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A aplicação extensiva da afetividade: garantismo ou insegurança jurídica?
André Anderson Gonçalves de Oliveira
RESUMO
O presente artigo consiste em uma análise crítica a respeito da classificação do valor da afetividade como princípio constitucional e suas respectivas consequências, frente ao universo jurídico. O embate de entendimentos doutrinários e jurisprudenciais se mostram deveras relevantes, tendo em vista que muitos atribuem à afetividade o caráter indispensável para a constituição da família, enquanto parcela oposta postula a relativização e a desconsideração do afeto como princípio jurídico. Neste prisma, a análise proposta visa expor correntes divergentes, as consequências fáticas e responder a seguinte indagação: o reconhecimento expansivo da afetividade como princípio constitucional constitui um marco de garantismo ou fonte de insegurança jurídica?
Palavras Chave: Princípio da afetividade. Família. Insegurança jurídica.
ABSTRACT
This article consists of a critical analysis regarding affectivity as a principle and its respective consequences in the legal universe. The clash of doctrinal and jurisprudential understandings are shown to be very relevant, considering that many attribute to affectivity the indispensable character for the constitution of the family, while the opposite part postulates the relativization and disregard of affection as a legal principle, In this light, the analysis The proposal aims to expose divergent currents, the factual consequences and answer the following question: does the expansive recognition of affectivity as a principle constitute a guaranteeing framework or a source of legal uncertainty?
Keywords: Principle of affectivity. Family. Legal uncertainty.
1INTRODUÇÃO
A ciência do direito está em constante alteração. Desde as das primeiras codificações até os dias mais atuais, o ordenamento jurídico, é moldado pelas mudanças sociais, culturais e antropológicas, visa o alcançar de paradigmas garantistas que tutelam de forma eficaz os interesses da sociedade. A busca por justiça, dignidade, respeitos aos direitos fundamentais, nunca estiveram tão translúcidos frente a momentos sombrios e desiguais vividos em outros estágios da ordem jurídica. Porém mudanças nem sempre significam evoluções científicas.
Dentre as mudanças substanciais ocorridas ao longo da realidade fática, o instituto que pode ser considerado como o mais afetado é a família, instituição basilar da sociedade. Novas realidades, mentalidades, princípios e costumes forçaram o direito de família e suas fundações constitucionais a se atualizarem frente aos interesses coletivos, pautados na liberdade, igualdade e fraternidade, que em conjunto instauram a dignidade efetiva, objetivo da Constituição da República de 1988.
Sob a perspectiva da metamorfose substancial do instituto da família, surge um elemento de relevante valor jurídico que atua diretamente no reconhecimento de entidades familiares e vínculos de parentesco: a afetividade. Para Maria Helena Diniz a afetividade é “corolário do respeito da dignidade da pessoa humana, como norteador das relações familiares e da solidariedade familiar” (DINIZ, 2012, p. 38). Em síntese, pode-se inferir que a afetividade é um valor jurídico de tamanha relevância, que se constitui pelo sentimento capaz de estruturar uma família, baseando-se na reciprocidade afetiva entre indivíduos que se reconhecem como pertencentes a um mesmo núcleo familiar.
Neste prisma, a afetividade adquire protagonismo, mediante tutela de entidades familiares e relações interpessoais, não pautados na mera união consanguínea ou civil, mas sim a partir do afeto. Não se enfoca nos elementos formais do relacionamento, mas sim nos efeitos materiais, resultados de uma efetiva relação familiar. A socioafetividade, então, se evidencia como um órgão vital para o direito de família, revestindo diversos institutos, dentre eles a noção da multiparentalidade, também intitulada de filiação socioafetiva, indispensável para a proteção da criança e adolescente, cujo interesse é tutelado e objeto de tratamento especial pelo texto magno.
Entretanto, não há bônus sem ônus. Apesar da afetividade se destacar como um norteador moderno do direito de família, com concretos acertos ao tutelar e garantir direitos fundamentais do cidadão, não pode ser aplicado de forma extensiva, de modo a constituir um princípio absoluto, não passível de relativizações.
