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Efeitos da alienação parental na criança – a visão da psicanálise lacaniana
Efeitos da alienação parental na criança – a visão da psicanálise lacaniana[1]
Maria Arlinda Reis de Marques Freitas[2]
Resumo: O fenômeno da alienação parental, que é uma espécie de assédio familiar e moral, configurando violência psicológica, existe desde os primórdios do mundo civilizado, muitas vezes carregando forte bagagem cultural, transmitida de geração a geração no seio de uma família. Ora se manifesta de forma clara, observável; ora de forma velada, de difícil constatação. Como toda violência psicológica, ela pode trazer sérios danos à vida psíquica de uma criança, com consequências nefastas à sua saúde mental, nos aspectos emocional, relacional e até sexual. É disto que trata o presente artigo, fruto de um tema abordado em live promovida pelo IBDFAM-MA, na qual a autora participou como convidada. Neste artigo, aborda-se a teorização do psiquiatra Richard Gardner; aspectos relacionados à lei da alienação parental; o que diz a Psicanálise sobre o tema da alienação e os possíveis efeitos da alienação parental na saúde psíquica da criança, com base na psicanálise lacaniana.
Palavras-chaves: Alienação parental; Direito e Psicanálise; a lei federal; aspectos psicopatológicos no par parental; efeitos psíquicos na criança; reflexões.
Abstract: The phenomenon of parental alienation, which is a kind of family and moral harassment, configuring psychological violence, has existed since the dawn of the civilized world, often carrying a strong cultural baggage, transmitted from generation to generation within a family. Sometimes it manifests itself in a clear, observable way; in other times in a veiled way, difficult to verify. Like all psychological violence, it can cause serious damage to a child's psychic life, with disastrous consequences for their mental health, in the emotional, relational and even sexual aspects. This is what this article is about, the result of a theme addressed live promoted by IBDFAM-MA, in which the author participated as a guest. This article addresses the theorization of psychiatrist Richard Gardner; aspects related to the parental alienation law; what Psychoanalysis says about the theme of alienation and the possible effects of parental alienation on the child's psychic health, based on Lacanian psychoanalysis.
Keywords: Parental alienation; Law and Psychoanalysis; federal law; psychopathological aspects in the parental couple; psychic effects on the child; reflections.
Introdução
Apesar de ser este um fenômeno antigo, identificado e estudado por diferentes pesquisadores ao longo do último século, somente na década de 1980 é que o tema da alienação parental recebeu especial atenção. O psiquiatra norte-americano Richard Gardner, que atuou em centenas de litígios envolvendo a custódia de filhos, utilizou suas experiências para chegar à definição do que ele chamou de Síndrome da Alienação Parental (SAP). (GARDNER, 2002)
Concluiu Gardner que a SAP seria um distúrbio da infância, resultante da alienação parental, e que esta aparece quase exclusivamente no contexto de disputas de guarda de filhos. Sua manifestação é consequência dos atos do genitor alienador (geralmente o guardião), de colocar em curso uma campanha difamatória contra o outro genitor (não guardião), usando a própria criança, fazendo com que esta o rejeite, sem justificativa aceitável para tal. Para que o processo esteja completo, será preciso haver o engajamento da criança – que passa, com isso, a rejeitar a presença do genitor alienado.
A alienação parental resulta, portanto, de uma combinação das instruções do genitor – que faz uma espécie de lavagem cerebral, programação ou doutrinação da criança – com contribuições da própria criança, para caluniar o genitor-alvo. Em boa parte das campanhas difamatórias aparecem as falsas denúncias de abuso sexual, supostamente praticada pelo genitor vítima da alienação. Tudo isso com o fim único de puni-lo pelo fim do relacionamento.
Ressaltou Gardner que quando o abuso e/ou a negligência parentais verdadeiros estão presentes, os temores do genitor guardião e a animosidade da criança podem ser justificados, e assim a explicação do quadro de alienação parental para gerar o afastamento da criança não é aplicável, pois entende-se que o guardião esteja agindo no sentido de protegê-la.
Para Gardner, uma criança com o quadro de SAP apresenta como sintoma principal a rejeição ao genitor vítima da alienação. Além deste há outros sintomas, e com base neles Gardner dividiu o quadro em três níveis ou estágios diferentes: leve, moderado e grave. No estágio leve, a programação mental está concluída e bem sucedida, porém a criança apresenta apenas algumas manifestações, difíceis até de serem identificadas. As visitas paternas são possíveis, apesar de haver algumas dificuldades.
No estágio moderado, considerado o nível mais comum, os sintomas são mais evidentes, com a clara ocorrência da difamação da outra figura parental e, claro, a criança já passa a resistir às visitas, embora algumas vezes elas aconteçam.
Já no estágio severo, os sintomas são exacerbados, a criança rejeita completamente as visitas ao genitor-alvo, que vira o bode expiatório dos problemas familiares, podendo ser tratado aos gritos, intimidado e às vezes fisicamente atacado com objetos. A criança pode apresentar atos de sabotagem na residência do genitor vítima, destruir objetos, provocar incêndios, roubar coisas (como documentos jurídicos e registros importantes). Fugir da residência do genitor-alvo e retornar à do alienador também é comum, em especial nos quadros moderados e severos.
Há um conjunto de sintomas identificados por Gardner que apareceriam na criança vítima da SAP, geralmente aparecendo juntos, especialmente nos tipos moderado e severo. Os sintomas incluem:
- Uma campanha difamatória contra o genitor alienado;
- Racionalizações fracas, absurdas ou frívolas para a depreciação;
- Falta de ambivalência;
- O fenômeno do “pensador independente”;
- Apoio automático ao genitor alienador no conflito parental;
- Ausência de culpa sobre a crueldade a e/ou a exploração contra o genitor alienado;
- A presença de encenações ‘encomendadas’;
- Propagação da animosidade aos amigos e/ou à família extensa do genitor alienado.
