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Reflexões sobre o uso inadequado do termo “menor” e sua influência na (des)proteção dos direitos das crianças e dos adolescentes: uma rápida análise histórica do direito das crianças e dos adolescentes e da necessidade de identificá-los em suas particular
*Fabiano Rabaneda dos Santos é advogado especialista em Direito de Família e Sucessões.
Ao analisarmos a evolução histórica do direito das crianças e dos adolescentes, podemos observar que, na sociedade romana, fundada no poder paterno, havia regulamentações específicas alicerçadas na noção de "pátrio poder" que era exercido pelo pater famílias, que concedia ao chefe da família a autoridade absoluta sobre seus filhos os tratando como um objeto de relações jurídicas sobre os quais o pai exercia o direito de proprietário, tendo poder de dar a vida e a morte sobre seus descendentes.
Ainda na antiguidade, existiram práticas religiosas que envolviam o sacrifício de crianças em algumas culturas. Um exemplo citado é o caso das crianças incas, que eram deixadas no topo de montanhas como oferendas aos deuses incas. Essa prática fazia parte de rituais religiosos específicos e estava ligada à crença na pureza das crianças como uma forma de agradar ou apaziguar as divindades.
Durante a Idade Média, a religião cristã exerceu uma influência significativa nos sistemas jurídicos e sociais que por meio dos concílios eclesiásticos, foi estabelecido normas de proteção às crianças, impondo penas tanto físicas como espirituais aos pais que abandonavam ou expunham seus filhos.
Nesse período, os filhos nascidos fora do casamento eram frequentemente discriminados, pois eram considerados uma ameaça à instituição sagrada do matrimônio, sendo vistos como uma evidência da transgressão dos valores morais vigentes. Essa discriminação refletia as normas sociais e religiosas da época, que enfatizavam a importância da família conjugal legitimada pelo casamento.
Sob tais influências, sobretudo das Ordenações do Reino, que estabeleciam a autoridade paterna como máxima no âmbito familiar, houve um reforço do poder do pai na sociedade colonial brasileira. A figura paterna detinha o controle sobre decisões relacionadas à família, como casamento, educação dos filhos e administração dos bens familiares. Ele era reconhecido como a autoridade máxima dentro do lar, exercendo poder decisório sobre todos os assuntos familiares.
Essa estrutura de poder paterno refletia as normas legais estabelecidas pelas Ordenações do Reino, que moldaram as relações familiares na época. O pai tinha o papel de chefe de família, sendo responsável por tomar as decisões importantes e representar a família perante a sociedade.
No contexto específico dos povos indígenas, a presença dos jesuítas trouxe uma dinâmica peculiar, já que como os jesuítas encontraram dificuldades em converter e educar os adultos indígenas devido às suas tradições e resistência à assimilação cultural, como estratégia alternativa eles passaram a concentrar seus esforços na educação das crianças indígenas, objetivando alcançar os adultos através das crianças: é que moldando as crianças indígenas de acordo com os valores e crenças cristãs poderia os jesuítas influenciar as gerações futuras e promover a assimilação desejada pelos colonizadores.
Para o resguardo do pátrio poder, ao pai era assegurado o direito de castigar o filho como forma de educá-lo, excluindo-se a ilicitude da conduta paterna se no exercício desse mister o filho viesse a sofrer lesão ou falecer.
Na vigência das Ordenações do Reino, existiam regras específicas sobre a imputabilidade penal e as penas aplicáveis a crianças e adolescentes, que de acordo com essas ordenações, a imputabilidade penal era alcançada a partir dos sete anos de idade e entre os dezessete e os vinte e um anos, já eram considerados jovens adultos e, dependendo do crime cometido, poderiam ser condenados à pena de morte por enforcamento.
Em 1830, ocorreu uma alteração significativa no Código Penal Imperial do Brasil, que introduziu a noção de capacidade de discernimento como critério para a aplicação da pena. Essa mudança estabelecia que a responsabilidade penal não deveria ser baseada apenas na idade do indivíduo, mas sim na sua capacidade de compreender a natureza e as consequências de seus atos.