Em suma, o artigo em questão se aprofundará nas temáticas supracitadas, cujo enfoque se evidencia como fundamental, tendo em vista a realidade jurídica, a importância dos respectivos direitos e deveres em discussão e a afetividade que adquire status de princípio, instaurando paradigmas progressistas, humanistas, garantistas, porém alvo de objeções e oposições legítimas, de cunho jurisprudenciais e doutrinárias. Assim, o questionamento é cristalino: a exacerbação do valor jurídico como princípio da afetividade garante ou fragiliza o direito?
2A NOÇÃO DE FAMÍLIA SOB A ÉGIDE DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988
Sob a vigência do Código Civil de 1916, cuja elaboração se situou no século XIX, o instituto da família foi regulado a partir de uma perspectiva conservadora, patriarcal e restritiva. Não havia igualdade entre cônjuges, de modo que os efeitos pessoais do casamento, única forma de originar uma família, eram desiguais, utilizando o sexo como único fator de diferenciação. Neste sentido, a mulher possuía um rol extenso de deveres, enquanto o homem, que exercia o poder pátrio de forma exclusiva, era titular de direitos desmedidamente garantidos.
Assim, evidencia-se que a família, nos moldes da codificação anterior, tratava- se de uma instituição originada pelo casamento civil, com o homem exercendo o poder
familiar singularmente, munido do dirigismo familiar, enquanto os filhos e o cônjuge se estabeleciam em uma posição de subordinação. Neste sentido, o Código revogado preceituava:
Art. 233: O marido é o chefe da sociedade conjugal. Compete-lhe: I- A representação legal da família
- A administração dos bens comuns e dos particulares da mulher, que ao marido competir administrar em virtude do regime matrimonial adaptado, ou do pacto antenupcial.
- Direito de fixar e mudar o domicílio da família.
- O direito de autorizar a profissão da mulher e a sua residência fora do tecto conjugal.
- Prover à manutenção da família, guardada a disposição do Art. 277. (BRASIL, 1916)
Embasando-se nos princípios da igualdade e da dignidade humana, fundantes do constitucionalismo pós 1988, é chocante presenciar no texto legal o cerceamento e discriminação baseados no sexo de um cidadão. Ambos são cônjuges de uma mesma sociedade conjugal, entretanto, ao homem é entregue o poder de reger a família e a vida de seu cônjuge.
Além do caráter desigual da arquitetura familiar, o conceito de família era restritivo, em que a Lei somente recepcionava uma única forma de originar uma família: mediante casamento. Assim, a visão da família matrimonial como tradicional e legítima, atentava contra as inúmeras modalidades pautadas no afeto e da materialidade essencial da família, que não possuíam tutela jurídica e direitos garantidos. Luciana Faro, acerca do tema, ministrou:
“O Código Civil de 1916, editado numa época com estreita visão da entidade família, limitando-a ao grupo originário do casamento, impedindo sua dissolução, distinguindo seus membros e apondo qualificações desabonadoras às pessoas unidas sem casamento e aos filhos havidos dessa relação, já deu a sua contribuição, era preciso inovar o ordenamento. Assim, reuniu-se grupo de jurista a fim de “preservar, sempre que possível”, a lei do início do século, modificando-a para atender aos novos tempos”. (FARO, 2002)
Atentando-se para a realidade danosa legitimada pelo Código Civil de 1916, a Constituição da República de 1988 instaurou uma nova organização jurídica, pautando- se na autonomia da vontade, liberdade, igualdade, dignidade e afetividade para garantir um novo tratamento a diversos institutos, entre eles, a família. Assim, além da família matrimonial, é reconhecido pelo texto magno explicitamente a união estável e a família monoparental como entidades familiares. A posteriori, a união homoafetiva também foi considerada como entidade familiar, a partir da interpretação do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 4.277 e ADPF 132.
