Artigos
Maus e família - O peso imensurável da perda
Claudio Augusto Varela Ayres de Melo Filho
Advogado
Resumo: O objetivo do presente artigo é abordar a obra “Maus” do autor Art Spiecelman, no que tange ao corte das relações familiares por motivos abruptos, injustos e provocados por fatores que fogem ao controle do indivíduo.
Usando de analogia, será feita uma equiparação com as pessoas que tiveram seus laços cortados durante a pandemia do COVID-19, que de forma similar ao personagem principal, viram alguns membros ou talvez todos perderem sua vida para a COVID-19.
Através destes acontecimentos, com o uso da concepção de família, questionar, o que é família? Seus efeitos com a perda de um membro? Existem extensões para além do viés econômico? Por que respeitar a família alheia? Qual a importância do direito a família na busca da felicidade?
Palavras-chave: Maus. Direito. Família.COVID-19. Felicidade.
Abstract: The purpose of this article is to address the graphic novel “Maus” by the author Art Spiecelman, in terms of cutting family relationships for abrupt, unfair reasons and caused by factors beyond the individual's control.
Using an analogy, an equation will be made with people who had their ties cut during the COVID-19 pandemic, who, similarly to the main character, saw some members or perhaps all of then lose their lives to COVID-19.
Through these events, with the use of the concept of family, questioning, what is family? Its effects with the loss of a member? Are there extensions beyond the economic bias? Why respect other people's family? What is the importance of family rights in the pursuit of happiness?
Keywords: MAUS.Law. Family.COVID-19. Happiness.
Agradecimentos: Dedico este artigo a Willams Antônio dos Santos, não mais um número, mas uma vida ceifada pela COVID-19, mais um que não pôde se despedir, mas que deixa muitas saudades para aqueles que o conheceram. Ele que me ensinou que o mundo pode estar um caos, mas se estivermos só não vamos salvá-lo, ou como me dizia, “você não vai salvar o mundo das cáries”.
A pessoa que me ensinou que uma pode salvar a outra por simplesmente realizar o exercício de escutar e ter empatia. Habilidade que ainda estou em desenvolvimento.
Espero que minhas palavras causem o mesmo efeito ou minimamente um efeito similar que as suas me causavam. Que apesar de todos os males seja possível encontrar um equilíbrio entre o 8 e o 80, para se viver uma boa vida, vez que esta é estar em eterno conflito.
Ao meu primeiro grande fã, obrigado.
MAUS
Base deste artigo, a obra Maus de Art Spiecelman, conta a história e trajetória de seu pai Vladek Spiecelman durante a segunda guerra mundial.
Vladek é um Judeu Polonês, vendedor de tecidos que ao encontrar Anja, que se tornaria sua esposa e mãe de Richeu e Art, ascende economicamente e desfruta de certo conforto na sua vida até que ocorre a invasão da Alemanha nazista a Polônia.
Não procurando exaurir todo o conteúdo da obra, sugiro caro(a) leitor(a) a leitura dela, pois será trabalhado elementos específicos desta vasta obra.
Sendo assim é importante pontuar as perdas de Vladek e Anja do início ao final da guerra, eventos dos quais não possuíam nenhum controle.
As informações a seguir compõem as pessoas que foram assassinadas na segunda guerra mundial pelo regime nazista alemão de acordo com o apresentado em MAUS em ordem cronológica de apresentação:
Orbach – amigo do tio de Vladek – família de 4 pessoas – pág 65. – Mortos
Mãe de Vladdek – câncer – 1939 – pág.67- Falecida
Em certo momento há uma reunião em família na qual 12 pessoas se encontravam na casa do sogro: Vladek, Anja, Richeu, Tosha, Wolfe, Bibi, Avô e Avó de Anja, Sogro e sogra, Lolek e Lonia. – Pág 76 ( as grifadas em vermelho foram assassinadas pelo regime como será exposto a seguir)
Avós de Anja – 1942 – Gás – Pág. 89 – Mortos
Irmã de vladek, lena e seus quatro filhos, mais o pai de vladek. Pág. 93 – Mortos
Richeu, Tosha, Wolfe, Bibi e Lonia - 1943 – Pág. 111 - Mortos
Pais de Anja – 1943. -Pág. 117 - Mortos
Zosha e Yadja – irmãs de vladek + os filhos – irmãos de vladek Marcus, Moses e leon - Pág. 276 – total 7 pessoas Mortas
-Só Pinek irmão de Vladek fica vivo da família biológica inteira de Vladek
As informações acima sobre os assassinados foram trazidas para que você leitor(a) reflita e trabalhe sua empatia. Você consegue sequer imaginar a perda não só de uma pessoa, mas praticamente de todas as pessoas que você ama em um curto espaço de tempo e de forma injusta e cruel?
