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Testemunho de filhos comuns do casal, subjetivo de penumbras psíquicas
Giselle Câmara Groeninga
Jones Figueirêdo Alves
Decisão da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), tomada à unanimidade, afastou hipótese de impedimento legal (art. 447, § 2º, inciso I, do Código de Processo Civil) para admitir que os filhos comuns do casal “não estão impedidos de atuar como testemunhas no processo de divórcio dos pais, por possuírem vínculo de parentesco idêntico com ambas as partes e não apenas com alguma delas, como prevê o dispositivo.”.
Nessa latitude, o relator ministro Marco Aurélio Bellize destacou não se verificar uma parcialidade presumida, “sobretudo quando não demonstrada a sua pretensão de favorecer um dos litigantes em detrimento do outro”, ponderando, destarte: “ainda, que se mantenha o impedimento do filho para testemunhar no processo em que litigam seus pais, o magistrado poderia admitir seu depoimento como testemunha do juízo, não devendo ela prestar compromisso e cabendo ao juiz valorar suas declarações em conformidade com todo o acervo probatório carreado aos autos". (01)
Por outro lado, de acordo com o conhecimento trazido pela Psicanálise, a parcialidade deve ser sim presumida.
O desenvolvimento da personalidade dos filhos passa por fases em que o tipo de afeto, positivo ou negativo, nutrido por cada genitor, é alimentado por fatores altamente subjetivos, com uma idealização, igualmente positiva ou negativa, e que, por certo, tende a afetar a avaliação e o testemunho que os filhos fazem dos pais. Aqueles estão em plena fase de constituição e construção da personalidade, lhes sendo próprias, e de direito, avaliações prenhes de muita subjetividade.
A depender da fase de desenvolvimento, do sexo, gênero e, também, do tipo de vínculo que têm com cada genitor, formados por afetos que são, por natureza, subjetivos, mais ou menos fidedigna será a avaliação de fatos.
E, é natural que os filhos, desde pequenos, formem alianças com cada um dos pais, muitas vezes tentando excluir o outro. Some-se a isto, a natural oscilação entre onipotência/impotência, que não só ou se atribuem um lugar central ou se sentem excluídos, enciumados, como interpretam as situações a partir de suas óticas. E, em consequência, os filhos tendem a se sentirem culpados pela separação dos pais, e os desejos de se aliarem a um e excluir o outro, se materializam nesta situação. Desejos que podem ganhar ainda mais materialidade quando os filhos são convocados como testemunhas em um litígio que tem a ver com os adultos; filhos como testemunha em litígio dos pais tende a colocá-los em um lugar absolutamente indevido.
Se a família for relativamente funcional, o que inclui uma cooperação entre o casal parental, este processo conhecido como de triangulação, vínculo com cada um dos pais e exclusão do outro, será elaborado. No entanto, a evolução deste processo natural pode se ver impedida quando o casal parental tem um vínculo de competição, buscando a aliança com os filhos e mesmo tentando excluir o outro do par parental, criando conflito de lealdades. Lembremos que as situações de divórcio ou dissolução da união estável são situações em que os genitores costumam estar emocionalmente fragilizados, muitas vezes dependendo afetivamente mais dos filhos. Uma situação que tenderia a se estabilizar.
No entanto, quando há impasses entre os pais, e quando este se transforma em uma lide judicial, tal situação natural, quer de triangulação, quer de elaboração de um divórcio ou dissolução de união estável, pode se tornar crônica.
E, ao se convocarem os filhos como testemunhas, os processos mentais que são naturais ao psiquismo dos filhos se magnificam e ganham impulso indevido, só que agora com a chancela da autoridade do juiz. A responsabilidade pela criação, educação e o respeito às suas vulnerabilidades cabe aos adultos no exercício de sua autoridade, o que inclui o Poder Judiciário.
E, ainda, quais serão os desdobramentos na relação dos filhos com os genitores em função de um processo em que um sai como ganhador e o outro como perdedor e em que os filhos foram utilizados como prova? Por certo, negativos.
A decisão pioneira, que serve de paradigma a casos de litígios entre os pais, impõe aos filhos um conflito maior dentro da relação conflituosa dos pais, o de fazer valoração dos fatos narrados em um manifesto oral e subjetivo de penumbras psíquicas. No processo julgado, aliás, anota-se que em se tratando de divórcio litigioso, dispensável qualquer dilação probatória, mais ainda cogitar do testemunho de filhos.
De fato. Em face da Emenda Constitucional nº 66/2010, o único requisito para a decretação do divórcio, é a demonstração da vontade do(a) requerente, estando extinta a necessidade da prévia separação de fato (por dois anos) ou judicial (por um ano) para a dissolução do vínculo conjugal; e incabível a discussão de culpa para a obtenção do divórcio.
