Artigos
Vamos falar sobre incesto? A invisibilidade de uma violência doméstica
Nanci Gomes Valentim1
A origem etimológica da palavra incesto é construída a partir do privativo in e cestus, o prefixo in-, que indica um não de negação, e cestus é uma deformação de castus, que significa casto e puro, assim, incestus tem a definição de não casto, a palavra é derivada do Latim incestum, que quer dizer “sacrilégio”.
A proibição do incesto constitui um tabu na maioria das comunidades humanas, em síntese a relação carnal entre parentes é avaliada como algo indigno e imoral e devida a essa consideração a legislação na maioria dos países proíbe as relações de incesto.
A abordagem do incesto aqui é com enfoque para os casos em que o incesto ocorre com menores de quatorze anos, escondendo-se no silêncio com que as pessoas ocultam o mal que alimentam em seus lares, por mais grotesco que possa parecer, ainda não existe unanimidade em relação ao repúdio à prática do incesto.
Esta violência passou a ser mais fortemente analisada a partir de 1970 quando o movimento feminista tornou públicos temas até então considerados tabu, tais como o estupro, espancamento de mulheres no lar e abuso sexual de crianças. Anteriormente a essa época, o estudo sobre esses assuntos quase não era feito:
[...] o estudo da sexualidade humana tinha se pautado dentro de uma perspectiva falocrata que contribuiu seja para negar, por exemplo, o incesto pai-filha, na esteira da perspectiva freudiana, seja para minimizar sua incidência e seu impacto sobre as vítimas, na dos estudos de Kinsey [...] E foi exatamente porque o sexo intergeracional familiar equivalia a um escândalo na estrutura patriarcal da família que – tanto no nível da consciência comum quanto no nível da consciência científica americana – ele foi cercado por uma eficiente conspiração de silêncio (RANGEL, 2001, p.44).
O incesto cometido com crianças é uma violência doméstica em que afeto e violência estão presentes no mesmo delito, o incesto não resulta apenas do ataque de um indivíduo pervertido a uma vítima qualquer. É a expressão de dinâmicas familiares complexas, diz Susan Buck Forward, em sua obra “A traição da inocência. O incesto e sua devastação”.
O incesto entre adultos não é considerado crime no Brasil, mas é considerado uma forma de abuso sexual infantil quando ocorre entre um adulto e uma pessoa abaixo da idade de consentimento. Nosso ordenamento jurídico apenas proíbe as uniões civis entre parentes próximos por sangue ou afinidade.
Já foi proposto um projeto de Lei 603/2021 que será analisado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania na Câmara dos Deputados para criminalizar a prática de incesto no Brasil, prevendo reclusão de um a cinco anos para quem mantiver relação sexual com pai ou mãe, filho ou filha, irmão ou irmã e ainda avô ou avó, seja parente consanguíneo ou por afinidade.
O incesto entre pai e filha foi durante muitos anos a forma mais comumente exposta e analisada, mas recentemente estatísticas apontam que o incesto do irmão mais velhos com irmãos mais novos tem sido a forma mais comum de incesto.
Nos tipos de incestos que ocorrem entre adultos com crianças, a descoberta acontece em geral pelo comparecimento da criança ao atendimento médico, momento em que se revela condições anatômicas desse relacionamento e que levam a gravíssimos ferimentos e até a mutilações.
No momento em que se identifica o incesto e se pretende intervir no sistema familiar, não basta apenas romper com uma corrente desses sistemas, é necessário desestruturar toda uma rede, cujos múltiplos nós sustentam os liames, porque sempre existirão pessoas dispostas a apoiar, ocultar e reforçar tais comportamentos incestuosos.
É a criança quem dá os primeiros sinais de alerta, com mudanças extremas de comportamento, medos, agressividade, gravidez precoce, baixo desempenho escolar, depressão e isolamento sem causa aparente, além de temor por certa pessoa ou medo de ser deixada sozinha, entre outras.
É necessário que se acredite na criança, não tratar como algo banal, visto que às mais novas, falta vocabulário para expressar o horror ao qual estão expostas, muitas das vezes quem o pratica podem ser aparentemente agradáveis, educados, com bom relacionamento interpessoal, o que torna a situação mais difícil de acreditar que pessoas assim possam praticá-lo.