Entretanto, a noção de família vai além do texto constitucional, e sua constituição da família vai além do numerus clausus, como Paulo Luiz Netto Lôbo defende acertadamente:
“Os tipos de entidades familiares explicitamente referidos na Constituição brasileira não encerram numerus clausus. As entidades familiares, assim entendidas as que preencham os requisitos de afetividade, estabilidade e ostensibilidade, estão constitucionalmente protegidas, como tipos próprios, tutelando-se os efeitos jurídicos pelo direito de família e jamais pelo direito das obrigações, cuja incidência degrada sua dignidade e das pessoas que as integram. A Constituição de 1988 suprimiu a cláusula de exclusão, que apenas admitia a família constituída pelo casamento, mantida nas Constituições anteriores, adotando um conceito aberto, abrangente e de inclusão.” (LÔBO, 2004)
Em outras palavras, as entidades familiares e sua respectiva tutela constitucional não se limita ao rol previsto na legislação vigente, mas sim possui caráter expansivo a todas entidades familiares que possuam afetividade, estabilidade e outros requisitos que visam definir objetivamente uma família. Assim, o que se busca não é proteger meramente a família, mas conjuntamente os seus membros, sem discriminação de qual modalidade seja. Nas palavras do autor, “não é a família per se que é constitucionalmente protegida, mas o locus indispensável de realização e desenvolvimento da pessoa humana.”
Em suma, mostra-se incontroverso que as entidades familiares e suas respectivas modalidades são interpretadas de forma expansiva pelo ordenamento, pautando-se pela busca da proteção eficaz deste núcleo, independente do sexo, raça, ou orientação dos membros. O afeto, então, torna-se um elemento para o reconhecimento da família além do numerus clausus, como por exemplo a questão da multiparentalidade, em que se formaliza juridicamente o vínculo familiar de filiação entre dois indivíduos e resguardando todos os direitos e deveres, como se fossem unidos por consanguinidade, sem discriminações.
3O PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE
- Conceito
É controverso a natureza jurídica do afeto como princípio, mas não o é a sua importância. No âmbito do direito de família, a jurisprudência consolidada afirma o afeto como elemento relevante para o reconhecimento de vínculos de parentesco e entidades familiares, como por exemplo a filiação socioafetiva, que concede a uma figura alheia de vínculos consanguíneos a parentalidade sobre um indivíduo, pautado no afeto e na posse do estado de filiação.
De acordo com Maria Berenice Dias o princípio da afetividade seria decorrente da natureza da convivência familiar, o que implicaria dizer que o fato concreto do afeto
caracterizaria as relações familiares. No mesmo caminho, Paulo Lôbo também reconhece:
A família recuperou a função que, por certo, esteve nas suas origens mais remotas: a de grupo unido por desejos e laços afetivos, em comunhão de vida. O princípio jurídico da afetividade faz despontar a igualdade entre irmãos biológicos e adotivos e o respeito a seus direitos fundamentais, além do forte sentimento de solidariedade recíproca, que não pode ser perturbada pelo prevalecimento de interesses patrimoniais. É o salto, à frente, da pessoa humana nas relações familiares.
“O salto, à frente, da pessoa humana nas relações familiares”. O autor de forma didática e constitucionalmente relevante, resumiu a noção da afetividade como princípio, ao ser aplicado como norteador da dignidade humana e igualdade frente ao universo familiar. Assim, ao ser objeto de um processo hermenêutico, a afetividade como princípio se torna uma forma concreta de garantir, por exemplo, a não discriminação entre irmãos, o reconhecimento de uniões estáveis e também da união homoafetiva como entidade familiar, objeto de tutela especial pela Constituição da República.
