Artigos
Quimerismo em seres humanos: as incertezas no exame de DNA e seu status de prova pericial absoluta no direito de família - o caso de “Brisa”, em travessia, de Glória Perez
QUIMERISMO EM SERES HUMANOS: AS INCERTEZAS NO EXAME DE DNA E SEU STATUS DE PROVA PERICIAL ABSOLUTA NO DIREITO DE FAMÍLIA - O CASO DE “BRISA”, EM TRAVESSIA, DE GLÓRIA PEREZ[1].
Camila Oliveira da Costa
Advogada familiarista. Mestre em Direito (UFRN). Pós-graduada em Direito de Família e Sucessões.
Dimitre Braga Soares de Carvalho
Advogado familiarista. Pós-doutor em Direito Civil (UFPE). Professor Adjunto da UFRN e da UNIFACISA.
A novela da Rede Globo, Travessia, da autora Glória Perez, está explorando o tema do quimerismo como um dos problemas centrais dos protagonistas, na relação de disputa de guarda entre os pais de Tonho (Vicente Alvite), Brisa (Lucy Alves) e Ari (Chay Suede). Brisa, em um exame de DNA, descobre que geneticamente não é a mãe de Tonho, filho de seu ventre. Contudo, nos próximos capítulos, ela descobrirá que é realmente a mãe de Tonho, só que é uma quimera. E o que seria isso?
De maneira simplificada, quimera é uma pessoa que possui mais de um DNA no seu organismo, simultaneamente. Essa multiplicidade de material genético pode estar espalhada no corpo inteiro, ou apenas em um local pontual. O quimerismo é um velho conhecido dos geneticistas e fundamental para as taxas de sucesso de alguns transplantes de órgãos e medula óssea. Entretanto, no âmbito do Direito de Família, o assunto não é tão comentado como deveria. Trazemos, portanto, breve resumo panorâmico do tema para tratar no contexto familiarista, fruto de um trabalho de acadêmico precursor, datado do ano de 2016.
Essa situação de quimerismo, que não é tão rara quanto se pensa, pode trazer inúmeras consequências para o Direito, especialmente para o status que o exame de DNA recebe atualmente nos Tribunais de “prova pericial absoluta”. Seria mesmo ela infalível? Seria ela indubitável? Quais as consequências disso para o Direito de Família e para as ações de Investigação de Paternidade, como na imprecisão de um resultado exemplificado na novela?
- INTRODUÇÃO
O tema do momento e do presente artigo tem como ponto central a evidenciação habitual da multiplicidade genética e sua influência na confiabilidade do exame de DNA quanto à sua capacidade de detectar o fenômeno e, partindo-se da premissa de sua utilização como prova pericial absoluta nos processos judiciais, pretende-se descobrir até que ponto o quimerismo pode mudar essa situação.
Desde a construção grega da figura mitológica quimera, seu nome tem sido associado a uma mistura de seres em um só indivíduo, traduzindo aspectos de monstruosidade ou perplexidade em lendas urbanas de outras culturas milenares[2]. Na ciência, não poderia ser diferente. Desde o século XX, a genética sedimentou-se como um ramo altamente evoluído da biologia e firmou o entendimento de que cada ser possui um DNA (ácido desoxirribonucleico) único e invariável, dentro das nossas células, guardador de todas as nossas características hereditárias e exteriores[3].
Na década de 50, descobriu-se o primeiro caso de duplicidade de material genética em seres humanos. A engenharia genética a chamou então de quimera, nomenclatura usada para o fenômeno já conhecido em plantas e animais, mas nunca antes em seres humanos. A descoberta causou surpresa e enleio nos cientistas por muitos anos, ante a raridade de evidenciação.
Neste contexto, avalia-se a capacidade dos métodos utilizados para exame de DNA originarem laudos falso-negativos por não avaliarem todo o genoma do indivíduo. Somado a isso, afere-se a sua capacidade de modificar o sistema processual brasileiro de qualificar o exame de DNA como prova pericial com valor probatório de certeza. Assim, em caso positivo, levantam-se hipóteses sobre qual meio é o mais indicado para minorar o problema, se são mudanças no exame ou na valoração da prova.
Por conseguinte, se faz uma análise de sua utilização como prova pericial atualmente e as tendências de supervaloração usadas pelos julgadores brasileiros. Reflete-se ainda o seu percentual de falibilidade e falta de legislação própria no país para unificar o método de execução do exame, a fim de conferir maior confiança à sua utilização.
Em última seção, cabe explicar como a evidenciação das quimeras cada vez mais frequente traz graves danos à vida dos envolvidos em processos judiciais julgados unicamente com base no resultado dado pelo laudo. Traz-se também sugestões de possibilidades práticas a serem aplicadas pelos laboratórios e magistrados com o fito de conduzir um processo que se adapte às evoluções de descobertas genéticas, sem, contudo, trazer a inutilidade de um sistema tão prático quanto o exame de DNA.
- PLURALIDADE GENÉTICA: QUIMERAS E MOSAICOS.
Em uma simplória introdução à genética elementar, o ser humano é formado por um conjunto de aproximadamente 100 trilhões de células e no interior de cada uma temos um núcleo, contendo dentro de si 46 cromossomos herdados dos pais, 23 da mãe e a outra metade do pai. Dentro de cada unidade de cromossomo temos cerca de 100 mil genes, molécula de DNA[4].
A partir destas bases teóricas, o conhecimento genético tornou público que cada indivíduo é singular, tendo em vista o DNA ser o elemento determinante de todas as características genéticas de um ser específico, e por isso, possuímos apenas um único e sequenciado material genético, herdado dos nossos pais.
Entretanto, descobriu-se, há pouco mais de 70 anos, que existem pessoas com dois tipos de materiais genéticos diferentes. Isso pode acontecer por meio de variadas formas com diferentes origens. A quimera é uma palavra de origem grega e mitológica. Cientificamente, o quimerismo, como gênero, é uma condição em que se encontrada, no mesmo organismo, células geneticamente diferentes[5].
