Artigos
A problemática da prescrição aquisitiva no âmbito da usucapião familiar
The problem of acquisitive prescription in the scope of family usucapião
MORAIS, Mateus Rodrigues.[1]
Resumo
Esta investigação analisa e descreve o conceito de prescrição aquisitiva e da usucapião familiar relacionada à norma que impede a prescrição enquanto perdurar a sociedade conjugal. Analisa, ainda, se o abandono do lar, por si só, extingue a sociedade conjugal a partir da interpretação teleológica. A pesquisa deu-se por meio de revisão bibliográfica. Foi analisado os entendimentos da literatura técnica do direito civil e processual civil contemporâneo para construção da conclusão. O estudo evidenciou que a prescrição aquisitiva pode não ser um conceito adequado para tratar do prazo de aquisição da propriedade pela usucapião e que, no espectro da interpretação teleológica, o prazo de dois anos da usucapião familiar se inicia um ano após o abandono do lar.
Palavras-chave: Prescrição Aquisitiva; Usucapião Familiar;
Abstract
This investigation analyzes and describes the concept of acquisitive prescription and family adverse possession related to the norm that prevents prescription while the conjugal society lasts. It also analyzes whether the abandonment of the home, by itself, extinguishes the conjugal society from the teleological interpretation. The research was carried out through a literature review. The understandings of the technical literature of contemporary civil and procedural law were analyzed for the construction of the conclusion. The study showed that the acquisitive prescription may not be an adequate concept to deal with the period of acquisition of property by adverse possession and that, in the spectrum of teleological interpretation, the two-year period of family adverse possession begins one year after leaving the home.
Key-words: acquisitive prescription; family usucapião;
- CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A usucapião familiar possui um prazo aquisitivo que se inicia com o abandono do lar e, como em todas as modalidades de usucapião, é comumente denominado de “prescrição aquisitiva” (PEREIRA, 2017).
Sendo prescrição, tem como causa impeditiva a vigência da sociedade conjugal, conforme é descrito no art. 197 do Código Civil (BRASIL, 2002).
Nesse âmbito, à princípio, pode haver certa problemática, uma vez que o abandono do lar, por si só, pode não ter o efeito de extinguir a sociedade conjugal. Isso porque, de acordo com o próprio código civil em art. 1.571, a sociedade conjugal só se extingue pelo divórcio, separação judicial, morte, anulação ou nulidade (BRASIL, 2002).
Parece, então, haver um obstáculo para usucapião familiar: se o abandono do lar não extingue a sociedade conjugal, o prazo de prescrição aquisitiva para adquirir a propriedade pela posse nunca se iniciaria.
A partir dessas questões, esta pesquisa tem como objetivo analisar e descrever a usucapião familiar, o conceito de abandono do lar e o conceito de prescrição aquisitiva. Além de analisar também a norma que rege a extinção da sociedade conjugal por meio da interpretação teleológica.
Utilizou-se como metodologia, para tanto, a análise bibliográfica, elencando o que se entende como usucapião familiar e abandono do lar. Após tentou-se destrinchar o conceito de prescrição aquisitiva e, por fim, a análise das normas do código civil pela interpretação teleológica.
Este artigo é estruturado em seis partes: estas considerações iniciais em que foi apresentado o objetivo e metodologia, seguida do referencial teórico em que é abordado o que se entende como usucapião familiar. Após, analisou-se, de forma estruturada, o conceito de prescrição aquisitiva e sua natureza e, em sequência, foi analisada, pela interpretação teleológica, as normas que tratam sobre a extinção da sociedade conjugal. Por fim, foi apresentada as considerações finais seguida das referências que contribuíram para esta investigação.
- Usucapião Familiar e Abandono do Lar
Em 1988, a Constituição da República Federativa do Brasil instituiu, em seu art. 183, uma modalidade de usucapião urbana (BRASIL, 1988) que, em 2002, foi expressa também no art. 1.240 do atual Código Civil:
Art. 1.240. Aquele que possuir, como sua, área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
Essa usucapião especial tem como finalidade o desenvolvimento da política urbana das cidades e do bem-estar social, a partir da ideia de direito social de moradia (TEPENDINO, 2021).
Com inspirações nessa modalidade de usucapião, a Lei nº. 12.424/11 que trata sobre o programa “Minha Casa, Minha Vida” acrescentou ao código civil uma modalidade de usucapião com os mesmos requisitos da usucapião especial urbana, mas com a diminuição do prazo de posse para dois anos (AZEVEDO, 2019).