“Quem viola uma criança, viola o seu próprio futuro” (apud AZEVEDO; GUERRA, 2005, p.206), a violência doméstica é um termo recorrente em nossa mídia, onde podemos verificar os mais diferentes sujeitos participantes dos mais variados atos de crueldade e desrespeito, principalmente em relação à mulher e a criança.
Os resultados nos mostram as deficiências que possuímos, tanto socialmente, quanto juridicamente, devido a não tipificação do incesto, sendo a prática contra ascendente, com prevalência de relações domésticas e contra a criança, apenas circunstâncias agravantes no momento de aplicação da pena.
Um avanço a ser observado é a admissibilidade dos filhos incestuosos, pois já possuem direitos específicos e presentes no ordenamento jurídico brasileiro com leis reguladoras que determinaram a não-discriminação dos filhos incestuosos e seus direitos ao registro civil de nascimento e a herança, além da Constituição Federal de 1988, podemos citar, a Lei de Registros Públicos n° 6.015/73, a Lei nº 8.560/92 e o Código Civil de 2002.
No Código Civil de 1916 não era admitido que o pai incestuoso registrasse a criança, fazendo com que levasse apenas o sobrenome de sua mãe. Porém, com a Constituição Federal de 1988 dispôs esse reconhecimento em seu art. 227, § 6º, concedendo aos filhos os mesmos direitos e qualificações, proibindo qualquer tipo de discriminação.
Esses filhos sofreram com a injusta limitação dos seus direitos, já que o seu genitor falseava desconhecer-lhes a existência.
Na atualidade, podemos averiguar que a visão sistêmica também é bastante útil, na compreensão do processo incestuoso, ela nos revela que os limites entre subsistemas são imprecisos, fronteiras ultra permeáveis roubam aos indivíduos a identidade e o sistema maior revela-se amorfo, indefinido quanto aos seus valores e objetivos, essa disfunção no núcleo familiar se expande, incorporando parentes próximos dentro de um complexo onde experimentam uma convivência de todo condenável.
Por fim, o destaque dado a este tipo de violência na família, o incesto contra criança ou adolescente, tem por fundamento o fato de se constituir no embrião da violência social de maneira geral. Enfatizando que na unidade familiar encontra-se o laboratório sórdido das perversidades.
A síntese desta visão psicossocial e jurídica do incesto como violência doméstica pode ser feita com uma única recomendação, em vez de se investir exaustivamente na investigação, em profundidade deste tipo de comportamento violento, busque-se estratégias para implantar comportamentos não violentos, para uma cultura de paz, estes deslocarão aqueles para que esquemas mentais sejam modificados para incluir os que conduzam ao comportamento pacífico.
Assim troca-se a violência pela violência pela bem mais cômoda e socialmente ajustada paz pela paz.
[1] Advogada, associada ao Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM. Especialista em Direito de Família e Sucessões pela Fundação Escola Superior do Ministério Público - FMP, Advogada de Práticas Colaborativas certificada pelo IBPC.
Referência Bibliográfica:
AZEVEDO, Maria Amélia; GUERRA, Viviane Nogueira de Azevedo. Infância e violência doméstica: fronteiras do conhecimento – 4 ed. São Paulo, Cortez, 2005.
BRASIL. DECRETO-LEI No 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940. Código Penal. Disponível: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acessado em: 14/02/2023.
BRASIL. LEI Nº 6.015, DE 31 DE DEZEMBRO DE 1973. Dispõe sobre os registros públicos, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6015compilada.htm .Acesso em 14/02/2023.
BRASIL. LEI N o 10.406, DE 10 DE JANEIRO DE 2002. Código Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm . Acesso em 14/02/2023.
BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm . Acesso em 14/02/2023.
CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei n° 603/21. Altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, para criminalizar a prática do incesto. Disponível em: https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2270923. Acesso em 14/02/2023.
FORWARD, Susan. BUCK, Craig. A traição da inocência. O incesto e sua devastação. São Paulo: Rocco, 1989.
RANGEL, Patrícia Calmon. Abuso sexual intrafamiliar recorrente. Curitiba: Juruá, 2001.
Os artigos assinados aqui publicados são inteiramente de responsabilidade de seus autores e não expressam posicionamento institucional do IBDFAM