As crianças exibiriam a maioria desses sintomas (se não todos); à exceção dos casos leves, de poucos sintomas. À medida que progridem de leve para moderado ou severo, será altamente provável que a quase totalidade dos sintomas se façam presentes. Isto indica que, para ele, as crianças com SAP assemelham-se umas às outras. E por isso considerou que o diagnóstico é relativamente fácil. (GARDNER, 2002)
Cabe ressaltar que hoje em dia o termo “síndrome” relacionado à alienação parental, já caiu em desuso. Gardner foi duramente criticado por ter usado um termo que não se aplicaria ao caso. Já que uma síndrome, pela definição médica, é um conjunto de sintomas que, juntos, caracterizam uma doença específica.[3]
Apesar disso, sabe-se que pode haver sinais ou sintomas comportamentais, físicos e psicológicos presentes nas crianças vítimas da alienação parental, os quais poderão ser das mais diversas ordens ou características. Além do que, há crianças que, apesar das tentativas sofridas de programação mental, simplesmente não apresentam mudança de comportamento em relação ao outro genitor e continuam a querer sua presença e agir de forma independente do alienador.
Acrescente-se que não somente o guardião pode promover a alienação parental, mas qualquer dos genitores, ou ambos ao mesmo tempo, bem como avós, tios, cuidadores, pode ser todo o grupo familiar, enfim pessoas diretamente envolvidas com a criança ou adolescente.
Inegável é que a alienação parental constitui obstáculo ao bom desenvolvimento psíquico da criança. O alienador desconsidera que o filho seja um sujeito de direitos e de desejo. Constituindo, portanto, uma forma de abuso ou maltrato, podendo ocasionar sérias consequências para a saúde psicológica da criança.
Foi justamente atentando para esta questão que foi promulgada a lei nº 12.318/2010, Lei da Alienação Parental (LAP), a qual tem como finalidade não somente punir os alienadores, mas orientar e educar. Com base nela, e em outros dispositivos legais, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), vê-se que os legisladores deram destaque e relevância a questões como estas: o fortalecimento de vínculos familiares, a proteção e o cuidado de crianças e adolescentes, o pleno desenvolvimento destes como cidadãos, sujeitos de direitos, inclusive do direito pertencerem, de terem família, construírem suas imagens, personalidades e identidades junto aos familiares.[4]
A LAP assim define e caracteriza os atos de alienação parental:
Art. 2o Considera-se ato de alienação parental a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este.
Parágrafo único. São formas exemplificativas de alienação parental, além dos atos assim declarados pelo juiz ou constatados por perícia, praticados diretamente ou com auxílio de terceiros:
I - realizar campanha de desqualificação da conduta do genitor no exercício da paternidade ou maternidade;
II - dificultar o exercício da autoridade parental;
III - dificultar contato de criança ou adolescente com genitor;
IV - dificultar o exercício do direito regulamentado de convivência familiar;
V - omitir deliberadamente a genitor informações pessoais relevantes sobre a criança ou adolescente, inclusive escolares, médicas e alterações de endereço;
VI - apresentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares deste ou contra avós, para obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou adolescente;
VII - mudar o domicílio para local distante, sem justificativa, visando a dificultar a convivência da criança ou adolescente com o outro genitor, com familiares deste ou com avós.
Além disso, cita-se a instituição da guarda compartilhada (projeto de lei de 2006), que aparece como prioridade na definição da modalidade de guarda de filhos. Ela visa garantir o convívio do genitor com seus filhos e, assim, funcionar como um antídoto contra a alienação parental.[5]
Acerca desta modalidade de guarda, Vale (2018, p.88) esclarece que ela se legitima pelo princípio da Igualdade contido na Constituição Federal de 1988, além de achar-se estabelecida no Art. 226, § 5º da referida Constituição – artigo que prevê a igualdade de direitos e deveres conjugais. E, completa a autora: “Conferiu-se, assim, aos dois genitores, a obrigação de assistir, educar e criar os filhos menores (art. 229), os quais têm absoluta prioridade (art. 227)”.
Ressalte-se que antes de apresentar tais dispositivos legais, a autora discorre acerca da mudança de paradigmas em relação às funções parentais ao longo dos anos no seio da sociedade, quando o homem passou a ser mais presente nas atividades corriqueiras do lar – juntamente com a mulher; deixando o papel de mero mantenedor. Além do que, à mulher também coube uma ampliação de suas funções, ao sair para trabalhar fora e ajudar o marido no sustento do grupo familiar. Portanto, os papéis parentais deixaram de ser distintos e específicos de cada gênero.
Voltando à Gardner, vê-se que a forma como ele delineou esta prática tornou mais fácil a sua visualização, bem como os estudos e pesquisas subsequentes sobre o assunto; afirmando-a como pratica a ser combatida.
Conforme asseverou o jurista Cunha (2021):
O alienador, assim como todo abusador, é um usurpador da infância, que se utiliza da ingenuidade e inocência das crianças e adolescentes, para aplicar o seu golpe, às vezes mais sutil, mais requintado, às vezes mais explícito e mais visível, e o filho acaba por apagar as memórias de convivência e de boa vivência que teve com o genitor alienado. Embora o alvo da vingança e rancor seja o outro genitor, a vítima maior é sempre a criança ou o adolescente, programado para odiar o pai ou a mãe, ou qualquer pessoa que possa influir na manutenção de seu bem-estar, o que significa violação também dos princípios constitucionais da dignidade humana (Art. 1º, CR), do melhor interesse da criança e do adolescente (Art. 227, caput, CR) e da paternidade responsável (Art. 226, § 7º, CR).[6]
Em vista disto, surge a questão: Por que, então, uma mãe ou um pai (ou familiar/cuidador), responsável por amar e cuidar de uma criança ou adolescente, resolve envolvê-la em uma trama que se traduz em violação aos princípios da dignidade humana? Por que um genitor ou genitora usaria o filho como objeto de vingança?