Essa abordagem baseada no discernimento foi mantida até 1921, quando a Lei nº 4.242 substituiu o sistema biopsicológico pelo critério objetivo de imputabilidade, estabelecendo que a imputabilidade criminal seria determinada exclusivamente pela idade do indivíduo, o que acabou perdurando até os dias atuais.
No período de libertação dos escravos, marcado pelo aumento da população nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo com a intensa migração dos recém-libertos, surgiram diversos desafios sociais, como doenças, falta de moradia adequada e altos índices de analfabetismo, exigindo a implementação de medidas urgentes por parte das autoridades.
Como forma de amenizar tais problemas, foram estabelecidas entidades assistenciais que adotaram práticas tanto de caridade – buscando fornecer auxílio direto aos mais necessitados – como de caráter higienista – com foco na promoção da saúde pública e na melhoria das condições sanitárias –, obtendo assim uma resposta às demandas sociais emergentes, buscando mitigar os efeitos negativos do rápido crescimento populacional e da falta de estrutura adequada.
No entanto, é importante observar que essas medidas também refletiram as ideologias e preconceitos da época, prevalecendo o controle social e a segregação de determinados grupos da população – especialmente a população negra – através da implementação de políticas discriminatórias e restritivas.
Muitas das medidas assistenciais e higienistas implementadas tinham o objetivo implícito de controlar e segregar essa população – em vez de promover sua inclusão e igualdade de direitos – ocasionando durante esse período histórico a comum prática do abandono de crianças, especialmente aquelas consideradas ilegítimas ou filhas desta população, que eram deixadas na porta de residências ou mesmo nas ruas.
Foi quando surgiram as Rodas dos Expostos, mantidas pelas Santa Casas de Misericórdia, onde as pessoas podiam deixar anonimamente as crianças que desejavam abandonar. O objetivo dessas instituições era fornecer um local seguro para receber essas crianças e garantir sua sobrevivência.
As crianças abandonadas nas Rodas dos Expostos eram acolhidas e cuidadas pelas instituições para serem criadas em orfanatos. Embora a criação dessas Rodas fosse uma resposta à necessidade de cuidar das crianças abandonadas, também é importante reconhecer que essa prática estava ligada à falta de apoio e recursos para as famílias em situações vulneráveis.
Somente em 1912, influenciado por movimentos internacionais da época e após discussões internas relevantes, um projeto de lei foi apresentado com o objetivo de modificar a abordagem do direito dessas crianças. Esse projeto foi fundamentado na construção de uma Doutrina do Direito do Menor, que se baseava no binômio carência e delinquência.
Foi nesse contexto social que o termo "menor" surgiu e ganhou destaque, sendo posteriormente incorporado no Código de Menores de 1927, conhecido como Código Mello Mattos. Esse código adotou expressamente a doutrina da situação irregular, que fundamentava a necessidade de proteção e assistência estatal contra o abandono, os maus-tratos e as influências desmoralizadoras enfrentadas pelos menores.
O Decreto 17.943-A – Código de Menores – estabeleceu que o juiz era responsável por decidir o destino das crianças expostas e dos menores abandonados. Esse código atribuiu ao Estado a autoridade de determinar as medidas necessárias para garantir o bem-estar dessa população.
Segundo o Código Mello Mattos, era dever da família, independentemente de sua situação econômica, suprir adequadamente as necessidades básicas das crianças e dos jovens, seguindo o modelo idealizado pelo Estado. Essa disposição refletia a preocupação em assegurar que todas as crianças tivessem acesso a condições adequadas de vida e desenvolvimento.
Além disso, o Código de Menores também previu medidas preventivas com o objetivo de reduzir a incidência de crianças em situação de rua. Essas medidas visavam minimizar os problemas enfrentados pelas crianças que viviam nessas condições, buscando oferecer alternativas de proteção, assistência e reintegração social.