1.1 QUIMERISMO
O quimerismo natural ocorrerá espontânea e acidentalmente, sem intervenções do ser humano na sua formação, de maneira despercebida pela quimera humana durante toda sua vida ou até que algum evento externo force a sua descoberta. Aqui, para fins deste artigo, iremos apenas destacar os tipos existentes de quimerismo existente, sem nos aprofundarmos, dada a concisão exigida. São eles: Microquimerismo Fetomaternal, Quimerismo Tetragamético, Quimerismo Hematopoético, Mosaicismo.
Quimerismo artificial é aquele ocorrido a partir de intervenção médica ou científica. As constantes e crescentes evoluções da biotecnologia a fim de promover o tratamento e cura de determinadas doenças ou possibilitar a gravidez em casais que apresentam dificuldades de procriação, originou como consequência, o quimerismo[6].
Uma das suas formas de conjuntura temporária é a transfusão sanguínea, situação característica de microquimerismo. O quimerismo artificial também pode acontecer de outra forma: através do transplante de medula óssea ou de outro órgão, medindo, inclusive, a taxa de sucesso do transplante. Quanto mais células com o DNA do doador são encontradas no paciente receptor, maior a taxa de vitória.
Casos famosos de quimerismo hematopoético e tetragamético.
A primeira quimera humana foi descoberta em 1953 no norte da Inglaterra pelo British Medical Journal e originou posteriormente um documentário intitulado “The twin inside me”[7]. A paciente, Mrs. McK, procurou a clínica em um gesto comum de doação de sangue. Após, sua bolsa sanguínea seguiu para o laboratório para ser scaneado, limpo e encontrar eventuais doenças antes de ser passado para outro corpo. Entretanto, para a surpresa do especialista, o sangue continha dois tipos sanguíneos oriundos de uma mesma pessoa, constatação esta que perdurou mesmo após ter verificado se todos os procedimentos de coleta, transporte e armazenamento haviam sido feitos da forma correta, situação completamente impossível e inimaginável até aquela época.
Os médicos foram buscar socorro na leitura veterinária, encontrando casos semelhantes em vacas, outros animais e plantas. O caso foi desvendado quando se evidenciou que McK teria um irmão ou irmã gêmea e que seus sangues haviam se misturado durante a gestação, continuando a circular após décadas. Posteriormente, descobriu-se que a situação era verídica, muito embora não pudessem prever até quando assim permaneceria. Até então, não havia relatos de nenhuma quimera humana[8].
Em 1998, tornou-se conhecido mundialmente no ramo da genética mais um caso. Uma senhora de 52 anos, em Boston, chamada Karen Keegan necessitava urgentemente de um transplante renal. Atendida pelo Dr. Margot Kruskall, o médico encaminhou os familiares mais próximos de Karen para realizarem testes de histocompatibilidade (HLA), a fim de serem encontrados doadores de rim para a mulher por meio de tipagem de tecido feito por amostras de DNA[9].
Os cientistas analisaram o DNA por meio da técnica de STR. No caso da de Karen Keegan, chegou-se ao resultado de que ela não poderia ser a mãe biológica de seus dois filhos, já que não havia compatibilidade entre o DNA deles e o dela, apesar do teste ter indicado que todos continuavam a serem irmãos, pois compartilhavam do mesmo DNA do pai. Karen relata ter recebido uma ligação de seu médico, dizendo: “Senhora Keegan, nós temos alguns inesperados resultados para lhe repassar. Isso nunca tinha nos acontecido, mas os DNAs de seus filhos não são compatíveis com o seu”. Semelhante ao que acontece a Brisa, em Travessia. Os médicos de Boston fizeram milhares de perguntas a Karen, questionando de onde seus filhos haviam vindo, em que hospital nasceram, ou se eles descendiam de fertilização in vitro.
Após, os médicos detectaram que um dos supostos filhos de Karen possuía sangue tipo A, a mesma tipagem sanguínea dela, enquanto o pai possuía sangue tipo O. Assim, foram retiradas mais amostras de DNA de Karen por meio da saliva, bulbos capilares, pele, glândula da tireoide e tecido da bexiga. A partir disso restou-se provado que Karen Keegan era oficialmente uma quimera humana, de origem tetragamética, contendo dois tipos distintos de DNA no seu corpo, um deles nada presente no seu sangue[10].
Outras ocorrências ao longo do tempo foram noticiadas ao redor do mundo, são eles o de Lydia Fairchild, o do ovário de Jenny Kavanagh no Reino Unido. É citado também um caso em Washington, no ano de 2014, o do ciclista ganhador das Olimpíadas da Espanha de 2004, Tyler Hamilton, outro, em 2009, na Argentina, em uma paciente mulher, descoberta por uma investigação de paternidade.
1.2 DIAGNÓSTICO DO QUIMERISMO.
O diagnóstico de quimerismo ou multiplicidade genética costuma ser bastante peculiar e de difícil revelação. Como essa condição, em sua regularidade, não apresenta sinais fenotípicos, exceto em algumas raras situações e, bem como, em se tratando de quimerismo tetragamético de espécie hermafrodita, a sua tipagem passa também despercebida pelo hospedeiro, seus familiares, médicos e farmacêuticos em especial nos casos em que a quimera possui um segundo DNA em apenas um órgão. Por não estar no sangue, a evidenciação é de alta complexidade, partindo-se da premissa de que cada quimera é única quanto aos lugares de distribuição de genomas diferentes. Nesta hipótese, a descoberta só se realizará a menos que seja retirada uma amostra de DNA do órgão específico e encaminhado para análise[11].
Em razão desta dificuldade, não há a procura de indivíduos quiméricos. As quimeras que têm sido descobertas por meio de exames de DNA, deve-se saber, ou ao menos prever, os locais e tecidos para a retirada de amostras aptas à análise e comparação de todo esse material, uns com os outros. Como esse conhecimento prévio é um dado demasiadamente impreciso, na tentativa de se evidenciar, comprovar ou descartar um caso específico de quimera humana, amostras de locais como sangue, saliva, cabelos, fluidos corporais, pele, esperma, devem ser retiradas, sequenciadas e comparadas, ou seja, o pacote completo ou o máximo de elementos possíveis.
