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Em algum lugar do futuro
1. INTRODUÇÃO
Foi com alegria e desassossego que recebi o honroso convite do CEJUR (Centro de Estudos Jurídicos) do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná para pronunciar reflexão na abertura do I Encontro de Direito e Cultura Latino-Americanos.
Agravaram minha apreensão a inegável importância do evento no Brasil do presente e a composição de seus promotores que reúnem, em si, história de práticas e de densa formulação teórica coerente e combativa, a exemplo da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (RENAP), do Instituto Latino-americano de Serviços Legais Alternativos (ILSA), entre outros tantos que conceberam e formularam o evento que se inicia.
Para tencionar dar a esse ofício uma resposta minimamente adequada à equipe do CEJUR e a todos os presentes, que saúdo sob contentamento de aqui ver e rever amigos e companheiros, proponho uma especulação que assume, de saída, dois marcos referenciais. De um lado, emerge da comunhão possível que rejeita o avesso do direito na cultura jurídica marcada pela exclusão, e de outra parte, assume definida dimensão espacio-temporal ao tratar do contexto contemporâneo no campo do reconhecimento dos direitos coletivos, e problematiza, de frente para os desafios brasileiros e latino-americanos, os instrumentos jurídicos e as suas respectivas possibilidades.
Além disso, se arrisca a questionar a interlocução efetiva entre conhecimento e prática na superação dos códigos histórico-culturais que deram abrigo ao patrimonialismo e ao individualismo no direito moderno. Principia, assim, pela força dos fatos que nos rodeiam e migra para o pretenso vigor dos discursos que se propõem como arautos do desenlace.
E o faço por escrito, em consideração ao convite que recebi, para dizer, de saída, que vivemos um tempo presente que recebe todos os títulos de mestre da retórica pedestre e banalizadora da complexidade. Esse tempo dessa retórica banal passa do intervalo entre a carnificina e a euforia num só golpe conceitual, criando armadilhas para dissimular e humilhar. Define a barbárie expressando medo e na truculência conceitua a esperança seqüestrando utopias.
É sobre essa regra do jogo de poder que irá tratar esta reflexão singela sobre o estado atual da arte na sociedade e no Direito contemporâneo, à luz da crise que assola o mobiliário cientifico disponível.
O percurso desses pensamentos vai abominar a volta ao retórico vazio e ornamental, do retorno ao sentimentalismo argumentativo, e da fuga paranóica para a nova razão moderna. Propõe-se como esboço de um libelo contra a domesticação das dissonâncias num tempo de tantas informações e tão pouco conhecimento.
Toma para si o paradoxal horizonte de apontar como uma das possíveis saídas desse impasse de localismos, regionalismos e da mundialização, o elogio às estruturas paradigmáticas do direito dos povos que podem repensar, para superação dessa longo presente, o porvir a partir da práxis.
2. O CAMPO DA CONSTRUÇÃO SOCIAL DA CIDADANIA.
Dois cenários podem ser apreendidos para servir de ponte na edificação desse caminho proposto.
De um lado, captam-se indícios da explicitação discursiva das seqüelas decorrentes da tragédia do terror.
As mãos governantes que se juntam para condenar a violência e fazer preces são aquelas que, sob as vestes de eficaz e sedutora oratória, associam à evocação da fé a militarização do planeta, o despeito à diversidade, e a agressão aos direitos humanos e fundamentais; vozes e mãos balançam seus axiomas nas velhas dicotomias: luz e sombra branca e preta, barbárie e civilização. Aquelas similares a parentes colaterais apreendidas pela má formação jurídica: público e privado, individual e coletivo, vontade e cometimento, e assim por diante.
As pessoas e coisas, todas reificadas ao máximo das possibilidades, passam a fazer parte de uma campanha: o ataque aos ataques, a razão estratégica da política internacional, a separação do bem e do mal. Palavras e imagens retiram o sujeito do centro dessa história que é encarada por heranças e legados. Respostas retumbantes ocupam o vazio do abraço e se propõem como impacto estar no olhar de quem faz e desfaz furacões.
Vida e morte se recolocam nas discussões do poder, quer para dissipar sombras geradas, quer para iluminar o deleite mesmo no horror.
Em sete de julho de dois mil e cinco chegou-se a esse ponto: a similitude do fio condutor que há entre o conceito pop, a cúpula internacional do G8 e os rostos sem cor apanhados pela fotografia que espelhou o fim de um dia em plena manhã de Londres: eis aí a redução ao modo de ver acima do ser em si mesmo, a paz reclamada com entonações de um hino de guerra, o orgulho de proclamar discursos de unidade nacional.
Eis aí, enfim, um primeiro cenário no qual foram postas à prova as forças dos atores sociais e políticos, e o que resistiu foi apenas o discurso como testemunha, a atrocidade tomada pelo palanque de campanha equilibrando-se entre emoções e evocações à pátria. O baixo medievo se reinstala em pleno século XXI.