Buscar-se-á uma explicação pelo viés da Psicanálise lacaniana, assunto que será abordado a seguir.
O traumático do encontro amoroso
Como dito inicialmente, a alienação parental é fenômeno antigo, existe desde os primórdios da civilização. O corolário desta constatação se dá com o mito da Medéia, datado de 431 A.C, que conta a história da mulher que mata os próprios filhos para se vingar do marido, Jasão, que a deixou por outra mulher, a princesa de Corinto.[7]
Tem-se aí um caso extremo, envolvendo extermínio. Embora se trate de um mito, sabe-se que casos dessa natureza encontram registros em foros criminais; sendo que em muitos casos a vítima é o genitor alienado. Por outro lado, se vidas não são eliminadas pela alienação parental, vontades, desejos e direitos o são. Incluindo o direito à saúde psíquica ou emocional de crianças e adolescentes. Sendo assim: Onde situar o amor em casos assim?
Jacques Lacan, em vários momentos da sua teorização, diz que “amar é dar o que não se tem a outro que não o quer” (LACAN, 1957 e seguintes). Ora, se amar é dar o que não se tem, o que, afinal, é depositado no outro, na pessoa amada? E que tipo de expectativa se deve ter desse relacionamento, se nem mesmo se sabe o que é dado ao outro? E por que essa necessidade que se tem de amar e ser amado? E, finalmente, o que torna a vida difícil, ou até mesmo impossível, quando o ser amado se distancia ou rejeita o amor que lhe é oferecido?
Em sua obra Os Instintos e Suas Vicissitudes, de 1915, Freud introduz a noção de indiferença em relação aos processos constitutivos do narcisismo do eu. Neste trabalho ele argumenta que, para o bebê, não há distinção entre o eu e o mundo externo (o seio que o amamenta é parte dele), todo o seu investimento pulsional está voltado para o próprio eu, fonte de experiências de prazer. É o mesmo que dizer que nessa fase existe o objeto, porém esse objeto é a própria parte do corpo do sujeito, não o outro localizado no mundo externo. Daí a possibilidade de plena realização auto erótica. De modo que, o amor, que se caracteriza como uma relação do eu com os objetos fonte de prazer, não se acha expresso nesse momento inicial da constituição do sujeito, mas, sim, a situação na qual o eu ama somente a si mesmo e é indiferente ao mundo fora dele. Aos poucos, a partir da introdução da relação com os objetos externos, é que ele experimentará outras fontes de prazer e desprazer, saindo desse estado de indiferença.
Nesta obra, Freud também discorre sobre a relação entre o amor e o ódio e outras polarizações como: ativo/passivo, amar/ser-amado; e mostrará que, diferentemente do que se poderia esperar, os sentimentos de amor e ódio não são tão contraditórios assim. Veja-se:
O termo amor é utilizado para nomear um tipo de vínculo entre uma pessoa e um objeto (seja pessoa, animal, coisa, ideia, um trabalho, uma instituição etc.), vínculo em que o segundo é fonte de alegria para a primeira. Em outras palavras, amar significa se alegrar em função da ligação com um determinado objeto. O oposto do amor é o ódio. Nele o objeto não funciona para o sujeito como fonte de alegria, mas de tristeza.
Contudo, há um elemento comum entre o amor e o ódio, que é o vínculo (que Freud chama de afeto). Tanto para alguém amar quanto para odiar, será preciso estar em relacionamento com o objeto, pela via do afeto. Não existe ódio sem destinatário. Daí porque Freud concluiu que o contrário do amor é a indiferença e não o ódio. A indiferença indica que não existe nenhum afeto entre uma pessoa e outra. O ódio, por sua vez, é geralmente o produto de um amor fracassado. Não raro, o ser odiado é aquele que não correspondeu às expectativas daquele que o amou, por isso o magoou e decepcionou a tal ponto, que não resta alternativa senão odiar. Portanto, há um amor frustrado por detrás do ódio expresso.
Porém, a Psicanálise vai mais longe ao teorizar sobre o amor. Lacan diz: "Amar é dar o que não se tem". Mas o que não se tem? Ele aponta para o papel simbólico do falo em sua articulação com o objeto [de desejo] – então o falo é aquilo que não se tem, o que falta. O falo é um significante que, na economia intrapsíquica, tem função de encobrir, uma vez que ele é fruto do recalcamento originário. (RAMIREZ, 2004; COSTA, BONFIM, 2014; JORGE, 2010)
A noção do significante falo nasce com a teoria do Complexo de Édipo de Freud, como símbolo do desejo da mãe. Na tríade edipiana, a mãe dirige seu desejo a outro, o pai da criança, permitindo o operar da castração (simbólica) do filho, favorecendo o reconhecimento, pelo infante, da lei paterna. Esta é a lei do interdito do incesto, que Lacan chama de a significação Nome-do-pai. O operar da lei paterna resulta no recalque originário e na estruturação neurótica do sujeito (infante) – o que é desejável do ponto de vista da saúde psíquica. (CHEMAMA, 1995, p.68-69)
Não havendo o corte, a castração, as consequências poderão levar à estruturação na psicose ou na perversão. Já no Seminário 3, Lacan constata a foraclusão[8] do Nome-do-Pai nas psicoses, indicando que a significação fálica (Nome-do-Pai) está ausente nesta estrutura. E no Seminário 5, ele esclarece acerca da estrutura perversa, onde a significação é da ordem do desmentido, quando a castração é, ao mesmo tempo, reconhecida e negada.