O meio mais adequado para a identificação de pacientes quiméricos seria o processo de mapeamento do sequenciamento de todos os cromossomos do corpo humano. O desenvolvimento dessa área encontra-se em grau avançado, iniciado com o projeto genoma há oito anos[12].
Apesar de o sequenciamento ter sido um passo importante para a medicina e engenharia genética, precisa-se de mais genomas decodificados. O esforço dos cientistas dedicados à área será essencial para o barateamento e expansão do procedimento, como aconteceu em décadas passadas com os exames de raio-x, a ressonância magnética e o próprio exame de DNA. O custo inicial do primeiro mapeamento do genoma humano foi de, aproximadamente, um bilhão de dólares e levou cerca de treze anos para ser edificado. No momento, o processo leva apenas uma semana e encontra-se custando menos de cinco mil dólares. A perspectiva é que em alguns anos os laboratórios baixem o preço para mil dólares, com expectativa de até centenas de dólares para os mais desenvolvidos[13].
- O EXAME DE DNA COMO PROVA PERICIAL GENÉTICA.
O exame de DNA é o teste máximo de identificação de pessoas existente, segundo o divulgado ao conhecimento público, e o mais utilizado. Foi criado a partir da técnica de fingerprinting pelo inglês Alec Jeffreys, professor da Universidade de Leicester na Inglaterra, em meados da década de 80[14]. O método compara o DNA à uma impressão digital molecular, tendo em vista sua unicidade para cada indivíduo e invariabilidade, via de regra, ao longo da vida. A técnica, por possuir um grau de certeza de 99,99%, quando devidamente realizado para fins de identificação pessoal e determinação de paternidade, já foi considerada o maior avanço do século em matéria de prova na área forense[15].
Para sua realização, primeiramente são coletadas amostras de DNA do elemento, provenientes do sangue ou de outras partes do corpo, como saliva, bulbos capilares, urina, sémen, ossos, dentes, unhas, e fluidos corporais[16]. Quando o exame é feito voluntariamente pela parte, os materiais mais usados são o sangue e a saliva. O restante possui maior aproveitamento quando coletados em locais de investigação criminal ou quando é o único material disponível para inspeção[17].
Desde sua descoberta e expansão mundial, pudemos acompanhar nos últimos 20 anos a revolução que o exame de DNA trouxe para o âmbito da medicina. A cautela necessária para sua realização, os desdobramentos do uso do teste e a confiabilidade transmitida são elementos importantes para a sua capacidade de resolver problemas atualmente. A perspectiva de sua utilização em pesquisas em evolução de doenças, suas curas, ou para simples fins do dia-a-dia transparecem à sociedade um exame de DNA com resultados esclarecedores, absolutamente verídicos e remédio definitivo para problemas de alta complexidade, como investigações criminais e de filiação. O marketing produzido pelos laboratórios, pela mídia e por profissionais do ramo afirmando periodicamente o grau de indubitabilidade do certame apenas aumentam a sua presunção de veracidade absoluta.
Inicialmente, o DNA fora pensado para atender necessidades com finalidades médico-científicas por Alec Jeffrey. Entretanto, o geneticista, em pouco tempo, expandiu seus olhares para a investigação de paternidade e resolução de crimes. A primeira utilização do exame de DNA fora do âmbito médico-científico foi o deslindamento de um misterioso caso de paternidade, que resultou na comprovação de um adolescente francês ser o pai de uma criança cuja mãe era uma inglesa divorciada. Na Inglaterra, a aceitação pelos Tribunais foi efetivada a partir da fácil elucidação de diversos casos práticos.
Nos EUA, o aproveitamento do teste como prova judicial gerou inúmeras polêmicas, todas relacionadas à confiabilidade dos laboratórios e seus métodos utilizados nos exames. Os advogados não sabiam lidar com uma prova que atestava com tanta credibilidade a certeza da inocência ou não de uma pessoa, ou até mesmo a ligação dela com o crime[18]. Quanto à aplicação do exame a questões familiares, o país foi mais pacífico.
No Brasil, por sua vez, a aceitação da população e dos magistrados foi de imediato. O exame adentrou no processo, cível e criminal, dentro das provas periciais e a aceitação se deu sob o fundamento de que o teste já era assim utilizado em países desenvolvidos, não trazendo mais questionamentos e discussões. Em razão disso, nenhuma regulamentação própria contendo as diretrizes de procedimento e cautela foi feita, diferentemente da maneira adotada pelos americanos, cheia de indagações, estudos e discussões prévias acerca da infalibilidade e confiança dos testes. Os Tribunais não questionaram o novo método científico, na teoria ou em casos concretos, não exigindo nenhuma comprovação para a aceitação desse postulado científico como verdadeiro e o passaram a aplicar com completa e total força[19].
O exame veio com a esperança, nas palavras de Arruda e Parreira, ‘de eliminar para sempre dúvidas antiquíssimas que perseguiam os juízes’[20]. Era a elucidação da verdade real dos fatos. O resultado expresso no teste, com credibilidade de 99,99% de certeza, traz a proposta ideal de uma solução simplória e fácil na elucidação de questões práticas que sempre foram naturalmente complexas, como a determinação da paternidade ou parentesco de uma pessoa e a prova certa sobre a prática de um crime. Com o início da aceitação do exame, o amplo requerimento dos advogados, a divulgação na mídia e determinação dos magistrados pela sua realização, houve o seu barateamento[21].
O maior impacto inicial foi no Direito de Família, com a sua enorme receptividade. Os testes nesta esfera foram usados como prova nas ações de investigação de filiação e é ainda, atualmente, o maior mercado dos laboratórios em matéria de exame de DNA no Brasil[22]. O benefício da justiça gratuita, posteriormente em 2001, passou a abranger[23] o custeio do exame de DNA. Hoje, o artigo pertinente, que antes constava na Lei 1.060/50, foi revogado e encontra-se legislado pelo Código de Processo Civil de 2015[24]. Surgiram ainda laboratórios públicos em várias partes do país para atender a demanda em processos judiciais para partes que não possuíssem condições financeiras de custeio.
