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O Registro das Uniões de Fato
1. Tem sido bastante divulgado pela mídia o recente Provimento da Corregedoria-Geral de Justiça do Rio Grande do Sul (Provimento nº 06/2004) que, acrescentando um parágrafo único ao art. 215 da Consolidação Normativa Notarial e Registral (CNNR), permite o registro de documentos que comprovem o relacionamento afetivo entre duas pessoas, “independente da identidade ou oposição de sexo”.
Trata-se, sem dúvida, de louvável iniciativa daquele órgão do Tribunal de Justiça gaúcho, cuja repercussão nos meios de comunicação bem espelha a relevância social do tema e a oportunidade de sua edição, especialmente diante da resistência, por parte dos titulares de alguns cartórios, quanto ao lançamento de tais assentos. Isso não obstante o amplo e claro permissivo já previamente existente na CNNR (inc. VII do art. 215 e art. 217) e na Lei dos Registros Públicos (LRP – art. 127, inc. VII e § único), o que tornaria dispensável a edição do Provimento 06/2004, que, nesta medida, é até redundante, embora se trate de uma redundância necessária, ante a persistência de alguns em não visualizar o óbvio.
Como é natural diante de tão importante documento, vários questionamentos surgem. Propõe-se, aqui, singelamente, suscitar alguns, dando início ao debate em uma dimensão mais especializada, visto que as abordagens até agora realizadas têm-se dirigido ao público leigo.
2. O primeiro aspecto que chama atenção está na própria ementa do diploma em exame. Ou seja, a circunstância de que ali consta a expressão “UNIÃO ESTÁVEL. PESSOAS DO MESMO SEXO”. Estaria, com isso, significando a admissão de que as relações homossexuais (homoafetivas ou homoeróticas, como preferem alguns ilustres doutrinadores) são aptas a constituir a entidade familiar que desde a Constituição Federal de 1988 (art. 226, § 3º) é conhecida como UNIÃO ESTÁVEL ? Certamente não, até por que esbarraria em insanável inconstitucionalidade, tendo em vista que, ao menos enquanto não houver alteração constitucional, requisito indispensável à caracterização da união estável é a diversidade de sexos (homem e mulher). E, como notório, ato administrativo não revoga regra constitucional (embora se costume afirmar que em nosso país isso, por vezes, ocorre...).
É certo que algumas pioneiras decisões do Tribunal rio-grandense têm (embora por estreita maioria de votos, saliente-se) atribuído a essas relações efeitos assemelhados àqueles que a lei confere às uniões estáveis. Exame mais atento desses arestos, no entanto, mostra que o argumento central está fulcrado na atribuição de um tratamento analógico dessas relações – cuja existência não pode ser ignorada – com a união estável, tendo em vista que o ânimo que as informa está também no afeto entre duas pessoas. E, se observarmos o desenvolvimento histórico das concepções jurídicas que desaguaram no reconhecimento constitucional como família às relações de fato entre homem e mulher, veremos que fenômeno semelhante ocorreu, visto que tudo começou com a admissão de tutela jurídica com base na analogia com a sociedade de fato, sabidamente instituto de natureza obrigacional. E a maior prova disso está na Súmula 380 do STF.
Assim, a explicação para a chamada constante na ementa está no fato de que o Provimento em exame trata não apenas das relações entre pessoas do mesmo sexo, como também de sexos diversos, podendo as últimas, é claro, constituir união estável.
3. O registro dessas uniões (hetero ou homossexuais) terá efeito constitutivo da relação? Trago, neste ponto, à colação o precioso ensinamento de DÉCIO ANTÔNIO ERPEN, reconhecidamente nosso maior especialista em matéria registral, lançado em data anterior ao regramento em exame, e onde, de forma profética, antecipava-o: Não há previsão legal para se registrar o contrato concubinário que evoluiria para a união estável, isso em patamar de estado civil. Se houver pretensão de irreversibilidade ou estabilidade, há o instituto do casamento. Um contrato concubinário teria caráter definidor, com isso prevenindo-se futuros litígios. Todavia, e isso é possível, um contrato, de cunho probatório, com prova pré-constituída, com disposição sobre obrigações e bens. Tal avença que tem tido denominação de concubinato, pacto de bom viver, etc., segundo características de cada região, só encontra espaço registrável no Ofício de Títulos e Documentos, para fins: 1) de conservação; b) probatórios; e c) de autenticação da data. Essa cautela é elogiável e pode facilitar a pretensão a alimentos, ao usufruto vidual e até na conversão em casamento. Ressalvo que para desfrutar do direito a alimentos ou mesmo à sucessão, dispensável qualquer registro. Esse teria cunho declaratório, e não constitutivo (INSTITUTO DA FAMÍLIA E OS REGISTROS PÚBLICOS - in Revista AJURIS 74/134 – GRIFEI).