Essa modalidade mais específica é de tal maneira oriunda da usucapião especial urbana que PEREIRA (2017) a denomina de “usucapião especialíssima” e, segundo o autor, ela visa tutelar os interesses existenciais e a segurança jurídica de todas as pessoas que integram o núcleo familiar.
Isto é, enquanto a usucapião especial visa tutelar o direito social da moradia (TEPENDINO, 2021) a usucapião especialíssima ou usucapião familiar via tutelar o direito do núcleo familiar em ter mantida a propriedade (PEREIRA, 2017).
Nessa premissa, a referida Lei nº 12.424/11 incluiu a modalidade no art. 1.240-A no código civil de 2002:
Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. (Incluído pela Lei nº 12.424, de 2011) (BRASIL, 2002)
Além do menor tempo de posse, podem ser elencadas mais duas diferenças da usucapião familiar para a usucapião especial urbana, quais sejam: a copropriedade do imóvel entre os cônjuges e o abandono do lar de forma voluntária e injustificada. (GOLÇALVES, 2019).
Esse abandono familiar que trata a lei é conceituado pelo enunciado 595 da VII Jornada do Direito Civil do Conselho de Justiça Federal como “abandono voluntário da posse do imóvel somado à ausência da tutela da família, não importando em averiguação da culpa pelo fim do casamento ou união estável'' (CJF, 2015).
Parece, entretanto, que o abandono do lar é um conceito mais próximos aos direitos patrimoniais, não sendo suficiente somente a ausência de vínculo entre os cônjuges, tendo que existir também o abandono de uma propriedade, como pode ser observado na própria justificativa do referido enunciado:
Afasta-se, com a redação adotada, a investigação da culpa na dissolução do vínculo convivencial e marital, objetivo este também buscado pelo legislador constitucional com a Emenda Constitucional 66/10. Não há razão para introduzir na usucapião um requisito que diz respeito ao direito de família, sendo certo que a doutrina especializada no direito de família também tem procurado afastar tal análise. (CJF, 2015)
Esse entendimento conversa muito bem com a ideia de copropriedade do imóvel pelos cônjuges, uma vez que essa modalidade de usucapião não se trata de uma sanção para aquele que teria culpa em romper com o vínculo matrimonial/sociedade conjugal (PEREIRA 2017).
Por isso que o “abandono do lar” deve ser observado por um ponto de vista também patrimonial – se trata de cônjuges que não têm mais a vida em comum como também se trata de um condômino que excedeu a posse do imóvel com ânimo de único dono. Desse modo, não haveria abandono de lar se o outro cônjuge continuar praticando atos de posse indireta como pagamento de cotas e tributos, por exemplo (TEPENDINO, 2021).
Nesse sentido, a usucapião familiar pode ser tida como uma usucapião especial urbana com menor prazo que visa tutelar direito do núcleo familiar na ocorrência de abandono da vida em comum e do patrimônio em copropriedade por um dos cônjuges.
- A problemática Conceitual de Prescrição Aquisitiva
A usucapião familiar possui um prazo aquisitivo que se inicia com o abandono do lar e, como em todas as modalidades de usucapião, é comumente denominado de “prescrição aquisitiva” (PEREIRA, 2017).
De todo modo, é necessário analisar a natureza da prescrição para entender se o prazo aquisitivo das usucapiões realmente seria prescricional.
Pelo conceito clássico de Beviláqua (1980) a prescrição é a perda de uma ação atribuída a um direito. O que é seguido por autores como Venosa (2018) que, partindo dessa premissa, afirmam que a prescrição atinge diretamente a ação e, por via de consequência, o direito.
Em ideia semelhante, porém um pouco mais classificativa, Ulhoa Coelho apresenta a ideia de que a prescrição, em sentido largo, compreende a decadência – que atinge o direito – mas em sentido estrito não. Por isso, segundo o autor, ao falar sobre prescrição em seu livro, somente refere-se à prescrição em sentido estrito. Ao mesmo tempo, afirma também que, na legislação brasileira, a prescrição diz respeito à pretensão do direito violado (COELHO, 2020).