Processualmente, é considerado prova tudo aquilo que demonstra ou procura estabelecer formalmente a verdade sobre determinado fato, procurando constituir, impedir, modificar ou extinguir os fatos alegados pelas partes[25]. Destina-se aos sujeitos do processo, em especial ao juiz, tendo em vista que a sentença será proferida de acordo com seu grau de convencimento. Ou seja, não tem o condão de criar a certeza dos fatos, mas a convicção do magistrado sobre eles[26], a partir de um critério denominado valoração da prova. O julgador, na instrução, determinará o valor probandi de cada prova utilizada pelas partes a partir de sua influência no seu convencimento sobre o fato probandi[27].
Essa modalidade de prova por natureza, em razão de suas características e natureza jurídica, possui, geralmente, um alto poder de convencimento no decisium do magistrado, tendo um valor especial, apesar de o magistrado possuir a liberdade de se vincular ou não o laudo, desde que baseado em critérios racionais e fundamentadamente. No caso do DNA, pelo grau de certificação, seria praticamente irrefutável e de alto valor comprovatório, baseada na sua margem de erros[28].
Pelo convencimento racionalmente motivado do juiz, a valoração das provas nos autos deve ser guiada pela verossimilhança, exprimindo uma motivação racional em conjunto com todo o arcabouço probatório dos autos. Neste sentindo, caberá ao magistrado se será necessário exame pericial de DNA.
Sendo assim, o julgador não está subordinado às conclusões do perito no laudo, nem no processo cível, nem no criminal. Caso considere o laudo demasiado incoerente, impreciso, inconsistente em comparação com o conteúdo restante probatório, pode o magistrado descartá-lo e determinar a repetição da prova, isto ante a necessidade de um controle jurisdicional mais efetivo à cientificidade e tecnicidade das perícias, sob pena de se transformar o juiz em um mero homologador judicial e peritos em sentenciadores[29].
Acontece que, há, atualmente, uma tendência de supervalorização dos resultados obtidos na prova pericial do exame de DNA. O grau de confiança do teste tem levado ao que, na prática, se conhece como “processos decididos pelo perito e pelo laudo”, e não pelo juiz. O magistrado, neste caso, se torna um homologador da perícia[30]. A vida das partes se torna decidida unicamente pelo resultado positivo ou negativo. É o que diz a orientação dos Tribunais Superiores sobre o tema.
Nem sempre é levado em consideração o conjunto probatório juntado aos autos pelas partes e seus advogados. O exame de DNA é, de certo, uma prova importante, porém como toda prova, deve ser examinada em conjunto com o contexto probatório e admitindo-se a falha técnica e humana na sua realização. Em especial, se levarmos em conta que não há, atualmente, legislação específica no Brasil contendo recomendações para a execução do exame de DNA, tendo em vista a sua aceitação sem maiores discussões científicas[31].
Nas palavras de Zeno Veloso:
O exame DNA tem sido realizado como prova única, como prova máxima, maravilhosa (em todos os sentidos do vocábulo) e essencial, aparecendo como panacéia para resolver todos os males, superar todas as questões e dificuldades. O resultado do laboratório, entretanto, não pode ser confundido com cartola de mágico, de onde saltam todas as coisas e pulam todas as respostas. Não tem sentido e não há razão para deixar de acolher a prova genética do DNA, mas ela deve estar compreendida no conjunto probatório[32].
Tanto no processo civil como no penal, o magistrado tem dado valor máximo à prova de DNA, sem estruturá-la nos critérios de valoração. A certeza e confiança atribuídas ao exame pesam, até mesmo pelo caráter especial da prova pericial, porém deve sempre estar em conformidade com o contexto e conteúdo produzido em juízo. Não pode o juiz ignorar os avanços científicos, porém não pode estabelecer valor maior ao merecido efetivamente.
- O EXAME DE DNA NO DIREITO DE FAMÍLIA
Na esfera cível, a maior utilização do exame de DNA como prova pericial se dá nos processos no âmbito do Direito de Família, com o fito de comprovar ou descartar a identificação de pessoas e suas relações de parentesco, em especial a paternidade. O dado biológico da paternidade, historicamente, foi um lado forte para o reconhecimento de uma filiação, voluntariamente ou não. As dúvidas acerca da constituição do laço de parentesco cismam a humanidade desde o começo social da vida em família, em especial por envolver, caso comprovada, questões relacionadas ao afeto, reconhecimento, apoio financeiro e de hereditariedade. Afinal, viemos de um brocardo em que “a maternidade é sempre conhecida, a paternidade, não”.
Em um país em que há tantas demandas sobre investigações de parentesco e petição de herança, na qual a resolução se baseava em presunções e provas testemunhas, fotografias e exames de menor confiabilidade, o exame de DNA ao chegar exprimindo tanta certeza e infalibilidade não poderia ter quedado em melhor conveniência, vindo logo a ser a solução mágica para uma questão tão complexa e incerta, em especial quando se prevê possível a sua realização post mortem ou por parentes próximos da pessoa a ser analisada, como pais, avós e irmãos. Assim, o DNA teria a capacidade de reescrever a história.
A explosão mundial dos exames de DNA foi em meados da década de 80, se popularizando concretamente a partir da segunda metade dos anos 90. A Constituição Federal de 1988 trouxe revoluções extremamente significativas quanto ao Direito de Família, entidades familiares e direito à filiação, contendo dispositivos que causaram uma verdadeira reformulação nas bases sociais[33].
Com a junção da nova legislação e o surgimento do exame de DNA, o número de investigações de paternidade aumentou consideravelmente. As provas na investigação de paternidade eram feitas única e exclusivamente a partir de testemunhas, fotografias e exames prosopográficos, cartas amorosas[34], posse de estado de filho, situação de fato em que o investigante é reconhecido na sociedade como filho e assim goza de tratamento, além de alguns exames, como o hematológico ABO e o de tipagem HLA, que nunca indicaram certeza com fidedignidade e afinco. Neste sentido, o teste genético, a partir do momento de utilização em ações de família, determinou o fim da utilização dos demais exames clínicos usados anteriormente para a identificação biológica[35].