3.2Relativização do princípio
Sob a visão contemporânea do conceito de família, recepcionada e instaurada pelo constitucionalismo pós 1988, o princípio da afetividade se mostra presente, sendo o afeto considerado por inúmeros autores e doutrinadores como indispensável, sendo o afeto uma espécie de impressão digital da entidade familiar. Não há de questionar o avanço jurídico ao se reconhecer o afeto como elemento ideal em uma relação familiar, de modo que em diversos núcleos, supre o vínculo consanguíneo, garantindo a todos proteção jurídica e tranquilidade frente aos seus direitos e deveres no núcleo familiar.
Com isso em mente, a afetividade representa um elemento ideal, cuja efetiva presença nas entidades familiares sanariam quaisquer conflitos que alcançam os mais altos graus jurisdicionais do país. Assim, por mais relevante que seja o afeto para o reconhecimento de vínculos familiares, a imposição do mesmo como um requisito para a constituição da família é uma utopia que reside na mente dos julgadores, legisladores e doutrinadores. Não é possível que o princípio da afetividade seja um elemento essencial para que se venha a declarar o que é ou não é família. Obviamente é um objeto que deve ser levado em consideração, tendo em vista a tutela constitucional que a família se beneficia, mas não pode ser um princípio absoluto, cuja aplicação se torna inquestionável a qualquer cenário.
Um casal ou par homossexual cuja sociedade conjugal perdura por décadas, de modo que não mais se comunicam, não apreciam a convivência do outro e muito menos respeitam o outro. Tal núcleo, ainda constitui uma entidade familiar? Uma relação entre pai e filho, cujo desgaste, desrespeito e inimizade se torna um elemento natural do cotidiano, ainda constitui uma entidade familiar? Companheiros em uma união estável que se admoestam verbalmente, fisicamente e espiritualmente, ainda constitui uma entidade familiar? A resposta é incontroversa: sim.
Independentemente da presença do afeto na relação familiar interpessoal, haverá família. Em contradição com o exposto, Rodrigo da Cunha Pereira (2011, p. 194)
entende “Sem afeto não se pode dizer que há família. Ou, onde falta o afeto a família é uma desordem, ou mesmo uma desestrutura. É o afeto que conjuga”. De fato, o afeto une pessoas com o mesmo projeto de vida, e em diversos casos concretos, pode ser fundamental para o reconhecimento de vínculos familiares entre indivíduos, em respeito ao princípio da dignidade humana e da própria família em si. Entretanto, como fora supracitado, o afeto não é elemento constitutivo da família, pois poderá haver família independente de laços amorosos e afetivos entre as partes. Mesmo que pais e filhos se enfrentem em um ringue cultural, ideológico e geracional, com graves admoestações no cotidiano do lar, ainda haverá família.
A discussão acerca do afeto como princípio jurídico fundamental para a configuração da entidade familiar ultrapassa as barreiras das discussões doutrinárias, encontrando protagonismo na jurisprudência e decisões jurisdicionais. Na apelação cível 1.0035.17.014998-9/001, cuja relatora fora a desembargadora Alice Birchal do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, é fundamentado que “a afetividade tem valor jurídico para o Direito de Família, porém não tem o status de princípio constitucional ou standard”. Neste sentido, além de não reconhecer o caráter elementar do afeto na família, a relatora ainda questiona o status do afeto como princípio constitucional, o que demonstra ser um importante questionamento, tendo em vista que a doutrina majoritária expõe o afeto como princípio constitucional implícito, evitando aprofundamentos e questionamentos necessários.
Ainda neste mesmo acórdão, a Relatora aprofunda:
“No Direito de Família, com relação à afetividade, essa categorização científica de princípio jurídico não prospera. É que, da mesma forma que o princípio poderia ser invocado por quem foi abandonado afetivamente, ao argumento de que se tem o direito de assim ser assistido, por outro lado, quem não desejasse dar afeto ao outro (amor, me parece mais adequado), ainda que seu descendente, também poderia recorrer ao mesmo princípio, alegando o direito de não querer manter tais relações. O afeto/amor não se enquadra nos conteúdos que possam ser juridicamente exigidos ou impostos. Não é crível que as normas jurídicas pretendam tornar o afeto/amor como um comportamento cogente, até porque é impregnado de intersubjetividade.