Por isso, de maneiro ou outra, parece que a literatura técnica especializada entende, por bem, pela distinção ou afastamento do conceito de prescrição em relação ao âmbito do direito material: seja ao afirmar que a prescrição atinge a ação e, via de consequência, o direito (BEVILÁQUA, 1980), seja ao afirmar que a prescrição atinge à pretensão do direito violado (COELHO, 2020).
No entanto, pode ser que o conceito de Beviláqua não adeque à ação no sentido processual atual. Isso porque a literatura processualista conceitua a ação, no ponto de vista material ou processual, como direito subjetivo da parte (THEODORO JR., 2019).
Por isso mesmo é que autores como Coelho (2020), estabelecem que a prescrição realmente não atinge o direito, mas sim a pretensão.
Esse conceito parece mesmo ser mais adequado ao direito processual civil contemporâneo, como afirma Gagliano, seguindo a linha de pensamento de Reale:
Comentando esse dispositivo, MIGUEL REALE, com sabedoria, pontifica: “Ainda a propósito da prescrição, há problema terminológico digno de especial ressalte. Trata-se de saber se prescreve a ação ou a pretensão. Após amadurecidos estudos, preferiu-se a segunda solução, por ser considerada a mais condizente com o Direito Processual contemporâneo, que de há muito superou a teoria da ação como simples projeção de direitos subjetivos” (GAGLIANO, 2019. Pág. 629).
Essa diferenciação de que a prescrição atinge tão somente a pretensão, foi adotada no direito brasileiro por influência do direito germânico e está expressa no código civil de 2002 (GONSALVES, 2018).
Parece, portanto, ser mais adequado afirmar que, violado o direito, nasce para o titular a pretensão que só se extingue com a prescrição, assim como afirma o código civil em seu art. 189 (BRASIL, 2002).
Alguns autores, porém, estabelecem que a própria pretensão é um direito – que está entre o direito material e o direito da ação (COELHO, 2020), isto é, de todo modo, a prescrição não atingiria o direito material, mas apenas o que está entre o direito material e o direito de ação, ou seja, a pretensão.
Essa ideia de pretensão parece ser congruente com a literatura processualista que, nas palavras de Theodoro Jr. (2019), é tida como um poder de exigir vinculado à ação, podendo “existir direito sem ação e, consequentemente, sem pretensão (v.g., direito real de propriedade cujo exercício nunca sofreu ameaça ou lesão por parte de terceiro)” (Pág. 209).
Essa visão também é seguida por PICAZO (1964) ao definir a pretensão como derecho substantivo que se distingue da ação e do derecho subjetivo:
Anspruch [pretensão] es – se dice – un derecho dirigido a exigir o a reclamar de otra persona una conducta positiva o negativa, es decir, un hacer o un omitir. La ‘Anspruch’ – que pertenece al mundo del derecho substantivo – se distingue perfeitamente de la ‘actio’, entendida como ‘ius persequendi in iudicio’, que se corresponderia en la terminología alemana con la ‘Klage’ o, acaso mejor, con el ‘Klagerecht’. Pero la, ‘Anspruch’ se distingue también del derecho subjetivo considerado como la unidad del poder jurídico conferido a la persona(...) (PICAZO, 1964. Pág. 35).
À parte isso, até onde pode-se avaliar, a literatura técnica civilista como um todo classifica a prescrição junto à decadência, sendo esta a perda de um direito e segue a premissa de que, no silêncio da lei sobre a natureza do prazo, este sempre será decadencial e não prescritivo (TATURCE, 2021).
Assim sendo, pode ser equivocado ou inadequado tratar os prazos da usucapião como prescrição aquisitiva, já que esse conceito não possui nada a ver com pretensão, mas tão somente com aquisição do direito da propriedade (LÔBO, 2017).
De fato, o termo "prescrição aquisitiva” encontra-se firmado no espectro das usucapiões como o decurso do tempo em que alguém exercita posse pacífica e contínua do bem, ou seja, trata não só sobre decurso do tempo como também sobre posse (DINIZ, 2013).
Nesse sentido, a única semelhança dos conceitos de prescrição com os conceitos de prescrição aquisitiva é o decurso do tempo (LOBO, 2017).
A usucapião é a aquisição do direito da propriedade com o tempo (AZEVEDO, 2019). Logo, não se trata do direito de ingressar com a ação pretendendo a propriedade, na medida em que, preenchidos os requisitos, o possuidor já terá a propriedade e pretenderá em juízo apenas a declaração da propriedade que, em tese, já tem:
Em verdade, a única transferência se opera de uma situação de fato para uma situação de direito, o que, por via de consequência, gera a modificação da titularidade do direito.