O exame de DNA trazia no seio social o sentimento de esperança para a realização de frustrações que, muitas vezes, perduraram por muitos anos em pessoas que nunca puderam ter, em seu registro civil ou durante vida, o apoio da família paterno, seja afetivamente ou patrimonialmente. A promessa era de resolver as marcas pessoais de mulheres que sofreram ao não poderem dar à sociedade e seus filhos a satisfação e certeza da paternidade de suas crianças. Era ainda a expectativa de filhos adotivos finalmente conhecerem as heranças parentais de seus vínculos biológicos[36]. Havia ainda o medo daqueles, casados ou solteiros, que sabiam do vínculo biológico, mas se aproveitavam do benefício da dúvida para se eximir de suas obrigações paternas.
Tudo isso acarretou uma série de novas frustações naqueles que tiveram suas ações extintas pela prescrição do direito, à vigência do Código Civil de 1916, ou pela cobertura do manto da coisa julgada em casos já anteriormente discutidos sem a prova do exame. Inclusive, o Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento em não aceitar a desconsideração da coisa julgada material para casos de investigação de paternidade baseada apenas na produção de nova prova pericial[37].
Já o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário 363.889/DF[38], em repercussão geral, discutiu sobre o tema em caso de extinção de nova investigação de paternidade, quando a anterior havia sido julgada improcedente por insuficiência de provas dos fatos alegados. Ao final da decisão, foi estabelecido que, em situações em que não foi possível determinar-se a efetiva existência de vínculo genético em decorrência da não realização do exame de DNA, uma prova de certeza inquestionável acerca da origem genética e que a ideia de coisa julgada não se presta a resolver o problema do direito fundamental à identidade genética. Assim, procedeu-se à relativização da coisa julgada formada na primeira ação de investigação de paternidade ajuizada, prosseguindo-se no julgamento da segunda demanda com o mesmo fim com realização da prova técnica que “assegura, com um grau de certeza que se pode qualificar de absoluto, obter-se uma comprovação cabal acerca da eventual relação paterno-filial” alegada. Em razão da precariedade da prova anteriormente utilizada, a relativização da coisa julgada foi autorizada. Atualmente, o direito é imprescritível[39] e indisponível.
Faz-se necessário destacar que a investigação de paternidade, julgada procedente ou improcedente a partir do resultado positivo de exame de DNA, por si só, não induz ao estado de filiação, devendo este ser analisado a partir da situação fática. O que o procedimento garante é uma forma de exercício do direito ao conhecimento da origem genética.
Dessa forma, o exame de DNA só vem a comprovar o laço biológico. Não cria, porém, o vínculo de paternidade, ou maternidade, de maneira prática e nem afetiva. Não gera uma relação paterno-filial, apesar dos efeitos de ordem moral, patrimonial, obrigação alimentar e sucessórios.
Da mesma forma, Dimitre de Carvalho, “há de se distinguir o direito da personalidade ao conhecimento da origem genética, com esta dimensão, e o direito à filiação e à paternidade/maternidade, cujas bases, nem sempre, são aquelas tidas por “genéticas”[40].
A importância do exame do DNA baseada na sua certificação científica foi tamanha que o Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento de que em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris tantum de paternidade. Isto gerou o enunciado da Súmula 301[41] no ano de 2004, sendo o seu teor estendível à recusa dos familiares do suposto pai de cujus, em submeterem-se ao exame, no caso de investigação de paternidade post mortem. O enunciado foi objeto de muitos questionamentos e discussões, avaliando-se eventual invasão dos direitos da personalidade do investigado. A razão de ser do enunciado se sedimenta na impossibilidade de se compelir a parte à realização do exame, mas que em razão do índice de confiabilidade deste de 99,99%, a recusa do réu injustificada teria o condão de dificultar a prova ante o indício de probabilidade em vir a se confirmar a paternidade/maternidade.
A Lei 12.004/09 acrescentou à Lei de Investigação de Paternidade (Lei 8.560/92) o art. 2º-A[42]. Pela redação do artigo, não basta mera recusa ao exame de DNA, sendo necessárias também provas indiciárias de relacionamento entre a mãe e o investigado para que possa incidir a presunção de paternidade, prejudicando o teor da súmula. A mudança veio a partir de situações práticas que não eram resolvidas unicamente pelo teor do enunciado.
Da incorporação do exame de DNA às Ações de Família no final dos anos 90 até os dias atuais percebe-se a tendência dos magistrados em considerar o exame de DNA como prova determinante da comprovação da paternidade, baseado no grau de confiabilidade deduzido pelo exame. Pouco se considera o conjunto probatório carreado nos autos, constituindo as sentenças em ações negatórias de paternidade e de investigação em processos decididos pelo laudo pericial.
3 A EVIDENCIAÇÃO DAS QUIMERAS: AS CAUTELAS NO EXAME DE DNA E A RELATIVIZAÇÃO DO SEU VALOR ABSOLUTO COMO PROVA PERICIAL NO DIREITO DE FAMÍLIA.
Pelo conteúdo exposto no trabalho, as pesquisas mais recentes demonstraram que os casos noticiados de quimerismo têm sido cada vez mais frequentes e a opinião médica mais atual reflete nas altas chances dessa condição fisiológica ser mais comum do que rara, apesar da inexistência de dados concretos sobre a sua incidência. A falta de dados, casos e a dificuldade de sua descoberta pelos métodos de mercado fizeram com que o fenômeno fosse tido como algo de difícil ocorrência e surpreendente, até mesmo pela inaptidão dos testes genéticos em demonstrar a condição, mas a realidade tem mostrado que não. A ocorrência de multiplicidade genética não é fato raro, o problema gira em torno do caro método de identificação específica para a condição.