De outra parte, um segundo palco serve à ilustração necessária. Na externalidade das questões européias centrais, há a incompleta metáfora de Pasárgada[3] no campo e nas cidades de países que, a exemplo do Brasil, se notabilizam pelo fosso abissal entre as proclamações discursivas da modernidade e a realização concreta da cidadania. O horror aqui está na exclusão social e econômica; sabe-se, nada obstante, que a ausência de direitos, numa sociedade de classes, é também um espaço do discurso jurídico dominante.
Vive-se aqui de faltas constituídas para serem lacunas. As premissas da autonomia do racionalismo e da universalidade não passaram pelas portas do código civil francês de 1804 nem da codificação civil brasileira. Sem embargo, produziu-se um país de discursos jurídicos de costas para a realidade social e histórica. Um exemplo gritante de tal realidade é a construção jurídica da estrutura fundiária brasileira, permeada por um discurso que escamoteia a realidade[4].
Há mais: tal alienação se projeta para a atividade interpretativa, servindo às claras para tanto o método lógico-sistemático-dedutivo, relegando as características próprias da cultura, das raças e das religiões. Ainda pior que essa racionalidade abstrata formal, é o recente passado que, à luz do suposto fim da história, lança a compreensão dos fatos individuais e coletivos na abissal interpretação não condicionada a nada, ao abismo da revelação nas asas dos "Príncipes do Direito" (para usar a expressão de Dworkin). Domiciliaram aí uma ruptura paradigmática que conduz ao abismo das idéias e das coisas que não guardam o menor sentido. Preencheu-se o real com todo o vazio possível de sentido.
Para dar conta desse oco expõe-se um verniz de solidariedade social como resposta teórica à ausência de mínimas condições de existência, ao consumeirismo massificado, à entrega do sujeito nos braços da tecnologia ou do "sistema perito", na expressão de Giddens.
Entre a perplexidade freudiana do sub-consciente e a opressão definida em Marx, produziu-se esse "mal-estar", solvido, em boa parte das famílias jurídicas romano-germânicas ocidentais, por proclamações discursivas constituintes de sonhos e quimeras. Fez-se do discurso um fim em si mesmo.
A quebra desse paradigma discursivo reclama mais que respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, mais que a meta-efetividade das promessas constitucionais incumpridas, mais que se afastar da meramente sistêmica noção de sistema e ali injetar doses de ingredientes tópico-indutivos, mais que reconhecer a complexidade e menos que provar o reencantamento do mundo.
Refiro-me, por exemplo, ao direito de morar e ao direito à terra. Menciono, como espaço de construção social da cidadania, "formas novas de experimentar a vivência da própria exclusão", como escreveu José Geraldo de Souza Junior sobre "o direito achado na rua". Sustenta-se aí, com razão, o caminho de aprofundar contradições nos conflitos interclassistas para pôr em debate as contradições estruturais profundas. Impende, pois, confrontar para desenvolver estratégias[5].
3. O TEMPO DA PAISAGEM PRESENTE
Isso dito, tratemos agora do tempo da paisagem presente.
Não basta, afirmarmos hoje, a alegoria discursiva diante da tragédia. Cumpre experimentar. Impende ao direito ir além da estagnação imobilizante da permanência do presente. Cumpre superar essa "presentificação" das coisas representada pelo discurso associal, virtual e sem densidade concreta.
O Direito "luta contra a erosão da história", escreveu Michel Seres[6], por isso ele teima ser racional e estável. E dessa insistência que o presente se faz permanente na simbologia simétrica do espaço, na balança pendular, a qual evidencia "o retorno regular do tempo".
Essa rigidez já havia sido evidenciada na superação dos eventos temporais, por Milton Santos: "se considerarmos o mundo como um conjunto de possibilidades, o evento é um veículo de uma ou algumas dessas possibilidades existentes no mundo", e assim "os eventos dissolvem as coisas, eles dissolvem as identidades, propondo-nos outras, mostrando que não são fixas"[7].
Idéias, ações humanas, saberes, eis aí um tripé que pode propor dissoluções e reconstruções para escapar da armadilha totalizante da permanência do presente. Um futuro pode se propor.
Não se trata de mirar, por exemplo, a biodiversidade à luz dos interesses dos Estados, ou a religião dos indivíduos sob um novo Direito Privado. Cuida-se de caminho que não pode, no Direito, eleger soluções intra-sistemáticas, nem deixar de reconhecer que o campo exógeno do não-direito é parte integrante da gênese da instância jurídica. Não falamos de um retorno ao mundo particularizado, fracionado em esferas, submetido ao estatuto jurídico de cada pessoa e seus títulos e origens. Não é dessa pluralidade de fontes que se trata, situando-se nela novos senhores e novos servos, outros teóricos e antigas estrias.