Seja como for, a sentença na ação de usucapião é meramente declaratória, e não constitutiva de direito. (SCAVONI JR., 2015. Pág. 1081/1082).
Portanto, observa-se que, falar em “prescrição aquisitiva” na usucapião vai na contramão tanto da ideia de que a prescrição não atinge o direito diretamente, mas somente a pretensão (BRASIL, 2002), quanto daquela que afirma que a prescrição abrange apenas a ação (BEVILAQUA, 1985).
Partindo dessa ideia, como já dito, o que causa influência nos direitos subjetivos em geral não é a prescrição, mas sim a decadência (COELHO, 2020). Assim sendo, pela ideia de que os prazos sempre são decadenciais se a lei não falar o contrário, (TATURCE, 2017) o direito à propriedade pela usucapião, seria mais – com todas as escusas para se usar um termo ilustrativo e exemplificativo – uma “decadência aquisitiva” ou “cadência aquisitiva” por se estar alcançando o direito e não o perdendo.
É claro que tal premissa necessitaria, até mesmo, de uma pesquisa própria e mais extensa sobre o tema; contudo, pode-se afirmar, pela descrição de Lôbo (2017), que o termo prescrição aquisitiva é vicioso, porque o decurso de tempo para se obter a usucapião não se trata de prescrição.
- Interpretação Teleológica do Art. 1.571, II do Código Civil Aplicada À Problemática da Prescrição Aquisitiva na Usucapião Familiar
Há no direito brasileiro diversas técnicas de interpretação da norma. Dentre elas, a teleologia assume um papel de grandeza (NADER, 2014).
O termo teleologia vem de “telos” que, em grego, significa “finalidade”, etimologia congruente com o conceito desse método de interpretação que consiste na busca do fim da norma, ou seja, do seu objetivo (MASCARO, 2019).
Em sua obra clássica de introdução ao estudo do direito, Nader (2014) afirma que para aplicação da teleologia é preciso observar os interesses sociais que a lei visou proteger. Essa ideia é positivada na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro - LINDB que, segundo Nunes (2017), expressou a teleologia como princípio obrigatório de interpretação da norma.
De fato, em seu art. 5º, a LINDB dispõe que: “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum” (BRASIL, 1942).
Além disso, é importante entender também que que a finalidade é extraída não só de uma norma em si, mas de uma séria de normas que devem ser, o quanto possível, analisadas como um conjunto e não isoladas (MAXIMILIANO, 2011).
Diante de tudo isso, tem-se que a teleologia assume papel crucial no contexto desta pesquisa, cuja problemática consubstancia na relação da usucapião familiar com a prescrição aquisitiva – na medida em que, em tese, a prescrição aquisitiva não correrá enquanto perdurar a sociedade conjugal.
De fato, como já dito nos capítulos anteriores, a finalidade da usucapião familiar seria proteger a segurança jurídica do núcleo familiar, em razão do abandono do lar (PEREIRA, 2017). O que deve ser levado em conta, já que, para a interpretação do dispositivo da usucapião familiar, é preciso buscar o objetivo prático da norma, como afirma Venosa:
O elemento teleológico ou racional busca o sentido maior da norma, o seu alcance, sua finalidade, seu objetivo prático dentro do ordenamento e para a sociedade. Constitui a razão de ser da lei, a ratio legis. Se uma lei, por exemplo, foi editada com o sentido de diminuir ou evitar a inflação monetária, para restringir o consumo, nesse sentido deve ser interpretada. Busca-se o sentido social para o qual a lei foi editada. (VENOSA, 2019. Pág. 262)
O Superior Tribunal de Justiça - STJ, no julgamento do Recurso Especial de nº. 1.693.732/MG, já proferiu entendimento teleológico acerca da separação de fato, entendendo que esta extingue a sociedade conjugal e permite a fluência do prazo de prescrição – desde que respeitado um lapso temporal de um ano entre a separação e o início da contagem (STJ, 2020).