É importante destacar que o Código Mello Mattos, embora tenha representado um avanço na proteção dos direitos das crianças, também apresentava algumas limitações e aspectos discriminatórios. Uma dessas limitações era a tipificação dos menores como "vadios" quando eles se mostravam resistentes a receber instruções ou a se envolver em trabalho.
Essa disposição do código refletia uma visão estigmatizada e preconceituosa em relação aos “menores” que não se encaixavam nas expectativas estabelecidas pelo Estado e ao rotulá-los como "vadios", o código contribuía para a marginalização e a criminalização desses indivíduos, em vez de oferecer medidas adequadas de proteção e apoio.
Essa abordagem discriminatória refletia os preconceitos e as ideias predominantes na época em relação às crianças em situação de vulnerabilidade: quem não se lembra da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM), e na sua superlotação... na violência institucional... na falta de estrutura adequada e na ausência de programas efetivos de ressocialização?
Muitas condições adversas contribuíram para a reprodução de ciclos de violência e exclusão social entre os “menores” atendidos pela instituição, que em vez de promover sua reintegração saudável na sociedade, se envolvia com denúncias de desvio de verbas, superlotação, ensino precário e incapacidade de recuperação.
Em nítida contradição entre o teórico e prático, a falta de estrutura adequada e ausência de programas efetivos de ressocialização contribuíram para a marginalização e a criminalização dos “menores” atendidos, em vez de oferecer-lhes o suporte necessário para uma reintegração saudável na sociedade.
A partir da década de 1970, surgiram movimentos sociais e organizações que lutavam pela garantia dos direitos da infância e adolescência, sendo considerado um marco importante a criação do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, que denunciou as violações sofridas por crianças e adolescentes em situação de rua e exigiu a implementação de políticas públicas.
De fato, os movimentos de direitos humanos tiveram uma influência significativa na evolução do direito das crianças e dos adolescentes, especialmente com a criação da Doutrina da Proteção Integral. Fruto da Declaração dos Direitos da Criança, elaborada por Eglantyne Jebb e adotada pela Liga das Nações em 1924, foi criado um marco importante para o implemento da Doutrina da Proteção Integral, estabelecendo princípios fundamentais para a proteção dos direitos das crianças, reconhecendo-as como sujeitos de direitos específicos e exigindo a adoção de medidas adequadas para garantir seu bem-estar e desenvolvimento integral.
A Doutrina da Proteção Integral representou uma mudança de paradigma na abordagem do direito das crianças e dos adolescentes, enfatizando a necessidade de proteger todos os aspectos do desenvolvimento das crianças e adolescentes, incluindo sua saúde física e mental, educação, proteção contra a violência e exploração, participação ativa na sociedade e respeito à sua identidade cultural.
Devido à intensa mobilização de organizações populares nacionais e atores envolvidos com a infância e juventude, bem como a pressão de organismos internacionais como o UNICEF, surgiu um movimento de ruptura com o modelo da “Situação Irregular” estabelecido pelo Código de Menores. Nesse contexto, destaca-se a atuação do Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua – MNMMR, que teve um papel fundamental na busca por uma participação ativa e representativa de diversos segmentos da sociedade interessados na promoção dos direitos da infância e juventude.
O MNMMR e se tornou um dos principais polos de mobilização para a efetivação da Doutrina da Proteção Integral em âmbito nacional, enfrentando os desafios e problemas enfrentados pelos meninos e meninas em situação de rua, lutando por seus direitos e promovendo sua inclusão social, influenciando diretamente o reconhecimento dos direitos das crianças e dos adolescentes pela Constituinte de 1988.
Desta maneira, reconhecimento dos direitos das crianças e dos adolescentes tornou-se um princípio fundamental do ordenamento jurídico brasileiro, que através da redação do artigo 227 reconheceu a criança e o adolescente como sujeitos de direitos e determinou a prioridade absoluta na formulação e execução das políticas públicas voltadas para esta população.
