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Pluralismo das entidades familiares e a necessidade de tutela jurídica às famílias paralelas
Victória Barboza Sanhudo[1]
Não é novidade que a nova ordem constitucional levada a efeito pela Carta de 1988 produziu reflexos nas famílias. Tanto é assim que, no art. 226, que prevê a família como base da sociedade e com especial proteção do Estado, há, ainda, a previsão de que “entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes” (§4º).
Assim, a utilização da expressão “também” tem a função de uma cláusula aberta, significando que nem todas as entidades familiares protegidas pela ordem brasileira estão expressamente arroladas na Constituição. Não resta dúvida, portanto, que o constituinte quis indicar a possibilidade de outras entidades familiares para além do elenco constitucional, não sendo este um texto taxativo.[2] Tem-se concretizado, então, o princípio do pluralismo das entidades familiares.
A partir disso, passou a ser família qualquer arranjo que inicia espontaneamente no seio da sociedade e tem como sua base e fundamento o cultivo da afetividade entre seus membros.[3] Passou, ainda, a ser eudemonista no sentido de que a célula familiar deve viabilizar o desenvolvimento pessoal de cada um de seus integrantes.
Desse modo, a ideia de família “se idealiza e se constrói por meio de uma entidade que se alicerça na afetividade e que tem, como causa final, a busca do projeto pessoal de felicidade de cada um de seus membros”.[4]
Nessa seara, as famílias paralelas são um dos modelos mais polêmicos e mais vistos atualmente, isto é, aquelas famílias em que a pessoa já possui um vínculo de conjugalidade ou união estável e, sem dissolução deste, passa a adquirir um novo vínculo da mesma natureza, mantendo “duplicidade de células familiares”[5].
Essa configuração familiar é polêmica porque, muito em razão do senso moral, algumas pessoas tendem a não a admitir, já que, em grande parte das vezes, a segunda família é mantida sem ciência da primeira, ocorrendo infidelidade por parte do indivíduo.
No entanto, não se esqueça que a determinada modalidade de família não pode ser ou deixar de ser tutelada pela ordem jurídica por mero juízo moral, observado que, caso a pessoa tenha posicionamento contrário às famílias simultâneas, é só não manter tais relacionamentos na sua vida particular, mas isso não deve impedir que, eventualmente aqueles que já vivenciam essa realidade, fiquem à margem da proteção do Direito.
Todavia, infelizmente, os Tribunais tendem a não admitir as famílias paralelas sob o principal fundamento de que o sistema jurídico brasileiro adotou a monogamia como princípio (e não como mero valor).
A propósito, há a Tese 529 do Supremo Tribunal Federal, na qual foi fixado o entendimento de que é possível o reconhecimento jurídico de união estável e de relação homoafetiva, com o rateio de pensão por morte. No entanto, a crítica que se faz é que a aludida decisão deixou de estabelecer os critérios para identificar aquele que seria o núcleo dos direitos familiares ou não. Dessa maneira, não obstante a decisão seja vinculante, ainda caberá ao Poder Judiciário o papel de aferir, no caso concreto, qual dos dois núcleos é “a” família.[6]
Verifica-se, então, que, apesar da Constituição prever, como traço marcante, o pluralismo das entidades familiares, as famílias simultâneas ainda hoje sofrem certa discriminação. Segundo Luciana Brasileiro, estudiosa do tema, essa discriminação é inconstitucional, porquanto impõe ao ente estatal a escolha de um dos arranjos familiares existentes em detrimento de outros, isto é, importando na criação de critérios para seleção que conduzirão as pessoas para um espaço de não direito, atentando contra a dignidade humana.[7]
Não há razão, portanto, para a discriminação dos relacionamentos simultâneos ou paralelos, sobretudo quando esse prejuízo a eles atribuído for oriundo se preconceito ou sensos moralistas, uma vez que tais não podem decidir algo tão substancial na vida das outras pessoas, que é a determinação da incidência ou não de proteção jurídica.
REFERÊNCIAS
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 23 fev. 2023.
BRASILEIRO, Luciana. As famílias simultâneas e seu regime jurídico. 3ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2021.
GIORGIS, José Carlos Teixeira. Direito de família contemporâneo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Famílias paralelas. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, v. 108, p. 199-219, jan./dez. 2013.
ROSA, Conrado Paulino da. Direito de Família Contemporâneo. 10ª ed. São Paulo: Juspodivm, 2023.
[1] Advogada. Bacharel em Direito pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul – FMP/RS, sendo aprovada com Láurea Acadêmica. Pós-graduanda em Direito de Família e Sucessões pela FMP/RS e em Processo Civil pela Escola Superior da Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil – ESA/OAB. Pesquisadora do grupo “Família, Sucessões, Criança e Adolescente e a Constituição Federal”, coordenado pelo Prof. Dr. Conrado Paulino da Rosa, vinculado ao PPGD da FMP/RS. victoriabsanhudo@gmail.com.
[2] GIORGIS, José Carlos Teixeira. Direito de família contemporâneo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 41.
[3] HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Famílias paralelas. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, v. 108, p. 199-219, jan./dez. 2013. p. 199.
[4] HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Famílias paralelas. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, v. 108, p. 199-219, jan./dez. 2013. p. 202.
[5] ROSA, Conrado Paulino da. Direito de Família Contemporâneo. 10ª ed. São Paulo: Juspodivm, 2023. p. 223.
[6] BRASILEIRO, Luciana. As famílias simultâneas e seu regime jurídico. 3ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2021. p. 162.
[7] BRASILEIRO, Luciana. As famílias simultâneas e seu regime jurídico. 3ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2021. p. 178.
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