Primeiramente, o falo tem, em Freud, sua vinculação com a sexualidade dos sujeitos envolvidos. Tanto que ele utiliza mais o termo pênis do que falo em sua teorização (COSTA, BONFIM, 2014, p. 231). Mais tarde, em Lacan, o falo torna-se símbolo do desejo materno, com lugar reconhecido na ordem da linguagem, sem considerar necessariamente a diferença anatômica dos sexos (embora Lacan reconheça a importância deste aspecto).
Lacan coloca o falo no centro de sua teorização, apontando-o como o objeto de recalcamento originário freudiano, em relação com a castração simbólica. Fruto do recalcamento, o falo não pode representar seu papel, a não ser velado. Isto é chave para indicar questões relativas à estruturação psíquica e ao enlace amoroso do sujeito.
A Psicanálise freudiana nasceu em um contexto em que os papéis sociais de homem e mulher, de pai e mãe, eram definidos pelo modelo tradicional. Ao homem/pai cabia o papel de mantenedor e de autoridade, à mulher/mãe, o de educadora e cuidadora do lar e da prole. Contudo, mais tarde Lacan concluirá que “pai” e “mãe” são lugares ou funções no psiquismo do infante/filho. Funções que podem ser exercidas pelos pais biológicos ou não, por pessoas que se ocupam diretamente dos cuidados da criança; e, ainda, os papéis podem ser exercidos de forma invertida. Em razão disso, ele introduz os conceitos de “função paterna” e “função materna”, uma vez que os ocupantes de tais funções podem ser móveis.
A relação dual mãe-filho, que a princípio é uma relação simbiótica, em que a criança parece ser uma extensão da mãe, ocupando o lugar de falo da mãe, precisa ser mediada pela lei paterna, para o operar da castração. Quer na presença ou na ausência física do pai real, a lei paterna precisa ser articulada no sentido do corte dessa relação dual. Lei que, na linguagem, terá lugar como de uma metáfora, que Lacan vai chamar de “metáfora paterna”. Ou seja, é pela via da linguagem, dos ditos, que a lei paterna terá operação. Os ditos comunicam ao inconsciente da criança que o desejo materno se dirige para outros alvos além dela, e tem a força de uma lei, a qual ela reconhece e a ela se submete.
Daí porque se mostra saudável que esta mãe seja uma mãe não-toda, uma mãe faltante, que busca completude em outros objetos: seja o companheiro ou companheira, o trabalho, o lazer, o cuidado de si. Desse modo, verifica-se que ao retomar a teoria do Édipo freudiano, Lacan incorporou a dialética desejo-lei à metáfora paterna. (CAMPOS, [201?])
Mas se o falo é representante de algo que falta, onde se assentam as bases do amor em sua relação com isto que falta? Pode-se tentar responder dizendo que o sujeito castrado nunca se conforma com a castração. Ele pode até se submeter, como na estrutura neurótica, mas não de bom grado. O infante ligou-se ao olhar amoroso da mãe cuidadora, olhar de quem o desejou, e ele amou aquele olhar dirigido a si mesmo; ele amou-se no olhar da mãe, como objeto de desejo do outro encarnado na mãe. O enlace amoroso do adulto faz reviver este primeiro encontro amoroso, relegado ao inconsciente. Isto relembra a noção de narcisismo em Freud, que concluiu que o amor tem suas bases no narcisismo: amamos a nós mesmos no outro. (FONSECA, 2012)
Quando o sujeito se liga amorosamente a outro, espera reencontrar o objeto narcísico. E mesmo não encontrando (os conflitos conjugais denotam isto), a ruptura de uma relação amorosa poderá ser vivida como algo traumático e devastador pelo sujeito que não a aceita. O trabalho do luto da perda do objeto amado pode ser árduo e infindável, irrompendo o insuportável da castração e desvelando a face de ódio pela perda sofrida. A isso Lacan apelidou de “amódio”. OCORRE um basculamento: ali onde antes havia o amor, instala-se o ódio pelo ser amado.
“Quando Lacan inventa o neologismo ‘amódio’ e afirma que ‘o verdadeiro amor desemboca no ódio’, e ainda que ‘não conhecer de modo algum o ódio é não conhecer de modo algum o amor também’, é para frisar que se o amor colmata uma falha, o ódio a escancara: ao perder o objeto amado, o sujeito sofre não tanto pela perda do objeto, mas pelo fato de ter que vir a se defrontar – novamente – com a falta originária de objeto, que era tão prazerosamente escamoteada pelo objeto amoroso. O ódio advém como a revelação fulminante de uma falta que não pode ser preenchida e que, ilusoriamente, o objeto amoroso parecia tamponar – logo, o ódio advém pela percepção violenta, intrusiva, da ilusão inerente ao objeto amoroso.”[9]
Portanto, não é à toa que os tribunais criminais estão repletos de casos em que o amor tornou-se em tragédia. A literatura e o cinema, além dos mitos, expõem fartamente este lado da humanidade. E não será preciso que o amor romântico tenha sido vivido na prática, haja vista a existência de casos como o que culminou na morte de John Lennon – alguém que tanto cantou o amor, seja individual, seja coletivo – foi vítima de uma ilusão. O amor, segundo Lacan, dá a ilusão de que existe a “relação sexual”, no sentido do encaixe perfeito, da completude perfeita.