O exame de DNA, apesar de seu grau de certeza ser 99,99%, como investigador de quimerismo, resultou em não ser o meio mais adequado para a descoberta dessa condição. O exame é eficaz quando se sabe exatamente de onde se quer a análise do DNA. Assim, a imprevisão e variabilidade dos locais de órgãos atingidos pela duplicidade de material genético nos seres humanos mostram que, a menos que se saiba o local exato, a descoberta da localização só será possível a partir de sucessivos testes realizados com a colheita de várias amostras em muitos locais.
Um sequenciamento e mapeamento do genoma do indivíduo seria o meio mais adequado. Entretanto, o procedimento ainda é demasiado caro para a população de classe média e baixa adquirir, ou até para o financiamento pela justiça gratuita, custando atualmente cerca de algumas centenas e milhares de dólares.
Tudo isso se torna extremamente perigoso quando se levanta a hipótese de um dos materiais genéticos ser divergente do outro estar localizado justamente onde será retirado o material para coleta e apreciação do exame de DNA, como na saliva ou no sangue. Ao se imaginar isso, percebe-se que quando do laudo do teste, o DNA de uma quimera transmitido à sua prole ou deixado como evidência no crime pode ser completamente diferente daquele material genético coletado para o procedimento do exame, trazendo um resultado negativo.
Ao se somar a precariedade de legislação regulamentadora atualmente para a metodologia e coleta dos testes de DNA e o uso de métodos inconsistentes entre os laboratórios aumenta ainda mais a probabilidade de erros. O fato de que esses testes são usados, atualmente, como prova judicial quase absoluta em processos investigatórios de vínculo biológico e criminal, sem se levar em conta todos os dados e provas processuais, traz consequências gravíssimas quanto à negativação de um laudo, quando, na verdade, deveria ser verdadeiro. Parentes perderão a oportunidade de formarem um vínculo afetivo, além da perda de direitos alimentícios e sucessórios.
Os efeitos do quimerismo para o âmbito do Direito de Família, quanto aos resultados equivocados de negativação em investigações de maternidade e paternidade, implicam na supressão de direitos relacionados à convivência familiar e criação de vínculos afetivos. Direitos patrimoniais serão também afetados, excluindo-se um herdeiro legítimo da sucessão e o direito da criança às verbas alimentícias ao longo de sua vida.
Se o pai for uma quimera tetragamética, é plenamente possível que o DNA encontrado em uma amostra salivar não combine com o DNA que fora passado para seu filho no ato de reprodução. O mesmo se pode dizer na situação inversa, quando a prole é a quimera. A situação é ainda imaginável quando um pai tenta comprovar a paternidade do seu filho, podendo, por isso, perder complemente o vínculo para com ele, casos não haja formado paternidade socioafetiva. Em razão dos testes serem considerados como prova quase nunca infalível, os responsáveis pela criança não terão praticamente outra escolha, a não ser acolher a negatividade do exame, ou, salvo casos raros, impugnar a prova pericial sob o fundamento de quimerismo.
O quimerismo, por si só, não induz a ineficiência do exame de DNA por completo como prova judicial, apesar de ter existência comprovada. Contudo, pode impactar consideravelmente o Direito de Família, a ciência da Medicina Legal e a Criminal em alguns casos, caso se considere a prova como infalível e absoluta, tornando o magistrado refém dos seus resultados, o que poderá induzir graves erros. O juízo de valor deve estar sempre voltado para todo o conjunto probatório do processo, e não para uma prova única, mesmo que produzida de acordo com regras de segurança internacionais, ante a sua margem de erro existente, mesmo que pequena.
O erro, não está no exame em si, apesar de comprovado que ele não é o mais indicado no caso de quimerismo, está na falta de cautelas em sua metodologia e total desconsideração para com esta condição genética. Para que isso seja evitado, como o fenômeno pode ocorrer em qualquer parte do corpo humano, o ideal seria que na colheita do material para a realização exame fossem retiradas amostras de vários tecidos do investigado e do investigante, como saliva, cabelo, urina, sangue, e comparado os resultados, primeiramente de cada indivíduo e depois de ambos.
A falta de regulamentação no Brasil para as metodologias de DNA nos laboratórios torna a falha ainda mais provável ante a evidenciação de quimerismo. Por não existir normas de recomendação, os laboratórios seguem suas próprias doutrinas, situação perigosa em um país onde quase sempre o lucro importa mais do que a qualidade do serviço prestado. A Portaria S – IMESC – 7 do Instituto de Medicina Social e de Criminologia de São Paulo, praticamente um dos únicos registros de regulamentação dos procedimentos de coleta de material biológico, emissão de laudo e da metodologia utilizada nos exames de investigação de vínculo genético por meio de identificação de polimorfismos de DNA, senão o único, traz no seu bojo importante ressalva diretamente influenciada pelo quimerismo[43], na qual os indivíduos que passarão por transfusão total de sangue ou seus derivados, ou que receberam transplante de medula óssea nos últimos seis meses anteriores a coleta, devem ter seu exame feito por coleta de sangue e também swabbucal, para que se evite que o laudo seja inconclusivo por situação de quimerismo.
A recomendação é inovadora, em especial se avaliarmos que a portaria é datada do ano de 2006, na qual a condição quimérica era considerada raríssima. Se fosse repetida em eventual recomendação de abrangência nacional, as chances de laudos falso-negativos diminuiriam consideravelmente. Paralelamente, o magistrado deve estar ciente de tal situação e avaliar todos os critérios essenciais da prova pericial realizados, sempre em conformidade com as provas carreadas nos autos.
Ainda que tomadas todas as precauções, surgindo um resultado de exame completamente destoante do que consta nos autos, o julgador deve avaliar os métodos aplicados e caso entenda necessário, ou desconfie da possibilidade de quimerismo em qualquer das partes, determinar nova perícia, tomando-se os cuidados recomendados e até mesmo a feitura do exame em parentes próximos do investigado, como pais e irmãos.