Portanto, a partir da Constituição de 1988 e da influência da Doutrina da Proteção Integral, as crianças e os adolescentes passaram a ser reconhecidos como sujeitos de direitos, ou seja, indivíduos que possuem direitos fundamentais inerentes à sua condição humana. Essa mudança significativa de paradigma trouxe uma nova perspectiva sobre a infância e a adolescência, destacando a importância de garantir o pleno desenvolvimento e a proteção integral desses grupos etários.
Como sujeitos de direitos, as crianças e os adolescentes têm direito à vida, à saúde, à educação, à convivência familiar e comunitária, à proteção contra a violência, à participação social, entre outros direitos fundamentais.
Diferente do conteúdo da situação irregular trazida pelo Código de Menores, a proteção integral significa que todas as medidas adotadas em relação às crianças e aos adolescentes devem considerar seu melhor interesse, levando em conta sua condição peculiar de desenvolvimento. Isso implica na promoção de políticas públicas e ações que garantam o acesso a serviços de qualidade, o combate à discriminação e à violência, a oferta de oportunidades de desenvolvimento integral e a participação ativa na tomada de decisões que os afetem.
A perspectiva dos direitos humanos reconhece a capacidade de crianças e adolescentes de expressar suas opiniões, desejos e necessidades, de acordo com sua idade e maturidade, considerando crianças como crianças e adolescentes como adolescentes, ambos sujeitos de direitos em suas peculiares condições.
No contexto do significante – é a forma material ou perceptível de uma palavra – e seu significado – que expressa o conceito ou a ideia que associamos a um determinado significante – a diferença entre a terminologia "crianças e adolescentes" e "menores" está relacionada à perspectiva adotada na abordagem desses grupos.
Como vimos, o termo "menores" era comumente utilizado no contexto do antigo Código de Menores, que enxergava esses indivíduos de forma negativa, associando-os à ideia de situação irregular e focando nas características de vulnerabilidade e delinquência.
Por outro lado, o uso dos termos "crianças e adolescentes" reflete uma visão mais ampla e garantista, reconhecendo a diversidade e a singularidade dessas faixas etária numa abordagem da proteção integral, considerando o melhor interesse das crianças e dos adolescentes, levando em conta sua condição peculiar de desenvolvimento e suas necessidades específicas.
Ao adotar a perspectiva dos direitos humanos, entende-se que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos, com capacidade de expressar suas opiniões e participar das decisões que lhes dizem respeito, de acordo com sua idade e maturidade, diferentemente ao que era concedido aos “menores”, filhos de uma classe desprovida de condições sociais em que o abandono era tratado da mesma forma que a delinquência.
É importante destacar que a mudança de terminologia vai além de uma simples questão semântica. Ela reflete uma transformação conceitual e uma nova forma de encarar a infância e a adolescência, valorizando sua dignidade, suas necessidades e seus direitos, e combatendo estigmas e discriminações presentes no antigo modelo de "menorização".
Evitar o uso do termo “menor”, sobretudo quando estamos aplicando o sistema protetivo da Doutrina da Proteção Integral, implica em promover mecanismos e espaços de reconhecimento das crianças e dos adolescentes como sujeitos de direitos, superando as visões assistencialistas e paternalistas da advindas do Código Mello Mattos, colocando esses sujeitos no centro das políticas e ações voltadas para sua proteção e desenvolvimento, visando garantir sua dignidade, bem-estar e pleno exercício da cidadania.
A mudança cultural fincada pelo patriarcado, reflexo da terminologia “menor” e seu amplo uso nos dias contemporâneos, requer a desconstrução de padrões e crenças depreciativas que subestimam dos direitos das crianças e adolescente.
É preciso promover uma linguagem inclusiva e protetiva de modo que reste reconhecido pela sociedade a capacidade e dignidade das crianças e adolescentes, avançando nessa mudança cultural para construir uma sociedade mais igualitária, justa e inclusiva, na qual todas as pessoas, independentemente da idade ou gênero, sejam reconhecidas e respeitadas em sua plenitude, nunca menores em seus direitos.
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