No ponto, a inteligência da redação dada ao artigo 226, § 6º da Constituição Federal afastou, portanto, a exigência de quaisquer outros requisitos objetivos ou subjetivos para a decretação do divórcio, ou seja, sem restrições temporais ou causais, tornando-o sempre direto e imotivado; o que, inclusive, acarreta, de forma iniludível e inexorável, a dispensabilidade de sua judicialização. No julgamento referido, segundo a defesa do ex-marido, haveria expressa disposição legal que impediria o filho de atuar como testemunha no caso, quando, sublinhe-se, não se cuida da influência do testemunho filial ao desate de mérito por se tratar de um direito potestativo do ex-cônjuge em obter o divórcio.
Em outro giro, quando se cuida de fixação do termo inicial da separação de fato ou sobre a prova do tempo da aquisição de bens, em discussão da partilha, convém considerar que o depoimento filial tem sua coleta conveniente, dado que referidos termos temporais cogitam de verdades fáticas, sem juízo de valor, tendo eles, dentro da comunidade familiar, adequada ciência sobre eles.
Destacou o e. relator: “Dessa forma, não se presume uma parcialidade capaz de justificar a manutenção do impedimento nessas hipóteses específicas, já que, via de regra, as declarações feitas pela testemunha seriam estritamente relacionadas aos fatos por ela presenciados, sem a pretensão de beneficiar uma das partes em detrimento da outra”.
No entanto, ponderemos que nesta situação, a de os filhos serem testemunhas quanto a fatos objetivos, tempo da separação de fato, prova do tempo de aquisição de bens, continuam válidas as ponderações acima, embora com menor potencial de danos. Mas danos são. E são imprevisíveis sobretudo quando se trata de um psiquismo em formação, prenhe das mais diversas fantasias e facilmente refém de sentimentos de culpa e conflitos de lealdades. E isto sem contar com um possível, se não provável, ressentimento por parte do genitor que se viu prejudicado no resultado da lide.
Há ainda, outra agravante. No desenvolvimento infantil e adolescente mentir ou enganar, mesmo que consciente, não tem o mesmo valor e peso do que nos adultos. Não esqueçamos que se cuidam de psiquismos que estão estabelecendo o sentido de realidade, sendo que este costuma se confundir com a fantasia, vindo aquele ganhar autonomia somente com o amadurecimento. Este caráter, um tanto lúdico da mente infantil e adolescente, pode passar também pelo exercício de enganar ou mentir. E na adolescência, não raro, as mentiras acontecem como forma de testar limites e mesmo burlar a autoridade dos pais. Trata-se de um processo evolutivo. Ou seja, a avaliação da gravidade de enganar ou mentir é diferente para as crianças e para os adultos.
E, ainda mais, se for para favorecer um dos genitores de quem os filhos mais dependem afetivamente, ou a quem temam, ou, ainda, a quem sentem que devem proteger,
Há ainda, questões relevantes que podem ser cogitadas, quanto ao testemunho necessário dos filhos, em situações judiciais diversas, designadamente em hipóteses de violência doméstica e de filhos menores (art. 447 § 4º, CPC). Embora a psicologia admita que estes, questionados, podem tender a optar pelas ficções, mesmo que inconscientemente, v.g. situações de alienação parental, certo é que esses depoimentos devem ser avaliados, dentro da teoria da prova, em suas coerências de narrativa e sob a percepção dos fatos narrados (Tourinho Filho, 2014).
Acerca do valor probatório do testemunho infantil em processo penal, anotam Giovana Viana de Castro Santos e Eliane Rodrigues Nunes, em artigo sob esse título, o seguinte:
(...) verifica?se que não há consenso definido nos tribunais brasileiros a respeito do valor a ser dado ao testemunho infantil como prova, o que vem a causar certa insegurança jurídica em julgamentos de delitos presenciados, muitas vezes, unicamente, por crianças ou jovens. Em realidade, o que se tem é a omissão legal a respeito de tal tema, o que pode significar, inclusive, despreparo dos tribunais brasileiros para lidar com esses casos” (02)
Realmente. Quando se trata de pessoas não estranhas à lide (no caso, os filhos), a par da análise percuciente da credibilidade da informação trazida pelos testemunhos, sob pena da insegurança jurídica, mais se exige um tratamento legal e aperfeiçoado a respeito da coleta da prova. Nessa toada, registra-se a Recomendação nº 33, de 23 de novembro de 2010, expedida pelo Conselho Nacional de Justiça (03) e a Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017, cujo Título III dispõe sobre a escuta especializada e o depoimento especial (04).
Importa, em todos os casos, atender-se aos elementos significantes a destacar:
(i) a valia da oitiva testemunhal, observada a necessidade do depoimento;
(ii) proteger os filhos de eventuais influências prejudiciais dos seus testemunhos perante e em face da relação com os seus entes familiares (pai e mãe), não apenas à criança-testemunha mas, por igual, aos adolescentes e até aqueles entre 18 e 21 anos de idade (art. 3º, parágrafo único, Lei nº 13.431/2017).
(iii) a análise do depoimento do filho deponente, para distinção das informações definitivamente úteis, com repercussão adequada na prova.
Pois bem. O Relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2020, indicou 1.350 casos de feminicídio no Brasil, um a cada seis horas e meia, e no referido ano, a vítima era também mãe em 80% dos lares conjugais/convivenciais, figurando, de efeito, que os filhos assistiram e conviveram com as agressões que levaram até ao ato criminoso final.