Não se pretende aqui atestar que a metodologia utilizada atualmente nos exames de DNA no Brasil é totalmente errada, ou que se deve ignorar os avanços científicos desconstituindo a prova pericial de DNA. O que se quer demonstrar é a sua insuficiência diante da necessidade de maturação dos métodos existentes para que possamos adaptá-los ainda mais aos avanços alcançados pela bioengenharia genética, a partir da descoberta da habitualidade de quimeras humanas pelos diversos fatores trazidos, tanto naturais como artificiais.
Não existem postulados absolutos na ciência. O que seria da evolução humana sem as verdades transitórias? O teste genético, apesar de eficaz, deve ter seus métodos reformulados quando usado para fins de identificação pessoal e de vínculo biológico como forma de se adaptar às novas descobertas científicas, sobretudo quando o exame tem influência fortíssima no delinear de causas judiciais que decidirão e mudarão complemente a vida de pessoas.
Apesar de ser imprescindível uma regulamentação nacional dos métodos de exames de DNA, de preferência com medidas objetivando afastar o quimerismo, a exemplo da Portaria do IMESC, a única forma de se pôr em prática exames de DNA mais confiáveis, atualmente, são reiteradas determinações dos julgadores aos peritos com a formulação das condições apresentadas de excludentes do quimerismo e mosaicismo genéticos nos testes de DNA, como a coleta de materiais de várias partes do corpo, o questionamento aos pacientes sobre a realização de procedimentos anteriores de transfusão sanguínea a menos de 90 dias, transplante de órgãos ou medula óssea, ou se foi resultado de reprodução assistida, e até mesmo, em casos extremos, o exame em parentes próximos do suspeito ou investigado. Tudo isso pode criar uma reengenharia dos laboratórios de análise genética com critérios mais científicos, gerando a confiabilidade das provas periciais obtidas por laudos técnicos de exame genético[44].
Infelizmente tal postura não parece ser a adotada pelos julgadores, haja vista a escassez de decisões judiciais em que houve decisão contrária ao que determina o laudo, com exceção de casos de paternidade afetiva já solidificada. Merece, pois, alteração. Os Tribunais devem se mostrar mais cautelosos em não desprezar o conjunto dos outros elementos probantes que possam atestar eventual quimerismo, ou resultado diferente do laudo, estando sempre atentos à forma de procedimento usada na realização do exame de DNA.
De certo que as medidas cautelares citadas induzirão a maiores gastos econômicos e em um exame de execução muito mais complexa. No entanto, não deve o argumento oneroso, sob nenhum aspecto, ser ponderado mais importante do que a ampla defesa, a presunção de inocência, o contraditório e o direito personalíssimo, indisponível e imprescritível do reconhecimento ao estado de filiação e conhecimento à identidade genética, especialmente em uma era de humanização e constitucionalização do Direito Civil e Criminal. A onerosidade, a partir da reiteração de decisões, irá providenciar o consequente barateamento da medida, como aconteceu anteriormente com o próprio exame de DNA, exames de raio-x e “testes de posisitivação do HIV, que por reiteradas decisões estimularam novas tecnologias, tornando-os mais confiáveis e menos onerosos[45]. A medida pode ser executada até que o mapeamento do genoma, forma mais aconselhada para investigação de genes, seja também mais barata.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pelas considerações delineadas, pôde-se ver que um exame superficial, se realizado em uma quimera, resulta, na maior parte dos casos, na delimitação de apenas um material genético, originando apenas laudos falso-negativos, se comparado com o DNA de outra parte do corpo não compatível com aquele. Para que seja descoberto em outras partes do corpo, devem ser retiradas e analisadas amostras de vários tecidos, como saliva, pele, cabelo, urina, suor. A conclusão geral é a de que o quimerismo é, atualmente, um fenômeno comum, a partir da descoberta do microquimerismo fetomaternal e o aumento de gestações múltiplas por processos de fertilização.
Chega-se à conclusão final de que o quimerismo é mais um fator ensejador para uma reforma essencial quanto ao exame de DNA, tanto metodológica, quanto à avaliação da perícia técnica pelos julgadores nos processos judiciais. Não se admite, a partir das bases teóricas aqui elucidadas, que o teste receba a confiabilidade inicialmente projetada de 99,99% sem nenhum critério científico estabelecido e sem ser comparada com todo o conteúdo probatório carreado nos autos, seja no processo cível ou criminal.
A título de sugestão, foi proposto que houvesse, inicialmente, uma legislação pertinente válida em todo o território nacional, semelhante à Portaria n° 7 do Instituto de Medicina Social e de Criminologia do Estado de São Paulo, contendo detalhadas observações de como devem os laboratórios proceder em todo o exame de DNA. Em seguida, apesar de não se estabelecer uma taxa real de incidência do quimerismo, é preciso minorar seus resultados em razão das graves consequências sociais idealizadas pela falsa negativação de um laudo.
Assim, recomendamos que, incialmente, fosse averiguada pelo laboratório eventual submissão anterior das partes a procedimentos de transfusão completa de sangue ou medula óssea, conforme ainda recomendação existente na referida portaria do IMESC/SP. Em seguida, que houvesse a coleta para análise de amostras de diversas partes do corpo dos periciados, e sendo uma das amostras retiradas no local do crime, que o material analisado do suspeito fosse o mesmo. Por conseguinte, o magistrado avaliaria o laudo a partir do convencimento motivado e, caso houvesse dúvida e julgasse necessário, repetiria o exame em parentes próximos ao investigado.
Por fim, necessário ainda que repensemos a “infalibilidade” do exame em DNA, atualmente e temerariamente tido como suprema prova judicial, única e definidora de resolução de casos jurídicos complexos, inclusive de investigação de vínculo genético de paternidade. A doutrina pregadora do DNA como verdade absoluta não mais deve subsistir. Deve antes o exame passar por significativas reformas no Brasil para se adaptar aos avanços científicos e possuir a confiabilidade realmente merecida de alta probabilidade, mas não de valor insofismável e incontestável.
[2] HAMILTON, E. Mythology: Timeless tales of God and Heroes. [S.l.]: Warner Books, 1999. p.139.