A dificuldade de vivenciar a perda do objeto amado advém, acima de tudo, da perda de parte de si com o fim do enlace, e do vazio que emerge de forma avassaladora. Diante deste cenário, o sujeito despenca de seu lugar desejado, de ser uma (suposta) completude no outro, enquanto é lançado no vazio da falta-a-ser. Emergindo a possibilidade de atitudes extremadas como homicídios, feminicídios ou suicídios. Isto, é claro, estará mais próximo de ocorrer quanto mais vulnerável é a pessoa do ponto de vista da saúde psíquica.
A criança, sujeito de desejo
Lacan, no Seminário 11, discorre que a constituição do sujeito se desdobra em duas operações: alienação e separação. Ao nascer, o recém-nascido se encontra em total desamparo. Em tudo ele depende do outro para sobreviver. Ele recebe os cuidados maternos ao mesmo tempo em que se encontra alienado ao desejo do outro, assujeitado ao outro encarnado na mãe. Daí a necessária simbiose mãe-filho, contribuindo para a sobrevivência do infante. Porém, para que ele se torne um sujeito, deverá ter acesso ao registro simbólico. O operar da castração aos poucos o levará à separação. O corte, entretanto, inaugura um sujeito dividido – dividido entre o eu e o outro. Ele quer preencher a falta que há no outro (outro materno), e ao mesmo tempo preencher a sua própria.
Porém, como já se viu, a entrada do sujeito no campo simbólico das representações pressupõe uma castração, uma perda. E o ponto originário a partir do qual o sujeito se constitui situa-se na linguagem. Linguagem que já se achava dada de antemão, pois ao nascer ele já é inserido no campo da linguagem. Portanto, o sujeito não é causa de si mesmo, mas efeito da linguagem com seus significantes. Eis a raiz que funda o processo de alienação, para Lacan. (ZANOLA, LUSTOZA, 2019)
Esse processo não se dará sem que o bebê experimente alguma conturbação. Ele poderá se angustiar ante as experiências de insatisfação, de privação, frustração; experimentará a angústia da separação da mãe, mas não somente da mãe, como também das pessoas com as quais ela tem vínculo. Até mesmo o afastamento de uma babá poderá gerar angústia.
Além de dependente dos pais, a criança os observa muito. Os pais são o mundo dela, a baliza para o mundo, em termos de conhecimento, sabedoria, segurança e afeto. Então, é claro, tudo que há entre estes dois universos afeta a criança. Na ocorrência da separação dos pais ela pode sentir mágoa, conflito de lealdade, culpa, além da angústia. Cada caso é um caso, porém, em geral, a separação dos pais não é algo facilmente vivenciado pelo filho. Para algumas crianças, esta situação tem a natureza de um trauma psíquico, vivenciado como a possibilidade da perda objetal, como ameaça ao eu.
Para Lacan, o sintoma da criança vai apontar aquilo que há de sintomático na estrutura familiar. Para ele não há dúvida de que, na estrutura familiar, o lugar da criança é sempre um lugar sintomático. A criança é quem vai denunciar a condição dos pais, pois ela é o alvo da projeção dos ideais dos pais, de suas frustrações e problemas, enquanto casal e enquanto sujeitos do desejo. (ZORNIG, 2001)
Porém, falar de sintoma pressupõe haver uma doença; ou pelo menos algo que é desconcertante. De que doença (ou sintoma) estaríamos falando? Trata-se de algo que está nos pais ou que são os pais. O lugar (a causa) da “doença” de uma criança são os pais. Lembrando que não precisam ser os pais biológicos, nem a família aos moldes tradicionais, mas os pais são aqueles que exercem tais funções.
Oportuno dizer que, em psicanálise, “sintoma” tem significação diferente da conotação médica. Dias (2006, p. 402) esclarece que na teoria freudiana, o sintoma é uma formação do inconsciente, que deve ser valorizada justamente por ser uma das principais vias de acesso ao que há de mais íntimo para o paciente: sua subjetividade. Em Lacan, o sintoma é, inicialmente, enfatizado em sua dimensão simbólica, um significante de algo que não vai bem no sujeito: um nó de significações susceptível de ser desfeito pela via da interpretação. Há um saber inconsciente, determinado pelo significante recalcado, mas há também um saber de si como sujeito pulsional, determinado pelo gozo.
Assim, o sintoma da criança oculta a verdade do par parental – uma certeza antecipada da verdade. Isto tanto é verdadeiro que a prática psicanalítica atesta que, na medida em que os pais se submetem a tratamento, emerge a possibilidade de transformação da família como um todo, quando então os sintomas da criança desaparecem.
Lacan também fala que a criança é um lugar de gozo, gozo da realização de desejos inconscientes, ou inconfessáveis, dos pais. E o gozo da criança é de sentir-se encaixada no desejo de cada um dos pais, desejos estes que a determinam e subordinam de forma inconsciente. E se há um sujeito desejante, há um sujeito faltoso, desde a instalação do recalque originário.
No Direito fala-se de gozo num sentido diferente do falado na Psicanálise. Fala-se em gozo de direitos, algo do que o indivíduo (sujeito do direito) venha a se beneficiar. Em Psicanálise, o gozo tem total relação com o trauma psíquico (passagem pelo Édipo), e a criança o sente em seu corpo quando as emoções não são simbolizadas, representadas pela fala. Geralmente são emoções intensas, contraditórias e agudas, que geram grande sofrimento.
Então, há como que uma complacência mútua e uma conivência tácita da criança para com os genitores, este é seu modus vivendi. A saída sintomática da criança tem a ver com estes sentimentos aflitivos recalcados e ao mesmo tempo com os ideais de ego dos pais. Ideal de ego tem tudo a ver com o narcisismo dos pais, de querer que o filho seja tudo aquilo que eles estabeleceram como ideal, primeiro para si, depois para o filho.
