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Crianças protegidas em entrega responsável para a adoção
Jones Figueirêdo Alves
Resolução do Conselho Nacional de Justiça - CNJ, definida em sessão virtual (117ª) do colegiado, em face do Pedido de Providencias n. 0006474-79.2021.2.00.0000, tratou de dispor sobre o adequado atendimento de gestante ou parturiente que manifeste desejo de entregar o filho para adoção. A Resolução nº 485/2023, publicada quinta-feira última (DJe/CNJ nº 13/2023, de 26.01.2023, p. 2-5) implementa maior funcionalidade à entrega responsável e melhor atende aos normativos existentes (01).
Assinale-se, antes de mais, que a experiencia do projeto Entrega Responsável Judicial para Adoção (ERPA), registra o pioneirismo do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) com o Programa Mãe Legal (2009), desenvolvido na Comarca do Recife e o Programa Acolher (2011), em todas as demais Comarcas do Estado. Pelas iniciativas exitosas, o TJPE recebeu o prêmio Prioridade Absoluta, do CNJ, em 31 de agosto do ano passado (02)
A Lei n. 13.257/2016, que instituiu o Marco Legal de Primeira Infância (03), em seu artigo 23, ofereceu nova redação ao parágrafo 1º do art. 13 do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), acrescentando a cláusula “sem constrangimento”, ao dispor que que as gestantes ou mãe, que manifestem interesse em entregar seus filhos para a adoção, serão obrigatoriamente encaminhadas, sem constrangimento, à Justiça da Infância e da Juventude. Desde a Lei n° 12.010, de 03.08.2009, que esse dispositivo vigora no ECA, quando conferiu ao seu art. 13 o referido parágrafo, então § único e sem a referida cláusula.
Em seu voto, o conselheiro Richard Pae Kim expressou que a Resolução será um modelo para os casos de entrega protegida, com as diretivas para fortalecer a cultura da adoção legal.
De fato. Uma rede de proteção da mulher que não deseja maternar já é prevista pelo Marco Legal por inferência lógica das redes de proteção e cuidado à criança nas comunidades (art. 13 § 1º), “evitando-se situações extremas como abandono de crianças com risco de morte, abortos clandestinos e até mesmo entregas ilegais para adoção”.
Anote-se, ademais, que a Lei n. 13.509, de 212.11.2017, a denominada Lei de Adoção, introduziu o art. 19-A, e seus dez parágrafos, no Estatuto da Criança e do Adolescente, nestes termos:
Art. 19-A. A gestante ou mãe que manifeste interesse em entregar seu filho para adoção, antes ou logo após o nascimento, será encaminhada à Justiça da Infância e da Juventude.
§ 1º A gestante ou mãe será ouvida pela equipe interprofissional da Justiça da Infância e da Juventude, que apresentará relatório à autoridade judiciária, considerando inclusive os eventuais efeitos do estado gestacional e puerperal.
§ 2o De posse do relatório, a autoridade judiciária poderá determinar o encaminhamento da gestante ou mãe, mediante sua expressa concordância, à rede pública de saúde e assistência social para atendimento especializado.
§ 3º A busca à família extensa, conforme definida nos termos do parágrafo único do art. 25 desta Lei, respeitará o prazo máximo de 90 (noventa) dias, prorrogável por igual período
§ 4º Na hipótese de não haver a indicação do genitor e de não existir outro representante da família extensa apto a receber a guarda, a autoridade judiciária competente deverá decretar a extinção do poder familiar e determinar a colocação da criança sob a guarda provisória de quem estiver habilitado a adotá-la ou de entidade que desenvolva programa de acolhimento familiar ou institucional.
§ 5o Após o nascimento da criança, a vontade da mãe ou de ambos os genitores, se houver pai registral ou pai indicado, deve ser manifestada na audiência a que se refere o § 1 o do art. 166 desta Lei, garantido o sigilo sobre a entrega.
§ 6º Na hipótese de não comparecerem à audiência nem o genitor nem representante da família extensa para confirmar a intenção de exercer o poder familiar ou a guarda, a autoridade judiciária suspenderá o poder familiar da mãe, e a criança será colocada sob a guarda provisória de quem esteja habilitado a adotá-la.
§ 7º Os detentores da guarda possuem o prazo de 15 (quinze) dias para propor a ação de adoção, contado do dia seguinte à data do término do estágio de convivência.
§ 8º Na hipótese de desistência pelos genitores - manifestada em audiência ou perante a equipe interprofissional - da entrega da criança após o nascimento, a criança será mantida com os genitores, e será determinado pela Justiça da Infância e da Juventude o acompanhamento familiar pelo prazo de 180 (cento e oitenta) dias.