(Apelação cível 1.0035.17.014998-9/001 - TJMG)
Embasando-se no exposto, a relatora desconstrói a ideia da afetividade como princípio, pois considera-lo como tal seria consolidar que só há vínculos de parentesco e a instituição da família propriamente dita se houver afeto. E a alegação de afeto para se reconhecer uma entidade familiar pode ser utilizada de forma contrária, para fundamentar, por exemplo, uma ação negatória de paternidade, de modo que não havendo afeto na respectiva relação, o pai poderia se eximir das suas devidas obrigações e deveres frente ao seu descendente, já que consiste em um elemento essencial. Assim, a afetividade como princípio poderia ser a chave para deferimentos de pedidos que atentariam contra a tutela dos menores hipossuficientes e à dignidade da pessoa humana.
Fundamentando a corrente que retira o status de princípio da afetividade, Walsir Edson Júnior preceitua:
Compreendido dessa maneira o afeto, não parece, porém, que ele abranja natureza normativa. Da necessidade de sua verificação, para reconhecimento de realidades familiares não criadas por intermédio do Direito, não decorre a sua exigibilidade intersubjetiva. Assim, soa dúbia a afirmação daqueles que lhe atribuem a qualidade de princípio jurídico. [...] Imputar à afetividade tal predicado induz conferir à mesma característica imperativa. Saliente-se, mais uma vez, que os princípios são norma e, por isso, de obrigatória observância. Nisso se assenta a dúvida. A afetividade é passível de cobrança? Pode-se impor a alguém que tenha e preste afeto a outro(s)?" (ALMEIDA, Renata Barbosa de; RODRIGUES JÚNIOR, Walsir Edson. Direito civil: família. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 42-43).
Deste modo, evidencia-se que o afeto não é um dever legal, mas sim a consequência de relações interpessoais, jamais existindo no ordenamento jurídico a obrigação da presença do afeto no seio familiar para que seja reconhecida como uma devida entidade familiar. Nesse sentido, é cristalino que a aplicação extensiva deste princípio acarreta substanciais consequências e fomenta a insegurança jurídica, pois inúmeras matérias carecem de regulação legislativa, e tendo em vista tais omissões, o órgão jurisdicional passa a atuar de forma ativa, porém de maneira não uniforme. Assim, Tribunais e julgadores se contradizem ao reconhecer absurdos jurídicos que, sem regulamentação devida pelo órgão competente, atentará contra a ordem jurídica provocando instabilidade e sequelas a institutos já consolidados. Dentre os diversos exemplos, pode ser salientado a intitulada união poliafetiva.
O Código Civil de 2002 e a Constituição da República de 1988, em seu bojo de princípios norteadores, consolidam o princípio da monogamia como alicerce da noção de família. Termos como casal, fidelidade recíproca e outros efeitos pessoais do casamento evidenciam o caráter monogâmico da comunhão plena de vida entre indivíduos sob a perspectiva civil. Neste sentido, para que haja família matrimonial, para que haja casamento, é necessário que a união civil seja entre duas pessoas.
Não se trata de um viés preconceituoso ou retrógrado, mas sim um viés legalista, pautado na Constituição da República. Ao imaginar um relacionamento poliafetivo, a pluralidade de sujeitos é elemento constitutivo. É inegável que haja afeto entre as partes, de modo que estão em uma relação amorosa, visando suprir desejos físicos, emocionais, espirituais e existenciais. Entretanto, não são uma entidade familiar. Em 2018, o Conselho Nacional de Justiça reconheceu apenas a existência de casais monogâmicos sob a perspectiva da proteção jurídica, proibindo cartórios de registrarem uniões poliafetivas. Assim, é incontroverso que mesmo com a presença da afetividade na modalidade de relação supracitada, não se instaura uma entidade familiar, o que consolida afetividade como um elemento de relevante valor jurídico, mas não obrigatório para a constituição desta instituição.