Os efeitos da alienação parental na criança, alguns exemplos
Crianças afetadas pela alienação parental podem apresentar os mais variados sinais comportamentais: o clássico é o da rejeição ao genitor alienado. Como nos casos em que ela não quer morar com ele, nem tampouco visitá-lo, quando ela repete o discurso do genitor alienador, torna-se aliada dele, e se sentirá segura de que estar fazendo a coisa certa.
Cita-se como exemplo o caso de uma garota de 07 anos de idade, muito comunicativa e segura de si, que vivia com a mãe e os avós e não queria mais visitar o pai. Ao ser entrevistada por esta psicóloga, ela apresentou uma série de queixas contra o genitor, explicando que ele não era bom pai e que não sabia cuidar dela direito. E exemplificava, citando coisas tais como: o pai a levava para a piscina mesmo sabendo que ela poderia gripar; que ele lhe dava batatas fritas para o lanche; que uma vez ele a deixou sozinha com a babá na piscina do condomínio.
Ao falar sobre a mãe, somente tinha elogios. E quando pela terceira vez lhe foi perguntado porque ela não queria mais ver o pai, a criança levantou-se rápido da cadeira, bateu na mesa com a mão fachada e disse em tom imperioso: “Ele não me ama! Ele abandonou a gente e foi se casar com outra mulher!”.
Diga-se que a genitora e os familiares maternos da criança eram forteS aliados na reprovação a este pai; e hábeis influenciadores para levar, não somente ela, mas outros da sua convivência, a crer no que diziam, injustificadamente, contra o genitor. A campanha difamatória incluía uma longa lista de atos supostamente reprováveis. A criança demonstrou ter assimilado todo aquele antagonismo para com o genitor, exibindo sinais claros de uma grave alienação parental já estabelecida. O quadro indicava que o futuro daquela relação paterno-filial poderia estar seriamente comprometido.
Com base nas percepções de Gardner, o comportamento da criança apresentou: racionalizações fracas ou frívolas para a depreciação do genitor alienado; a falta de ambivalência (pois não lhe foi permitido vivenciar os próprios sentimentos em relação a ele); o apoio automático ao(s) alienador(es) no conflito parental; a presença de encenações ‘encomendadas’ (ainda que parecesse espontânea, a criança reproduzia o discurso materno).
E considerando os estudos lacanianos, este comportamento indica que ela fora capturada pelo desejo materno; tornou-se lugar de gozo, de realização de fantasias e desejos inconscientes; o falo que visa tamponar a falta que há na mãe, para que ela que não se depare com a própria incompletude, ou com a frustração, por ter sido rejeitada pelo amado. Tudo por causa do elevado narcisismo materno, cujo ideal de ego é alto, inatingível, gerando o sentimento de inadequação e baixa autoestima, que ela tenta evitar a todo custo.
Em outro exemplo a criança, também de 07 anos, acreditava ser rejeitada ou preterida pelo genitor, que já tinha outra família, e que, a exemplo da primeira, ouviu da genitora alienadora, que o pai não a amava, pois se a amasse não as teria abandonado, que ele nunca tem tempo para ela, que é negligente para com a filha. Entretanto, esta criança exibia outro comportamento. Veja-se:
Ela mostrava-se tímida e depressiva. Além disso, apresentou sintomas de doença alérgica (erupções na pele) após a separação dos pais. A criança fora encaminhada pelo médico à psicoterapia, pois não havia causa orgânica para os sintomas. Em sessão, a criança contou à psicóloga que havia sido abandonada pelo pai. Quando foi trabalhado com ela seus sentimentos acerca dessa situação, quando ela pode falar do que lhe afligia, a criança apresentou melhora. Neste caso em particular, a genitora era uma mulher sofredora, exibindo sinais de frustração, angústia, dor e ódio.[10]
Nos dois casos citados, os genitores destas crianças queriam se fazer presentes, mas havia o impedimento das genitoras de ambas. Não havia, de início, impedimento de contato físico, mas por meio de palavras negativas, difamatórias. Aos poucos os obstáculos às visitas foram aparecendo. Em ambos os casos, os pais davam sinais de cansaço diante desta situação, estando desencorajados a persistir na luta pela convivência com suas filhas.
No entanto, mesmo que a garota do primeiro caso pareça saudável à primeira vista, podem surgir problemas em seu desenvolvimento como resultado das dúvidas lançadas sobre o amor do pai e os cuidados que dispensa a ela. Se essa situação não for tratada, é possível que problemas emocionais e comportamentais surjam mais tarde, como reflexo de um narcisismo mal elaborado.
Veja-se um terceiro caso: a criança cresceu sob a flagrante campanha de desmoralização do pai, ouvia a mãe referir que ele não era bom pai, nem tampouco bom marido. Uma mãe que se dedicava ao extremo aos cuidados da filha. Inclusive este fato foi apontado pelo genitor como o motivo da separação conjugal, posto que ele não encontrava lugar na relação.
Depois da separação do casal, a campanha difamatória ficou ainda mais acirrada, e a menina foi aos poucos sendo dissuadida a cortar laços com o genitor. Aos 14 anos ela não queria mais vê-lo e publicava indiretas a ele nas redes sociais, inclusive usando termos pejorativos para se referir ao pai. Estes sentimentos de reprovação se estendiam à figura masculina como um todo, revelando os mecanismos psíquicos por detrás da escolha objetal de natureza homossexual, e o lugar que ela ocupava frente ao desejo materno (a vinculação afetiva entre mãe e filha era ímpar, denotando a manutenção do aspecto simbiótico).