Em situações que tais, afasta-se o impedimento, em busca da verdade material.
Mas sobressai uma questão maior: a da severa e grave exposição de filhos, crianças e/ou adolescentes, à violência doméstica, que se tornam, em um círculo vicioso, também vítimas (in)diretas da violência, no ambiente familiar de hostilidades. (05). Neste cenário, deve ser priorizado, sempre, o melhor interesse da criança ou do adolescente, tendo como questão de fundo o relacionamento paterno-filial, cuja aferição não deverá resultar, outrossim, em novos e sérios danos à sua integridade psicológica.
Muito tem se avançado na proteção das crianças e adolescentes quanto à sua participação como testemunhas nos processos judiciais. Desde o então denominado “Depoimento sem dano” cujo nome estabelecia um comparativo à violência institucional que se praticava, priorizando o processo, escutando a criança e o adolescente de forma direta e muitas vezes na presença do acusado, até o Depoimento Especial e a Escuta Protegida.
Mas ainda há muito a aperfeiçoar. Não raro estes instrumentos são confundidos com a Perícia Psicológica. Naqueles a palavra da criança e do adolescente acaba, muitas vezes, por ser tomada em seu sentido manifesto, literal, não havendo a necessária ponderação de diversos fatores que vão desde o papel das fantasias, do inconsciente, e das lealdades que costumam jogar importante papel.
Em tempos de banalização da violência, sua apuração não pode ser banalizada. Bem fez a Lei 13.431, de 4 de abril de 2017, em tipificar a violência institucional, prevenindo a retraumatização das supostas vítimas com a repetição de procedimentos.
Nos casos de suspeita de violência, física e psíquica, incluindo a de abuso sexual, a recomendação é que o depoimento especial e a escuta protegida se deem o quanto antes, mas para que, se necessário, sejam adotadas urgentes medidas de proteção e prevenção de danos futuros. E, friso, sempre se faz necessário escutar e avaliar os adultos envolvidos para que se forme uma convicção baseada na dinâmica psicológica daquele grupo. A meu ver, a perícia psicológica é de rigor, salvo em algumas exceções. Escutar uma criança e adolescente para fins de produção de prova é tornar o processo um fim e não um meio, podendo representar uma violência institucional.
Não raro são pedidas medidas liminares inaudita altera parte em função da urgência da proteção. Caberia sempre o questionamento da alegada urgência. A proteção à criança e ao adolescente, sobretudo se há risco de violência, sobretudo a sexual, costuma mobilizar: protege-se primeiro e questiona-se depois. No entanto, a proteção pode, na realidade, expor a um risco maior, tornando-a refém afetiva de um dos genitores, tomando-se sua palavra em sentido literal sem uma avaliação que leve em conta a peculiaridades do psiquismo infantil e adolescente, e a dinâmica familiar.
No caso de Denúncias Errôneas, usualmente denominadas de Falsas Denúncias, o resultado de medidas de proteção e afastamento pode ser o abalo não só de um dos alicerces da formação da personalidade, que são os pais, mas dos dois.
Muito haverá de contribuir a doutrina e a jurisprudência, com um diálogo permanente entre o processo civil, o processo penal e a psicanálise, no sentido da admissibilidade, oportunidade e valoração do testemunho dos filhos comuns nos conflitos familiares, estabelecendo, portanto, critérios e limitações, tudo em proveito do interesse maior das relações paterno-filiais e da segurança jurídica.
Referências:
(01) STJ – Notícias. 15.06.2023. Web: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2023/15062023-Filho-pode-atuar-como-testemunha-no-processo-de-divorcio-dos-pais.aspx
Acórdão. Web: https://processo.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202100279564&dt_publicacao=28/04/2023
(02) Web: http://www.mpgo.mp.br/revista/pdfs_38/2Giovana-Eliane.pdf
(03) Web: https://atos.cnj.jus.br/files//recomendacao/recomendacao_33_23112010_22102012173311.pdf
(04) Lei n. 13.432/2017. Web http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13431.htm
(05) https://repositorio.animaeducacao.com.br/bitstream/ANIMA/22775/1/ARTIGO%20ISLA.pdf
(06) Não custa lembrar, ainda, que a Lei n. 13.715/2018, modificou a redação do art. 23 § 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 7.069/1990) dispondo: Art. 23 (...) § 2º. A condenação criminal do pai ou da mãe não implicará a destituição do poder familiar, exceto na hipótese de condenação por crime doloso sujeito à pena de reclusão contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar ou contra filho, filha ou outro descendente.
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Giselle Câmara Groeninga é psicanalista, parecerista, mestre e doutora em Direito Civil pela USP, Diretora Nacional de Relações Interdisciplinares do IBDFAM, membro do Conselho da Sociedade Internacional de Direito de Família, professora da Escola Paulista de Direito.
Jones Figueirêdo Alves é desembargador emérito do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito de Lisboa. Integra a Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont). Consultor e parecerista.
Fonte: Consultor Jurídico, 02.07.2023
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