Depois de todas essas perdas, Vladek nunca mais foi o mesmo, sua experiencia lhe transformou por completo. O mesmo aconteceu com sua esposa Anja, que cometera suicídio. Vladek, somou mais um ente querido em suas perdas que com a morte de sua amada esposa totalizou a morte de 28 pessoas. Elas não são somente um número.
Vladek nunca superou a morte de Anja, pois não se supera uma perda deste tamanho, se anestesia a dor, que com o tempo, reduz os seus níveis de ocupação dando espaço para as lembranças boas que por vezes também são acompanhadas de enorme tristeza.
FAMÍLIA E SUAS EXTENSÕES
O conceito de família foge da simplicidade da união entre um homem e uma mulher na formação do matrimônio. Após o julgamento da ADPF 132 RJ e da ADI 4.277 em 2011, os quais pautavam a possibilidade do casamento/união homoafetiva na sociedade brasileira, o Supremo Tribunal Federal, veio a interpretar o artigo 226 da Constituição Federal de 1988 como um rol meramente exemplificativo no que tange as famílias ali demonstradas.
Neste sentido, a partir daquele momento, legalmente, a formação das famílias não mais são subordinadas ao matrimônio, união de um homem e uma mulher e a convivência do ascendente com seu descendente. Vindo a abrir espaço para novos núcleos familiares, a partir do afeto, como destaca Maria Berenice Dias, “Direito das Famílias, cujo elemento estruturante é o elo afetivo que funde almas e confunde patrimônios, fazendo gerar responsabilidades e comprometimentos mútuos.”
Em razão desse marco, houve um incremento em uma das funções, talvez já esquecidas por alguns, mas buscada por tantos outros que é a busca da felicidade. Uma vez que, tendo como base o afeto, os indivíduos dentro de suas singularidades e busca pela felicidade formaram diversos núcleos familiares a exemplo, família homoafetiva, família anaparental(formada por irmãos), família coparental(formada por aqueles que desejam criar um indivíduo conjuntamente), família de multiespécie(aquela formada pelo vinculo afetivo com o animal de estimação), dentre outras.
Vale ressaltar que afeto não é equivalente a relações sexuais, a exemplo, as três últimas famílias acima expostas, quais sejam, a anaparental, coparental e multiespécie, os indivíduos não se relacionam de forma sexual, mas tem como base o laço afetivo fomentado entre os indivíduos do núcleo familiar.
Sendo assim, a família formada pelo afeto, possibilita ao indivíduo a busca da felicidade, para além da patrimonial. Formando assim núcleos, nos quais os participantes permanecem unidos através da afetividade e o respeito.
FAMÍLIA CERTA - FAMÍLIA ERRADA
A família de vladek foi destruída, não com a perda de um ente querido, mas de praticamente todos. Para os leitores que acreditam que a situação de Vladek foi singular em decorrência de um evento histórico, que foi a segunda guerra mundial e a perseguição dos nazistas aos judeus, ciganos, negros e homoafetivos. É importante destacar a fala do presidente do IBDFAM em 2019 no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26 e do Mandado de Injunção (MI) 4733, que equiparou a homofobia ao crime de racismo, este que possui severas penas, além de ser imprescritível. A fala, apesar de sucinta, traz, a meu ver um ponto crucial de reflexão que possibilita a criação de certa empatia.
O Excelentíssimo presidente diz: “... e qual é a conexão do direito de família com esse mandado de injunção, é que ele significa também a proteção às famílias porque todos os dias morre membro de uma família assassinado, por homofobia, transfobia, essa é a conexão...”[1]
Caro leitor, peço que analise e reflita sobre esta colocação acima demonstrada.
Quando uma pessoa LGBT+ é assassinada, ou no caso do brasil, assassinada de forma barbara e cruel na maioria das vezes, uma família é destruída. Se perdeu um pai, uma mãe, um filho(a)(e), um avô, uma avó, um tio(a), um primo(e), um(a) amigo(a), uma pessoa a qual afeto era nutrido e nutria afeto, mas que teve o laço destruído de forma abrupta.