Este exemplo indica que a alienação parental pode se dar não somente no contexto da separação ou do litígio judicial, mas pode estar presente na forma de relacionamento entre os pares amorosos, e destes para com a criança, desde o início da união conjugal. Em alguns casos, o pai se mostra um aliado da mãe na relação simbiótica com o filho, o que favorece a união do casal.
Veja-se outro exemplo de alienação parental promovida pelo lado paterno. Neste caso, após o divórcio consensual e a definição da guarda em favor da genitora, um pai questionou na Justiça a decisão da mãe de mudar-se de Estado e levar o filho, requerendo a modificação da guarda em seu favor. O garoto tinha então 11 anos de idade, e sua mãe unira-se a um novo companheiro.
Enquanto ela preparava a morada em outro Estado, o filho ficara na companhia paterna, residindo na casa dos avós com o pai e madrasta. Ao retornar para buscar o filho, a mãe enfrentou obstáculos, pois a família paterna do menino já o havia influenciado a não querer ir com a mãe. Todos alegavam que não saberiam se a criança estaria bem ou não longe deles, e que não conheciam o novo companheiro da mãe, se era uma pessoa confiável ou não. Da forma como se referiam, estavam certos de que a mudança não seria boa para a criança.
Após meses de querela, a criança, que antes referia estar decidida a ficar com o pai, externou no corpo um conflito interno muito grande diante daquela situação. Em certo dia, teve uma crise de raiva, rebelando-se contra o pai e avôs, assustou a todos quando aos gritos e pontapés comunicou que queria morar com a mãe. O comportamento exibia sinais de colapso nervoso, semelhante ao transtorno de estresse pós-traumático. O garoto recuperou o equilíbrio quando a família paterna o liberou para ir com a mãe.
Quando há denúncia de abuso sexual concomitante, o caso ganha um contorno ainda mais complexo. Será preciso distinguir a falsa denúncia, da denúncia verdadeira, o que não é tarefa fácil. Existe uma forma bem variada de entender esta questão, pois nem sempre há marcas físicas na criança abusada, e as marcas psicológicas são semelhante a muitas outras problemáticas, tornando a avaliação psicológica uma jornada nem sempre bem sucedida.
Faz-se imprescindível na avaliação de casos envolvendo tal tipo de denúncia, que, além de ouvir a criança[11] e investigar os possíveis sinais psicológicos, o perito se detenha a observar a forma como a mãe lida com a situação; se, por exemplo, ela demonstra querer proteger a criança, ou meramente acusar o pai; quais as decisões tomadas por ela após a suspeita do abuso; como ela ficou sabendo; como ela reagiu à notícia; se formulou denúncia nos órgãos competentes, se levou a criança ao médico ou ao terapeuta. Algumas mães se mostram altamente empenhadas em acusar o pai, mais do que em proteger a/o filha/o, sinal de comportamento alienador.[12]
Os sintomas mais presentes na criança envolvida em conflitos, são: angústias, ansiedades, dificuldades nas interações pessoais/sociais, agressividade, dificuldade de amar ou de expressar emoções, depressão, somatização. Nem tudo por efeito de uma presumida alienação parental. Por vezes, mediante os conflitos parentais a criança apresentará o conflito de lealdade, que é um conflito gerado da ambivalência entre querer e não querer ir ao encontro do genitor, entre gostar e se sentir culpado por gostar desse alguém que um dia magoou sua mãe ou pai. Daí porque a perícia técnica deve ser preparada e cuidadosa para identificar as prováveis causas por detrás dos sintomas.
Alguém que não concorde com o tema da alienação parental poderá argumentar que “pai e mãe são lugares intercambiáveis”, de modo que um genitor possa ser facilmente substituído por outro que exerça tal função. Porém o que se deve atentar, no caso da alienação parental, é que não se trata da troca pura e simples de pessoas que exerçam funções, o que há é o apagamento da figura parental, por meio de estratégias maliciosas, trazendo consequências danosas para a criança e todo o grupo familiar.
Ressalte-se a importância da dimensão inconsciente por detrás dos atos de alienação. E, não se deve esquecer, cada membro do par parental participa dessa trama, presos a uma situação trágica, que é o trauma da vivência da castração. Ser reconhecido como figura parental, bem como obter sucesso no exercício da função paterna, cabe também ao que ocupa tal posição e/ou tal função. Como ele se presentifica na vida do filho ou filha? Ele amou a mãe dele/a e externou isso? Assumiu funções parentais ao lado dela? Ele percebeu previamente a relação simbiótica mãe-criança? Usou de habilidade para barrá-la? Ou ele descansou de suas obrigações, desistiu de lutar ou de fazer-se presente? Estas são algumas questões que podem ser feitas.
A psicanalista Françoise Dolto, em sua obra Quando os Pais se Separam (2003), esclarece que desde o ventre materno a criança ouve a voz da mãe e igualmente a do pai; de modo que o pai já tem seu lugar marcado no inconsciente da criança. Além do que, ela está atenta quando a mãe conversa com o pai e como se refere a ele. Constitui um bom desafio ao pai ser um bom recurso afetivo da mãe. Ele se presentifica e enriquece a vitalidade da criança.
Considerações finais
Buscou-se com esta explanação demonstrar que a alienação parental tem suas raízes nos desejos inconscientes dos pais, em especial do alienador. A criança ocupa lugar de gozo, sintoma do trágico na família, podendo vir a ser objeto de manobra do alienador, que insiste na tentativa de obliterar, de apagar, de fazer desaparecer o outro, aquele que incomoda. O alienador expõe, com isso, as suas feridas narcísicas em meio a uma castração mal resolvida.
