicomisso, que o Código de 2002 lançou no ostracismo, reconhecendo sua potencialidade, por exemplo, para a proteção de incapazes ou para internalizar o trust, como ocorreu na recente codificação civil argentina.
Finalmente, ao lado das sucessões legal e testamentária, deve o legislador aproveitar a oportunidade para repensar a vedação à sucessão contratual, ao menos para permitir que cônjuges e companheiros renunciem, no pacto antenupcial, à sucessão um do outro. De minha parte, sou favorável ao levantamento da proibição aos pactos sucessórios.
Sendo o que havia preparado e o que gostaria de compartilhar com essa distinta audiência, encerro, aqui, minha participação, agradecendo ao convite que me foi formulado e à atenção que todos, de forma tão gentil, me dispensaram. Que este momento de repensar o Código Civil e sua disciplina, quando se comemoram seus 20 anos de vigência, sirva muito mais do que uma mera retrospectiva e do que uma chance de se ponderar o que deu certo e o que não deu, mas também que sirva de oportunidade para pensarmos o futuro da nossa codificação civil e os desafios que nos estão sendo apresentados. Muito obrigada!
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