Com efeito, em se tratando de relações fáticas, a produção de efeitos jurídicos somente pode decorrer da comprovação em juízo dos requisitos postos na lei para sua caracterização. Não há previsão em lei de que se possa constituir por contrato a união estável, passando a produzir seus efeitos a partir daí. Ocorre que, assim como a posse, a união estável é fato do qual decorrem direitos. Em verdade, nada mais é que a posse do estado de casado, sem que casamento exista. O art. 1.723 do Código Civil alinha como necessário para a configuração da união estável que estejam presentes a dualidade de sexos (homem e mulher), a publicidade, continuidade e duração do relacionamento, além do requisito subjetivo da intenção de constituir família. Ora, mesmo que haja um contrato registrado no ofício competente, se não se fizerem presentes no mundo fenomênico esses requisitos, união estável não será. Por isso, é que os efeitos desse registro são exclusivamente (como salientado antes) para fins probatórios, de conservação e de autenticação de data. Essa conclusão mais encontra reforço quando se percebe que o ato em estudo prevê até o registro de relações que estão em vias de se formar (ver referência às “pessoas que pretendam constituir uma união afetiva”), o que deixa transparente a finalidade meramente acautelatória do assento.
4. O registro de que se cuida aqui, por outro lado, não é apto a gerar efeitos contra terceiros. Não é essa sua finalidade. A atribuição de tais efeitos somente decorre do registro dos documentos relacionados no art. 219 da CNNR, que reproduz o art. 129 da Lei dos Registros Públicos (LRP- Lei 6.015/73). O art. 215 da CNNR, ao qual foi introduzido o parágrafo único, retrata, a sua vez, o art. 127 da LRP, o qual não prevê a geração de efeitos diante de terceiros, destinando-se, exclusivamente, reitero, a fins probatórios, de conservação e autenticação de data.
A impossibilidade de obtenção de tais efeitos, frise-se, é de especial importância quando se está diante de uma união estável, em que os companheiros escolhem regime de bens diverso da comunhão parcial (o que é amplamente permitido pelo art. 1.725 do Código Civil). Essa opção, não tendo efeitos perante terceiros, cria situações de embaraço, na hipótese, por exemplo, em que o credor de um dos companheiros peça a penhora de bens do outro, sob o argumento de que entre eles, havendo união estável, há comunicação dos bens adquiridos onerosamente em sua constância, os quais são comuns para todos os fins. Essa, por sinal, uma das maiores desvantagens da união estável em relação ao casamento, no qual, uma vez registrado no ofício imobiliário (art. 1.657 do Código Civil), o pacto antenupcial produzirá efeitos perante terceiros.
5. É certo que o novo regramento, por sua natureza, não tem o condão de criar direitos. Estes somente serão, ou não, admitidos pela jurisprudência, no exame de cada situação. No caso, por exemplo, de direitos hereditários, não há contemplação em lei de sua existência entre pares homossexuais. Somente no âmbito de uma união estável estão previstos (art. 1.790 do Código Civil), não cabendo, em matéria de direito sucessório, interpretação extensiva. Assim, caso desejem os parceiros de mesmo sexo ampararem-se mutuamente no caso de falecimento de um ou outro, somente poderão fazê-lo mediante testamento.
6. Enfim, o Provimento 06/2004-CGJ constitui, sem dúvida, importantíssimo diploma para conferir maior segurança às relações jurídicas que se formam como decorrência do afeto entre duas pessoas, independentemente de sua orientação sexual. Relevante não apenas para as relações entre pessoas de mesmo sexo, como também para os heterossexuais, no âmbito de uma união estável.
* Luiz Felipe Brasil Santos é Desembargador do TJRS, Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família-Seção RS (IBDFAM-RS), Professor da Escola da Magistratura da AJURIS.
Fonte: Arpen Brasil
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