Uma vez alienada, ou vítima de tentativas de alienação, a criança terá sua saúde psíquica comprometida, exibindo sinais que variam de pessoa para pessoa, indo desde a angústia e depressão ao desvio de conduta ou caráter, passando por sintomas orgânicos e o estresse decorrente do conflito de lealdade. Quaisquer que sejam os sintomas, eles contam a história de um fracasso do adulto em lidar com suas frustações no campo amoroso.
Giuglielmetti (1999), citando a psicanalista Maud Mannoni (1967), afirmou que “A criança não é uma entidade em si, ela é abordada a princípio pela representação que o adulto tem dela” – indicando as diferentes demandas que surgem no processo psicanalítico de uma criança: demanda parental, demanda da criança, demanda do analista, ou psicólogo, em relação à sua própria infância. Estando no contexto da Justiça, pode-se acrescentar: demanda dos operadores e de cada membro da equipe psicossocial. Em processos envolvendo menores, estes profissionais devem ser a voz da criança/adolescente, buscando zelar pelo seu melhor interesse. Necessário se faz que cada um esteja atento aos próprios sentimentos em jogo, pois traumas não elaborados podem dificultar o sucesso dessa empreitada. Muitas das vezes, o profissional é também ele atravessado pelos fantasmas de relações parentais conflituosas, podendo estar presente a alienação parental, levando a entendimentos ou decisões equivocadas, pautadas nas próprias questões pessoais.
Tanto quanto possível, deve-se atuar no sentido de viabilizar a presença das figuras parentais na vida de crianças e adolescentes. Não há garantias de que as funções paterna e materna sejam exercidas a contento, e que se consiga favorecer a boa estruturação psíquica ou a saúde emocional dos infantes; contudo, tais questões devem ser visadas quando das avaliações periciais e das decisões judiciais a serem tomadas.
Para finalizar, ressalte-se a importância do trabalho científico de psicólogos, psicanalistas e psiquiatras na explicitação da problemática. E, igualmente, a importância da Lei da Alienação Parental instituída neste país. Ainda que muitos se tenham levantado contra este instituto, pelos mais variados motivos, a LAP tem seu papel fundamental, no sentido de esclarecer, orientar e resguardar o direito das crianças e adolescentes, face às investidas dos alienadores, coibindo abusos morais e psicológicos contra eles, uma vez que os litígios familiares os tornam ainda mais vulneráveis.
REFERÊNCIAS
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[1] O texto foi originalmente publicado na Revista Interdisciplinar Sistema de Justiça e Sociedade, da ESMAM/TJMA. Acesso pelo link: https://justicaesociedade.tjma.jus.br/index.php/esmam/article/view/138 . Esta publicação contém algumas alterações ao texto original, sob inteira responsabilidade da autora.
[2] Analista Judiciário-Psicóloga do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, há 14 anos atuando com avaliações psicológicas/perícias junto às Varas de Família e Varas de Interdição e Curatela da Comarca da Ilha, São Luís-MA; especialista em gestão pública; psicanalista.
[3] A psicóloga forense Tamara Brockhausen, membro da Task Force de especialistas mundiais (PASG), criada para estudar a Alienação Parental e sua inclusão no CID -11 e no DSM-5 (Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), explica que há reconhecimento oficial, internacional, da existência da alienação parental, porém do termo “síndrome”, não: “O termo síndrome é um termo em desuso. Ele foi muito questionado porque associa a uma doença psiquiátrica, a uma doença médica. Isso caiu em desuso. O que o CID reconhece é o termo alienação parental e não o termo síndrome” – salienta a psicóloga.
Disponível em: https://ibdfam.org.br/noticias/6717/OMS+reconhece+a+exist%C3%AAncia+do+termo+Aliena%
C3%A7%C3%A3o+Parental+e+o+registra+no+CID-11#. Acesso em 22/01/2020.
[4] SILVA, F. S. Lei de Alienação Parental, revogação total, manutenção integral ou aperfeiçoamento? Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/344796/lei-de-alienacao-parental-revogacao-total-manutencao-integral.
[5] CUNHA, R. P. Direito das famílias. 2.ed. Rio de Janeiro: forense, 2021. p.712.
[6] _____Opus cit.p.712.
[7] SARMET, Y. A. G. Os filhos de Medeia e a Síndrome da Alienação Parental. In: Psicologia USP [online]. 2016, v. 27, n. 3 [Acessado 2 Junho 2021] , p. 483. Disponível em:
[8] “Foraclusão” foi a tradução proposta por Lacan para o termo alemão usado por Freud verwerfung (rejeição). É um termo de uso corrente no vocabulário jurídico procedimental e significa o vencimento de um direito não exercido nos prazos prescritos. (LEITE, 2008)
[9] JORGE, M. A.C. Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan – vol.3: a clínica da fantasia. 1.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2017. p. 179.
[10] Aula da professora e psicanalista Lenita Duarte ministrada no Seminário “A Criança Frente ao Litígio Parental: Uma Interlocução da Psicanálise com o Direito de Família”, Fórum do Campo Lacaniano Niterói-RJ, aula transmitida pelo aplicativo Zoom, em 23/06/2021.
[11] Obter provas pautadas no testemunho de crianças não é tarefa fácil. Porém há várias alternativas metodológicas, uma delas é a técnica chamada entrevista investigativa, nascida no âmbito policial e da criminologia norte-americana, amplamente difundido, aplicável também às áreas cíveis e de família. Mais informações em: http://www.mpap.mp.br/images/infancia/t%C3%A9cnicas_de_entrevista_investigativa-1.pdf
[12] DIAS, M. B. (Coord.). Incesto e alienação parental. 2ª ed. rev. ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
Os artigos assinados aqui publicados são inteiramente de responsabilidade de seus autores e não expressam posicionamento institucional do IBDFAM