Ressalto esta parte pois, devido a nossa construção histórica e social, tendemos a priorizar a perda, em grande parte, das famílias heteroafetivas. Esta minha afirmação pode ser colocada ao se “cutucar o imaginário popular”, o que se pensa quando se diz, pai de família ou mãe de família? O primeiro pensamento certamente será o da família heteroafetiva, não vindo algumas pessoas a sequer lembrar que existem famílias homoafetivas e que estas devem ser protegidas.
Famílias judias, de ciganos, de negros e do povo LGBT+, foram alvos de perseguição e destruição na segunda guerra mundial, como já dito. A perda de um ente querido significa a destruição dessa família. Apesar do antissemitismo ter diminuído seu alcance, este ainda existe, e apesar de tudo, há ainda aqueles que diminuem os acontecimentos genocidas da segunda guerra, que tanto impactou o mundo.
Como demonstrado, a população LGBT+ continuou sendo perseguida pós-guerra, seu estilo de vida e busca pela felicidade continuou a ser visto como prejudicial à sociedade. Mas e a população negra e cigana?
No Brasil, maior parte da população é composta por pessoas negras e pardas, nas quais estas ocupam a base da pirâmide econômica e social.
Em 2020 o mundo foi pego de surpresa pela COVID-19, e apesar do Brasil visualizar os erros das outras nações frente ao enfrentamento desta doença, nada fez, e pior, se analisarmos sucintamente os atos do governo federal brasileiro neste período, podemos concluir que contribuiu com a proliferação da doença.
No dia de publicação deste artigo, apesar de haver falha na contagem para menos, já morreram 693.981 mil (seiscentos e noventa e três mil novecentos e oitenta e uma pessoas)[2] no Brasil.
Para aqueles que acompanharam a copa do mundo de 2022 no Catar, o estádio de futebol Lusail tem a capacidade máxima de 88.966 mil (oitenta e oito mil novecentos e sessenta e seis pessoas)[3], ao colocarmos os assassinados pela COVID-19 temos 7,8 estádios Lusail lotados.
Esses dados são utilizados desta forma para que tenhamos uma noção de visualização.
Cada pessoa ceifada pela COVID-19 foi equivalente a uma ou mais famílias destruídas ou desestruturadas pela perda de um ente, o qual nem puderem se despedir propriamente com um sepultamento. Corte abrupto dos laços afetivos.
Segundo a Fiocruz, em um texto disponibilizado na internet, além de um podcast, no primeiro ano de pandemia, 55% das pessoas negras contaminadas pela COVID-19 vieram a óbito, enquanto a proporção das pessoas brancas foi de 38%.[4] É imperioso destacar o seguinte trecho do texto:
Nas palavras de Márcia Pereira Alves dos Santos, integrante do Grupo de Trabalho (GT) Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e docente colaboradora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), “embora muita gente acredite que todos nós somos iguais, essa assertiva é injusta e não verdadeira. Nós somos diferentes”. Quando se olha para os dados, afirma Santos, “é fácil reconhecer que determinados grupos são afetados de forma desigual”.
“Na prática, isso quer dizer que, para determinados grupos, as condições de vida afetam de forma a torná-los mais expostos ao adoecimento e à morte. No cenário brasileiro, este grupo com maior risco de adoecer e morrer é representado, considerando a covid, pela população negra”.
O racismo, foi fator preponderante para a morte de tantas pessoas no cenário de pandemia no Brasil. A ausência de atos para a proteção destas famílias pelo Governo Federal, expõe o conceito de família certa e família errada para esses governantes, os quais ressaltaram e lembraram que há mais de uma forma de perseguir e matar determinados grupos de pessoas.
MUITA DOR PARA UMA PESSOA SÓ
Assim como Vladek, muitas pessoas viram seus entes familiares sendo ceifados, sem terem a possibilidade de intervir neste destino ou até mesmo de se despedir.
Como já abordado, a perda de um membro familiar causa a destruição ou desestruturação da família. Agora imaginemos a perda de mais de uma pessoa ou talvez praticamente todas do seu convívio. Infelizmente basta uma pesquisa para encontrar é pessoas que sofreram e sofrem com esse mal, pessoas que ficaram sozinhas no mundo depois da covid.