§ 9º É garantido à mãe o direito ao sigilo sobre o nascimento, respeitado o disposto no art. 48 desta Lei.
§ 10. Serão cadastrados para adoção recém-nascidos e crianças acolhidas não procuradas por suas famílias no prazo de 30 (trinta) dias, contado a partir do dia do acolhimento.
É o que a recente Resolução n. 485/2023-CNJ disso cuida. E cuida, com maior pertinência e operacionalidade (08), a tanto que:
(i) determina que os Tribunais de Justiça estaduais instituam, no prazo de 180 dias, programas e atos normativos para disciplinar, na perspectiva intersetorial e jurisdicional, o atendimento da gestante ou parturiente que manifestar interesse em entregar seu filho para adoção.
(ii) prevê a participação de magistrados e servidores na concretização de programas e fluxos de atendimento, orientação e formação de profissionais no atendimento às mães e famílias que declarem a intenção de entrega de filhos para adoção.
(iii) estabelece capacitações a magistrados e profissionais das Varas de Infância e Juventude sobre a questão da entrega legal para adoção.
Pioneirismo. Como antes referido, o Tribunal de Justiça apresentou-se pioneiro, quando há treze anos atrás, instituiu em 2009, o programa Mãe Legal, na 2ª Vara da Infância e Juventude do Recife, idealizado pelo juiz de direito Élio Braz, geratriz do Projeto Acolher. A esse respeito, em obra inédita publicada pelo TJPE, “Acolhendo Mulheres: a entrega de crianças para adoção em Pernambuco” (04) a experiencia pioneira é bem referida pelos seus coautores, em uma doutrina aguda e pertinente apresentada.
Narra o desembargador Luiz Carlos de Barros Figueirêdo, presidente atual do TJPE, que o Programa Acolher, gerido de forma interinstitucional, concilia “a difícil e delicada tarefa de oportunizar o protagonismo da mulher quando, consciente, decide que não deseja exercer, naquele momento, a maternidade: aliando a prioridade absoluta constitucional do melhor interesse da criança, que precisará ter garantido seu inalienável direito de crescer em uma família sadia e que, sobretudo, a deseje.”
Não há negar tratar-se o programa pioneiro de uma importante ferramenta social, propulsora da cultura da adoção, ao tempo que cria “espaços dialógicos para que mulheres, famílias e comunidades sejam ouvidas em suas necessidades e para que os encaminhamentos sejam respeitosos cm todos os envolvidos.”
O não-maternar. O tema da não-maternidade por opção, quando a maternidade é negada por mulheres que engravidando optam por não criarem os seus filhos, tem suscitado intensa reflexão doutrinária por se constituir um tema-tabu, pouco discutido, como a desafiar a autonomia da vontade da mulher, colocada como mulher frente à maternidade.
Em sua obra “Mães arrependidas: Uma outra visão da maternidade” (2017) (05), a socióloga israelense Orna Donath, apresenta sua tese de que a pressão social sobre a maternidade é enorme, como se as mulheres não fossem livres para decidir se querem ou não ter filhos. Ela entrevistou inúmeras mulheres, inclusive algumas já avós que, arrependidas, lamentaram a maternidade indesejada.
No ponto, cumpre referir a necessidade do apoio psicossocial e socioassistencial à manifestação da vontade da pessoa gestante ou parturiente para uma tomada de decisão apoiada, amadurecida e consciente (artigo 4º, e incisos, da Resolução n. 485/23-CNJ)
O estudo de Donath tratando sobre a frustração em face das expectativas da maternidade, vincula-se a um importante estudo que descortinou o mito da maternidade por instinto natural. A historiadora e filósofa francesa Elisabeth Badinter em sua obra “Um Amor conquistado: o mito do amor materno” (1985), concluiu que o amor materno não constitui um sentimento inerente a? condição de mulher, ele não e? um determinismo, mas algo que se adquire” (06).
Retomando o tema, em nova obra “O Conflito: a mulher e a mãe”, Badinter refletiu, então sobre as causas e os efeitos da queda acentuada nas taxas de natalidade, o aumento de mulheres que não querem ter filhos e, sobretudo, o renascimento do discurso naturalista para a reconquista da mulher ao seu papel de mãe, quando tem sido postergada bastante a maternidade (07). Segundo o LÉxpress ela “denuncia a tirania da maternidade que está mandando as mulheres de volta para casa”
Diz-nos Badinter tratar-se de uma tradição ancestral, a mulher antes da mãe, embora o fato de três países terem supervalorizado, em comum, o papel maternal, “a ponto de nele absorver toda a identidade feminina”. E acrescenta: “A mutter alemã, a mamma italiana e a kenbo japonesa oferecem uma imagem mítica da mãe, ao mesmo tempo sacrificial e todo-poderosa”. Diversamente da maman francesa e da mummy inglesa, com mais independência financeira e vida profissional (pp.165-166).