A segurança jurídica também é posta em cheque ao se discutir a aplicação extensiva do princípio da afetividade. Como diversos doutrinadores defendem, inclusive Maria Berenice Dias, “o afeto seria o elemento identificador da entidade familiar” (DIAS,2012), o que legitima o reconhecimento das uniões poliafetivas como tal. Entretanto, tal reconhecimento culminaria em incontestáveis inseguranças na perspectiva jurídica, atentando contra a estabilidade de institutos como paternidade,
sucessões, obrigações alimentícias, regime de bens, responsabilidade patrimonial, efeitos pessoais e patrimoniais do casamento, dentre outros. Assim, a aplicação desmedida da afetividade provoca sérios entraves ao direito como um todo, o que deve ser repelido, independente do ramo discutido.
4CONCLUSÃO
Sob a égide do embate doutrinário e jurisprudencial acerca da afetividade como princípio, sua aplicação extensiva frente aos diversos institutos do direito de família e sua natureza jurídica, conclusões podem ser alcançadas. É inegável que o afeto é um relevante valor jurídico, passível de transcender as barreiras naturais e embasar o reconhecimento de vínculos que mudaram a realidade fática de um indivíduo. Imagine uma criança que fora abandonada pelo pai, e independente da presença da mãe, sempre sentiu uma deficiência paterna. Entretanto, sua genitora se casa com um homem que se torna a referência masculina para o garoto, auxiliando em sua educação, proteção, exercendo uma paternidade material. Assim, mediante a filiação socioafetiva, o padrasto poderá sob a perspectiva civil ser considerado o pai desta criança, o que acarreta na tutela efetiva aos interesses do ser de direitos.
Desta forma, mesmo que a afetividade seja apta a metamorfizar uma realidade familiar, reconhecendo devidamente uma entidade familiar, ela não é um princípio absoluto. Não é um elemento essencial, não interfere na existência, validade e eficácia de uma família. Ainda mais, pode ser questionada a sua natureza como princípio, ao enfatizar que apesar do relevante valor jurídico, não possui obrigatória observância, como estabelece professor Walsir Edson Júnior.
Independente do afeto, a família persistirá. “Apesar da afetividade ser elemento fundamental para a manutenção de um núcleo familiar consistente, marcado pela troca de carinho e respeito entre seus integrantes e, desse comportamento surgir o valor jurídico do afeto que cria a família socioafetiva, isso não tem o condão de elevá-la ao status de princípio ou standard, como preferem alguns doutrinadores”. O excerto retirado do acórdão supracitado elucida e sintetiza a natureza efetiva da afetividade, de elemento fundamental, mas não cogente. Assim como a desembargadora Birchal e professor Walsir Júnior, é essencial confrontar a doutrina dominante, porém reconhecendo os efeitos materiais do afeto, que jamais poderão ser objeto de contestações quanto à sua relevância jurídica, pois negar o afeto seria negar a dignidade, e acima de tudo, negar a família.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Renata Barbosa de; RODRIGUES JÚNIOR, Walsir Edson. Direito civil: família. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 42-43
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988
BRASIL. Lei n° 3.071 de 1° de janeiro de 1916 BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito de famílias. 8.ed. Rev.Atual. São Paulo. Livraria do Advogado, 2011.
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito de família. Volume 5. 27ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
FARO, Luciana Martins de. A família no novo Código Civil. Revista da Escola Superior da Magistratura de Sergipe, n° 03. 2002. Disponível em:
<http://bdjur.stj.gov.br/xmlui/bitstream/handle/2011/22418/familia_novo_codigo_civil.pd f?sequence=1>. Acesso em: 10 mar. 2014.
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus. IBDFAM, 2004.
MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça de MINAS GERAIS (7ª Câmara Cível). Recurso Cível, 1.0035.17.014998-9/001 MG. Relatora: Des. Alice Birchal. Julgamento: 2019.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
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