Esse corpo de futuro também não se ancora nos visualismos da internet ou da telemática, nem se realça nos fantasmas das novas tribos do individualismo, postadas légua amazônica de distância do conceito republicano de povo.
Trata-se, isso sim, do reconhecimento das identidades múltiplas, da arbitrariedade econômica na exclusão social, da terra como reserva de valor, do cárcere dos eufemismos, do espectro dos outros, e das individualidades furtadas pela tecnologia.
É de uma imprescindível superação do nominalismo que se trata, ultrapassando a versão pedestre da filosofia de linguagem, pois o mundo não vem todo pronto num CD. O futuro não pode ser ou estar no refinamento cibernético do Cadastro dos Emitentes de Cheques sem Fundo nem no neoliberalismo que defraudou o risco, a culpa e o banco da ética.
Não se quer essa coisa que tornou a pessoa um "sujeito 24 horas", cidadão am/pm, surfando entre saques, deleites e horrores. Impende refutar essa razão pós-moderna que deposita discursos em caixas-automáticos e cobra altas taxas por serviços de imputação.
A insegurança da paz teórica e o medo dos confrontos foram apropriados por comerciais de cerveja nos horários da televisão. A esperança moderna morreu assaltada nesse olhar da telinha. O passado tornou-se uma duplicata sem protesto e o presente foi seqüestrado pelo discurso que nada e não muda.
Dessa velha denúncia capta-se algum desafio. As necessidades essenciais do ser coletivo se propõem acima de um discurso sem lenço nem documento. O tempo presente reclama, por isso, libertar-se do aparato retórico de ornato.
4. CONCLUSÃO
Para ultimar, dessa velha denúncia capta-se algum desafio. As necessidades essenciais do ser coletivo se propõem acima de um discurso sem lenço nem documento. O tempo presente reclama, por isso, libertar-se do aparato retórico de ornato, e aqui rumamos para alguma conclusão.
Permitam a licença de lembrar que viu o poeta que "do momento imóvel fez-se o drama" e que "fez-se do amigo próximo o distante"[8], pois o paradoxo é esse mesmo que a poesia apontou: "como é que pode, diga-me com espanto / a luz e a treva se quererem tanto..."[9].
Se andarmos onde há espaço, bem disse já em 1950 Vinícius que o "tempo é quando".
O suposto projeto civilizatório há de ser repensado radicalmente, sob pena de engendrar-se tão-só uma nova restrição burguesa que faça do pranto um novo discurso e da existência apenas uma certidão de nascimento de um novo indivíduo junto a um conhecido ofício de registro civil. A complexidade da vida do ser coletivo impõe rejeitar uma hermenêutica meramente discursiva e plebiscitária.
É possível, sim, sob a centralidade no coletivo e suas necessidades, na diferença, liberdade real e suas possibilidades, apontar para o outro lado dessa saturação representada por um tempo cheio de vazios e um espaço pleno de propriedade individuais que tomam coisas, saberes e a ordem como reserva de valor.
Creio em algum lugar do futuro onde habita a justiça que não se mede por clientela e números, e que não promove cursos jurídicos para apenas decorar códigos. Dessa paragem em um dia veremos a plena fala dos que hoje têm pouca voz mas já expressam, no campo e nas cidades, mais que o silêncio sonoro e fragoroso daqueles que, acima do discurso, escrevem no chão íngreme da terra a esperança e não sucumbem à mesmice do presente quando dizem não, não é disso que se trata, pois a vida é muito que isso que aí está.
Esse desafio se põe no principiar e não no concluir, a fim de que o futuro não seja apenas um lugar do passado.
[1] Texto preparado para o I Encontro de Direito e Cultura Latino-Americanos: Diversidade, Identidade e Emancipação. Curitiba, Universidade Federal do Paraná, CEJUR, de 02 a 05 de agosto de 2005.
[2] Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná.
[3] A referência à Pasárgada faz simultaneamente duas homenagens: ao poeta brasileiro Manuel Bandeira e bem assim ao Professor Boaventura de Souza Santos que a tomou em sua tese de doutoramento defendida em Yale, no ano de 1973, alavancando sua notável reflexão conhecida por todos sobre um lócus urbano de exclusão social no Brasil.
[4] Uma longa nota histórica de rodapé impenderia registrar a questão da formação da arquitetura da propriedade rural no Brasil.
[5] Um campo especial deve, aqui, ser dedicado ao pluralismo jurídico e à obra do professor Antônio Carlos Wolkmer.
[6] SERRES, Michel. Filosofia mestiça – le tiers instruit. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
[7] SANTOS, Milton. A Natureza do espaço; técnica e tempo; razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1996.
[8] Nova Antologia poética. Vinícius de Moraes. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 93, Soneto da Separação.
[9] Ibidem, p. 234, Soneto de Luz e Treva.
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