Na reportagem do Metrópoles, disponível em https://www.metropoles.com/materias-especiais/familias-destruidas-pela-covid-saudade-e-uma-doenca-que-nao-tem-cura , abordam diversas dessas pessoas, a qual trago destaque para a seguinte:
Em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, a assistente social Thamires da Silva Netto, 29 anos, perdeu seis familiares em 2020. Em abril, o coronavírus levou a sua avó; a partir de outubro, veio outro baque: mãe, irmã e três tios faleceram em decorrência da Covid-19. Ela morava no mesmo quintal dos parentes que partiram. “Saudade é uma doença que não tem cura”, afirmou.
Não podemos sentir a dor do outro, mas podemos através da empatia imaginá-la. Certas dores podemos tentar mensurar, outras é impossível imaginar, como a de Vladek e a de Thamires.
CONCLUSÃO
O objetivo destas informações acima trazidas não é apontar culpados, pois todos somos. Nós fomos culpados quando os nazistas causaram o genocídio, nós somos culpados quando não aceitamos e repreendemos o estilo de vida e busca pela felicidade de outras famílias como as do grupo LGBT+, o que possibilita outro ser, de concepção mais extrema cometa assassinatos deste grupo, somos culpados quando vemos o número de mortes, que ultrapassa meio milhão de uma doença que tem 3% de chance de ter resultados fatais, e só enxergamos o número e não as pessoas e famílias extintas, privadas de sua busca pela felicidade.
É importante ressaltar que não está se diminuindo as outras famílias que foram destruídas, mas jogando luz sobre fatos que aparentam demonstrar certa seleção.
A vida pode ser extensa, mas como demonstrado ela pode ser ceifada em questão de instantes. E apesar de sua possibilidade de extensão, a vida é curta demais para causar dor a outros, e especialmente a aqueles que buscam a felicidade através de laços afetivos.
Provoco-o(a) agora caro(a) leitor(a), qual o valor de uma família? Apenas econômico, como o código civil, a lei que rege a vida civil dos brasileiros estabelece em grande parte? É a relação de parentesco entre pessoas? Ou é a junção de pessoas que buscam com os mesmos interesses, respeito mútuo e afeto a busca da felicidade em suas vidas? Qual seu poder para fomentar ou mudar o código? Qual seu poder para amenizar a dor do outro ou contribuir com a felicidade do próximo?
REFERÊNCIAS
ADO 26, Relator(a): CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 13/06/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-243 DIVULG 05-10-2020 PUBLIC 06-10-2020
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Copa do Mundo do Catar já tem mais de 2,2 milhões de pessoas nos estádios. Disponível em: <https://ge.globo.com/espiao-estatistico/noticia/2022/12/01/copa-do-mundo-do-catar-ja-tem-mais-de-22-milhoes-de-pessoas-nos-estadios-veja-os-maiores-publicos.ghtml> Acessado em 04 de janeiro de2023
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito Das Famílias. 13. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2020.
Família destruídas pela Covid. Disponível em: <https://www.metropoles.com/materias-especiais/familias-destruidas-pela-covid-saudade-e-uma-doenca-que-nao-tem-cura> Acessado em 4 de janeiro de 2023
Negros são os que mais morrem por covid-19 e os que menos recebem vacinas no Brasil. Disponível em:<https://www.epsjv.fiocruz.br/podcast/negros-sao-os-que-mais-morrem-por-covid-19-e-os-que-menos-recebem-vacinas-no-brasil> Acessado em 04 de janeiro de 2023
Pleno - Iniciado julgamento sobre criminalização da homofobia. Disponível em:<https://www.youtube.com/watch?v=EmDZ_-lueJs&t=10066s> Acessado em 4 de janeiro de 2023
Painel Coronavírus. Disponível em: <https://covid.saude.gov.br/> Acessado em 04 de janeiro de 2023
SPIEGELMAN, Art. MAUS. 1. ed. São Paulo: Editora Quadrinhos na Cia, 2005.
[1] https://www.youtube.com/watch?v=EmDZ_-lueJs&t=10066s Acessado em 04/01/2023 – a fala se encontra a partir de 2H e 46min do vídeo.
[2] https://covid.saude.gov.br/ acessado em 04/01/2023
Os artigos assinados aqui publicados são inteiramente de responsabilidade de seus autores e não expressam posicionamento institucional do IBDFAM