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Efeitos patrimoniais da multiparentalidade: Filiação biológica concomitante à socioafetiva
Amanda de Paula Chaves[1]
Segundo Maria Berenice Dias (2022, p. 241) “o afeto, elemento identificador das entidades familiares, passou a servir de parâmetro também para a definição dos vínculos parentais”. A partir disso, infere-se que os conceitos legais de parentesco e filiação são atualmente interpretados sob a ótica da nova dinâmica social, a qual contempla a filiação socioafetiva.
A posse de estado de filho, que consiste no desfrute afetivo, íntimo e contínuo da condição de filho, não é o único pressuposto para o reconhecimento da filiação socioafetiva, também é imprescindível a demonstração, clara e inequívoca, de três requisitos: nome, tratamento e reputação; os quais materializam a notória relação paterno-filial, independentemente, da existência de vínculo consanguíneo.
Seguindo o viés da dignidade humana e da busca pela felicidade, tanto os vínculos de filiação construídos pela convivência afetiva, quanto aqueles originados da ascendência biológica, podem ser concomitantemente reconhecidos.
Nesta senda, destaca-se o entendimento do Superior Tribunal de Justiça acerca da equivalência do tratamento e dos efeitos jurídicos entre as paternidades biológica e socioafetiva na hipótese de multiparentalidade. À vista disso, proíbe-se qualquer tipo de discriminação e hierarquia entre os ascendentes biológicos e afetivos.
RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE. TRATAMENTO JURÍDICO DIFERENCIADO. PAI BIOLÓGICO. PAI SOCIOAFETIVO. IMPOSSIBILIDADE. RECURSO PROVIDO.
1. O Supremo Tribunal Federal, ao reconhecer, em sede de repercussão geral, a possibilidade da multiparentalidade, fixou a seguinte tese:
"a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios" (RE 898060, Relator: LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 21/09/2016, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-187 DIVULG 23-08-2017 PUBLIC 24-08-2017).
2. A possibilidade de cumulação da paternidade socioafetiva com a biológica contempla especialmente o princípio constitucional da igualdade dos filhos (art. 227, § 6º, da CF). Isso porque conferir "status" diferenciado entre o genitor biológico e o socioafetivo é, por consequência, conceber um tratamento desigual entre os filhos.
3. No caso dos autos, a instância de origem, apesar de reconhecer a multiparentalidade, em razão da ligação afetiva entre enteada e padrasto, determinou que, na certidão de nascimento, constasse o termo "pai socioafetivo", e afastou a possibilidade de efeitos patrimoniais e sucessórios.
3.1. Ao assim decidir, a Corte estadual conferiu à recorrente uma posição filial inferior em relação aos demais descendentes do "genitor socioafetivo", violando o disposto nos arts. 1.596 do CC/2002 e 20 da Lei n. 8.069/1990.
4. Recurso especial provido para reconhecer a equivalência de tratamento e dos efeitos jurídicos entre as paternidades biológica e socioafetiva na hipótese de multiparentalidade.
(REsp n. 1.487.596/MG, relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 28/9/2021, DJe de 1/10/2021.)
A multiparentalidade foi decidida em sede de repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE n. 898.060/SC, no sentido de reconhecer a filiação biológica concomitante à socioafetiva. A tese firmada dispõe que “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios.”
Por conseguinte, a Corregedoria Nacional de Justiça editou o Provimento n. 63 que admitiu o reconhecimento voluntário e a inclusão de um ascendente socioafetivo - seja do lado paterno ou do materno – na certidão de nascimento diretamente no Registro Civil de Pessoas Naturais. Neste caso, não há qualquer distinção de nomenclatura – identificando a origem biológica ou socioafetiva – dos ascendentes registrados na certidão de nascimento. Destaca-se, contudo, que a inclusão de mais de um ascendente socioafetivo depende de autorização judicial.
As consequências da filiação socioafetiva não se limitam apenas ao aspecto registral. Reconhecido o vínculo, em eventual necessidade, o filho pode pedir socorro a quaisquer daqueles que compõem sua ancestralidade multiparental.
Consoante a isso, cabe destacar algumas teses que asseguram direitos patrimoniais aos filhos socioafetivos: Enunciado 341 da IV Jornada de Direito Civil, Enunciado 632 da VIII Jornada de Direito Civil e Enunciados 06 e 33 do IBDFAM.
Enunciado 341 da IV Jornada de Direito Civil - Para os fins do art. 1.696, a relação socioafetiva pode ser elemento gerador de obrigação alimentar.
Enunciado 632 da VIII Jornada de Direito Civil - Nos casos de reconhecimento de multiparentalidade paterna ou materna, o filho terá direito à participação na herança de todos os ascendentes reconhecidos.
Enunciado 06 do IBDFAM - Do reconhecimento jurídico da filiação socioafetiva decorrem todos os direitos e deveres inerentes à autoridade parental.
Enunciado 33 do IBDFAM - O reconhecimento da filiação socioafetiva ou da multiparentalidade gera efeitos jurídicos sucessórios, sendo certo que o filho faz jus às heranças, assim como os genitores, de forma recíproca, bem como dos respectivos ascendentes e parentes, tanto por direito próprio como por representação.
Em atenção às teses mencionadas, depreende-se que a filiação socioafetiva produz efeitos pessoais e patrimoniais que lhes são inerentes, inclusive, comprovada a posse de estado de filho em relação a mais de duas pessoas, todos os ascendentes – consanguíneos e socioafetivos - assumem cumulativamente os deveres de convivência familiar, guarda e obrigação alimentar.
Dessa forma, todos os pais, seja os de ordem biológica ou afetiva, exercerão igualdade de direitos e deveres em relação aos filhos, inclusive, quando do falecimento dos pais, o filho participará da herança de todos eles, sendo-lhe resguardado o direito sucessório em relação à todos os seus ascendentes.
Após a configuração da filiação socioafetiva, não será possível a sua desconstituição por mera vontade das partes, pois o reconhecimento voluntário da paternidade ou maternidade é irrevogável, somente podendo ser desconstituído pela via judicial, nas hipóteses de vício de vontade, fraude ou simulação.
Diante da atual dinamicidade dos arranjos familiares, a declaração de multiparentalidade torna-se imprescindível para garantir os direitos patrimoniais inerentes ao estado de filiação, especialmente, os direitos alimentares e sucessórios dos filhos, por isso, primando pelo melhor interesse das crianças e pela legitimação dos vínculos afetivos, os pais devem adotar todas as medidas cabíveis, estando devidamente cientes e instruídos das consequências da multiparentalidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICA
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 15. ed. rev. ampl. e atual. Salvador: Editora JusPodivm, 2022.
[1]Advogada associada ao Gonçalves, Macedo, Paiva e Rassi Advogados. Pós-graduanda em Direito
de Família e Sucessões pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul. Membro da Comissão de Direito das Famílias da Seccional de Goiânia, Goiás. Membro da Comissão de Direito das Sucessões da Seccional de Goiânia, Goiás.
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