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A inseminação póstuma
Em agosto de 1981, Corine Richard encontrou o amor no jovem Alain Parpallaix, passando a conviverem. Poucas semanas depois da união surgiram sintomas de câncer nos testículos de Alain, que antes de submeter-se à quimioterapia, que o ameaçava com a esterilidade, optou em depositar seu esperma numa clínica de conservação de sêmen, para uso futuro.
Corine e Alain casaram-se in extremis, mas dois dias depois da cerimônia o varão faleceu;lguns meses depois Corine compareceu à clínica para ser inseminada com os gametas de seu finado esposo, mas os responsáveis pela empresa recusaram o pedido, por falta de previsão legal.
A jovem bateu às portas do Tribunal de Créteil, França, onde se discutiu a titularidade das células e a existência de um contrato de depósito que obrigaria o centro a restituir o esperma, alegando os médicos que não se cuidava de pacto de entrega, na medida que o material da pessoa morta é uma coisa fora do comércio e no território francês não havia lei que autorizasse a fecundação póstuma.
Depois de longo debate, a decisão do tribunal condenou a clínica a devolver à viúva o sêmen reclamado, impondo uma cláusula penal por eventual demora.
Infelizmente a inseminação não teve sucesso, pois os espermatozóides já não mais estavam potencializados para a fecundação.
A possibilidade de aproveitamento do material depositado para uso depois da morte do doador é assunto controvertido nos diversos ordenamentos jurídicos.
É procedimento vedado nas legislações alemã, sueca, francesa; as regras espanholas também a proíbem, embora garanta os direitos do nascituro, desde que haja declaração feita em escritura pública ou testamento; as normas inglesas a aceitam, mas sem direitos hereditários, salvo documento expresso; a lei portuguesa também o interdita, seja no casamento ou na união de fato.
Além dos diversos problemas jurídicos, como estabelecer a quem cabe o direito de decidir sobre o esperma ou sobre o embrião depositado ou quais as responsabilidades da clínica de fertilização, uma das questões mais relevantes é que a criança assim nascida não se beneficia de uma estrutura biparental de filiação, está condicionada a uma família unilinear ou monoparental: ou seja, o filho já nasce órfão de pai, o que afetará seu pleno desenvolvimento, pois paternidade e maternidade constituem valores sociais eminentes.
Ou, como diz a literatura com propriedade, o recém-nascido é reduzido ao papel subalterno de continuador simbólico de uma vida conjugal prematuramente desfeita, pois uma paternidade artificial torna duvidosa uma maternidade que é bem real no plano biológico.
Incidência peculiar diz ainda, com os direitos sucessórios do descendente nascido através de técnica póstuma, achando alguns que se devam firmar os limites temporais dentro dos quais se poderá realizar, pois o inventário pode já estar concluído depois o nascimento tardio; como referido, a maioria das legislações que aceitam a inseminação póstuma afasta qualquer direito sucessório.
O Código Civil vigente, em solitário setor onde prestou homenagens aos temas do biodireito, estabeleceu que se presumem concebidos na constância do casamento os filhos havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido (CC, artigo 1.597, III).
Ao consagrar a inseminação póstuma feita com o esperma varonil, o problema parece residir na possibilidade de concepção acontecer após o falecimento e o nascimento superar os 300 dias seguintes à dissolução da sociedade conjugal pelo óbito, eis que dispositivo legal inibe a presunção de paternidade além deste prazo (CC, artigo 1.597, II).
A interpretação favorável, eis que não há dúvida sobre a origem do patrimônio genético, conduz à conclusão que o legislador quis garantir a possibilidade da mulher usar o material crioconservado após a morte do marido, devendo a paternidade ser atribuído ao finado esposo.
Quanto aos direitos sucessórios, o credo em reza diz que decorrem da filiação, mas somente estão legitimados a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão (CC, artigo 1.798), o que pode ensejar interessantes pendengas jurídicas, pois os filhos havidos por inseminação póstuma ainda não estavam concebidos no instante da morte do varão, entendendo outros, contudo, que não se podem afastar dos direitos hereditários.
É indagação que toca aos tribunais decidir.
(*) Desembargador aposentado do TJ-RS e professor das Escolas da Magistratura e do Ministério Público. E.mail: jgiorgis@terra.com.br
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