Nesse mesmo sentido, entendeu o Recurso Especial nº. 1.660.947/TO:
Tanto a separação judicial (negócio jurídico), como a separação de fato (fato jurídico), comprovadas por prazo razoável, produzem o efeito de pôr termo aos deveres de coabitação, de fidelidade recíproca e ao regime matrimonial de bens (elementos objetivos), e revelam a vontade de dar por encerrada a sociedade conjugal (elemento subjetivo). (STJ, 2019)
Nota-se que esses julgados, atentos à finalidade da norma relativa à separação judicial, entende que a separação de fato segue uma idêntica premissa.
Toda essa interpretação não é dada aos artigos da usucapião familiar, mas sim ao artigo que trata da separação judicial e da ausência de prescrição na vigência da sociedade conjugal.
Como já dito neste estudo, a sociedade conjugal refere-se aos deveres de fidelidade recíproca, assistência mútua e comunhão nas decisões da vida (DIAS, 2015). Assim como disciplina CARNACHIONNI (2017. Pág. 470) a sociedade conjugal “significa convivência, companheirismo, vida em comum”.
De outro modo, o “abandono do lar” que trata a norma da usucapião familiar, é mais concernente ao imóvel do que ao direito familiar em si, porque o lar só é considerado abandonado quando aquele que o abandonou deixa de praticar os atos inerentes à posse (TEPENDINO, 2021).
Todavia, mais do que isso, essa inexistência de posse deve ser somada à ausência da tutela de família, independentemente de averiguação de culpa (CJF, 2015).
Desta feita, parece ser impossível abandonar o lar e continuar praticando atos de “convivência, companheirismo e vida em comum”. Isto é, parece ser impossível haver abandono de lar sem que haja dissolução da sociedade conjugal.
Não obstante isso, reitera-se: para ser considerada extinta a sociedade conjugal, pela separação de fato, deve-se respeitar um prazo razoável. Tal prazo pode ser considerado como o de um ano – assim como na separação judicial, tanto pela interpretação do STJ como também pelo entendimento de Duarte:
A dissolução da sociedade conjugal se dá nas hipóteses do art. 1.571, em que não se encontra o caso da separação de fato, contudo, sendo esta separação voluntária, não se deve dar por suspenso ou impedido o curso do prazo prescricional depois de um ano do rompimento da convivência sem ânimo de reconciliação, pois já seria causa de separação judicial (art. 1.573, IV, do CC), além do que se presume o desaparecimento da afeição que era o fundamento da regra legal (art. 5o da LINDB) (DUARTE, 2016. p. 122).
Nessa toada, entendendo que o abandono de lar é comparável a uma separação de fato, esse abandono extingue a sociedade conjugal se passado o prazo razoável de um ano.
Toda essa interpretação é realizada pela finalidade social da norma a partir de todo o conjunto normativo e não apenas do dispositivo especifico, como ensinou didaticamente pelo já citato Maximiliano (2011).
- Considerações Finais
A partir da análise bibliográfica construída nesta pesquisa, tem-se que a natureza do prazo aquisitivo das usucapiões é mais voltada à decadência do que a prescrição. Além disso, mesmo que não for entendida como um prazo decadencial ou “cadencial”, é inadequado entende-lo como prescritivo.
Portanto, parece ser vicioso entender que o prazo aquisitivo das usucapiões de trate de “prescrição aquisitiva”.
Não sendo prescrição aquisitiva, não há nenhum obste na realização da usucapião familiar: mesmo se for entendido que o abandono de lar não extingue a sociedade conjugal, esta não impedira a fluência do prazo aquisitivo.
Lado outro, ainda que seja entendido que o prazo aquisitivo das usucapiões seja prescricional – o que, a partir desta pesquisa, não se vislumbra – a usucapião familiar poderá ocorrer, na medida em que o abandono do lar, após um ano, extingue a sociedade conjugal.
É que a interpretação teleológica das normas do código civil faz entender que o abandono do lar possui natureza semelhante da separação de fato. Desta feita, em congruência não só com a literatura técnica, mas também com o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, após um ano da ausência do vínculo entre os cônjuges, a sociedade conjugal não mais existirá. Somente após esse tempo, iniciar-se-ia o prazo de aquisição.
Ou seja, o cônjuge que possui interesse em realizar a usucapião familiar deve, na verdade, aguardar três anos. Um para a prescrição começar a correr e outros dois para cumprir o prazo legal de dois anos para usucapir.
De todo modo, tal discussão pose ser desnecessária, já que, não sendo prescricional, o prazo de aquisição da propriedade pela usucapião correrá normalmente.
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