[3] AMABIS, José Mariano; MARTHO, Gilbergues Rodrigues. Biologia das Populações: Genética, Evolução biológica e Ecologia, v.3. 2ª ed. [S.l.]. Moderna.
[4] ARRUDA, José Acácio; PARREIRA, Kleber Simônio. A prova judicial de ADN. Belo Horizonte: Del Rey Editora Ltda, 2000. p. 27.
[5] YU, N. Disputed Maternity Testing Leading to Identification of Tetragametic Chimerism. New Eng.: J. Med, 2002.
[6] GRANZEN, 2014, p. 9-10.
[7] Em português “A gêmea dentro de mim”. (Tradução nossa).
[8] DUNSFORD, I.; et. al. A human blood group chimera. In: British Medical Journal, v.2. England:1953. Disponível em:
[9] Human Genome Project Information. Disponível em:
[10] ARCABASCIO, 2007, p. 450-451.
[11] GRANZEN, 2014, p. 77.
[12] CUMINALE, Natália. Dr. DNA: Hospital americano passa a usar sequenciamento genético no tratamento dos pacientes. In: Revista Veja eletrônica, Editora Abril. Maio 2016. Disponível em: . Acesso em: 31 out. 2016.
[13] CUMINALE, 2016.
[14] MORANDINI, Clézio. Citologia e Genética. In: Coleção Objetivo. Vol.1. CERED. p. 115-116.
[15] MORANDINI, p. 115-116.
[16] BENECKE, M. Coding or non-coding, that is the question. EMBO reports, v. 3, n. 6, 2002. p. 498 – 502.
[17] MORANDINI, op. cit., p. 115-116.
[18] ARRUDA; PARREIRA, 2000, p. 73.
[19] ARRUDA; PARREIRA, 2000, p. 81-83.
[20] ARRUDA; PARREIRA, 2000, p. 69.
[21] ARRUDA; PARREIRA, 2000, p. 76.
[22] ARRUDA; PARREIRA, op. cit., p. 76.
[23] Art. 3° da Lei 1.060/50. BRASIL. Lei 1.060: de 5º de fevereiro de 1950. Estabelece normas para a concessão de assistência judiciária aos necessitados. Brasília: Senado Federal. Disponível em:
[24] Lei 13.105/15. “Art. 98. A pessoa natural ou jurídica, brasileira ou estrangeira, com insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios tem direito à gratuidade da justiça, na forma da lei. § 1o A gratuidade da justiça compreende: [...] I - as taxas ou as custas judiciais; V - as despesas com a realização de exame de código genético - DNA e de outros exames considerados essenciais.” BRASIL. Código de Processo Civil. Lei 13.105. 16 de março de 2015. Brasília: Senado Federal. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em 29 out. 2016.
[25] BEVENUTO, 2009.
[26] CÂMARA, 2002, p. 390.
[27] Ibid.
[28] ARRUDA; PARREIRA, 2000, p. 76.
[29] DIDIER, 2015, p. 288-290.
[30] CÂMARA, Alexandre Freitas. A valoração da perícia genética: Está o juiz vinculado ao resultado do “Exame de ADN”?. Disponível em:
[32] VELOSO apud CÂMARA.
[33] ARRUDA; PARREIRA, 2000, p. 79-80.
[34] CARVALHO, Dimitre Braga Soares de. Leis civis especiais no Direito de Família. In: Coleção Leis Especiais para concursos. V. 32. Salvador/BA: Editora Juspodivm. p. 87.
[35] NETO, Hamilton de Oliveira Martins. A falibilidade do exame de DNA: Necessidade de revisão da postura dos julgadores nas ações de investigação de paternidade. In: Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano IV, Nº 4 e Ano V, Nº 5, 2003-2004. p. 594 Disponível em:
[36] ARRUDA; PARREIRA, 2000, p. 77.
[37] CARVALHO, 2011. p. 89.
[38] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 363.889/DF. Distrito Federal. Relator: Ministro Dias Toffoli. 07 maio 2007. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RE363889.pdf>. Acesso em: 29 out. 2016.
[39] Art. 27 O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça. Estatuto da Criança e do Adolescente. BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei n° 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília, DF: Palácio do Planalto. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069Compilado.htm >. Acesso em: 24 out. 2016.
[40] CARVALHO, 2012, p. 172.
[41] Súmula 301/STJ. Em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris tantum de paternidade. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula 301. Brasília, DF: 2004. Segunda Seção, em 18.10.2004 DJ 22.11.2004, p. 425. Disponível em: < https://ww2.stj.jus.br/docs_internet/revista/eletronica/stj-revista-sumulas-2011_23_capSumula301.pdf>. Acesso em 29 out. 2016
[42] Art. 2o-A. Na ação de investigação de paternidade, todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, serão hábeis para provar a verdade dos fatos. Parágrafo único. A recusa do réu em se submeter ao exame de código genético - DNA gerará a presunção da paternidade, a ser apreciada em conjunto com o contexto probatório. BRASIL. Lei n° 8.560, de 29 de dezembro de 1992. Regula a investigação de paternidade dos filhos havidos fora do casamento e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8560.htm#art2a>. Acesso em 04 nov. 2016.
[43] Item 3.4. Indivíduos transfundidos com sangue total ou seus derivados ou que receberam transplante de medula óssea nos últimos seis meses anteriores a coleta, devem ter seu exame feito por coleta de sangue e também swabbucal, para que se evite que o laudo seja inconclusivo por situação de quimerismo. Cf. INSTITUTO DE MEDICINA SOCIAL E DE CRIMINOLOGIA DE SÃO PAULO. Portaria S – IMESC – 7, de 29 de agosto de 2006. São Paulo. Disponível em: < http://www.imesc.sp.gov.br/pdf/portaria_S_IMESC_07_2006.pdf>. Acesso em: 08 nov. 2016.
[44] BEVENUTO, 2009.
[45] BEVENUTO, 2009.
Os artigos assinados aqui publicados são inteiramente de responsabilidade de seus autores e não expressam posicionamento institucional do IBDFAM