A seu turno, Vera Iaconelli, em “Mal-Estar na Maternidade - do Infanticídio à Função Materna” (2020), cuida de discutir as atuais condições para a construção da função materna como uma construção psicossocial, “atravessada pela lógica dessubjetivante da contemporaneidade”.
Realmente. A maternidade foi (re)inventada em 1762. A sua formulação, na concepção atual, foi feita por Jean-Jacques Rousseau, na obra "Emílio ou Da Educação", publicada naquele ano. Ele repudiou a instituição dominante das amas-de-leite, encorajando as mulheres a assumirem, em definitivo, a maternidade.
Foi a revolução do sentimento, no alvorecer do Iluminismo, escola filosófica articuladora do amor romântico. Desse movimento, o amor tornou-se a razão principal para o casamento e para o filho ser considerado o fruto ou um dom desse amor, introduzindo a ideia do amor materno – afirmou Badinter.
Antes, a infância era um relato de maus-tratos e de abandono afetivo, e nesse contexto de época, indiferentes as mães ao seu vínculo, a maternidade nada significava senão a mera capacidade de procriação, não dispondo de deveres ou direitos. Com as ideias de Rosseau e do Iluminismo, construiu-se a família nuclear, formada pelos pais e os filhos, onde a mãe tornou-se responsável pela criação da prole, realizando-se, como mulher, nas tarefas da maternidade e da esfera doméstica. Surge o ideal materno vitoriano: "a boa mulher em casa com seus filhos, seu piano e seus princípios".
Em Mãe de Todos os Mitos, a jurista Aminata Forna, explica que o estilo de maternidade, que herdamos com raízes na família nuclear, tem origem na reação ao abandono da infância, quando as crianças eram colocadas nas rodas dos orfanatos (roda de expostos) e em um novo papel social da mulher, até então considerada inferior para a assunção de responsabilidades.
De fato, ela começou no final do século XVIII, vindo a celebração da maternidade influir na proteção da mulher e da criança, assegurando-lhe os seus valores sociais. Não é demais lembrar que o "matrimônio" canônico, em seu caráter sagrado e sacramental, significa, etimologicamente, a proteção da mãe e da prole. De efeito, Yvone Kniebiehler e Catherine Fouquet apontam que a exaltação do amor materno é fato recente na civilização ocidental. (08)
As mais recentes leis sobre infância e adoção e a Resolução n. 485/2023-CNJ cuidam de proteger a criança, em seus direitos fundamentais para a adoção e a convivência familiar, evitando a grave consequência de o filho indesejado tornar-se colocado em abandono.
As duas questões temáticas do abandono e da entrega são de importância existencial no trato do direito de família, a exigir uma doutrina mais aprofundada.
A doutrina familista portuguesa tem incursionado no tema da maternidade ou da paternidade indesejadas, bastando referir a interessante obra de Jorge Martins Ribeiro “O Direito do Homem a rejeitar a paternidade de filho nascido contra a sua vontade. A igualdade na decisão de procriar.” (Almedina, 2013). Diante do denominado feminismo liberal, ele empreende defesa da autodeterminação procriacional, positiva ou negativa, por parte do homem, quando em confronto com a vontade da mulher por seus direitos reprodutivos.
Bem por isso, importa observar a latitude do art. 12 da Resolução 485/2023, a dizer que a entrega dispensa a deflagração de procedimento oficioso de averiguação de paternidade (art. 2º da Lei n. 8.560/1992).
Chama-se a atenção de o pai indicado ter o direito iniludível de garantir a sua paternidade sobre a entrega do filho, colocando-se, assim, em fundada crítica, o sigilo quanto ao nascimento (art. 4º, VI, da Resolução 485/2023). Direito à sua autoderminação procracional positiva, porquanto o sigilo implicaria em nociva paternidade sonegada, por parte da gestante.
A Resolução n. 485 oferece respostas adequadas, para a concretude da entrega responsável, sem poder afastar, todavia, a identificação do pai, o que evitaria a própria adoção.
A criança será, sempre, freudianamente, o pai do homem. Protegida, fará o homem melhor.
Referências:
- CNJ. Resolução n. 485/2023. Web:
https://atos.cnj.jus.br/files/original1451502023012663d29386eee18.pdf
TJPE/ASCOM. Ivone veloso e Micarla Xavier. CNJ uniformiza procedimento para entrega protegida de bebês para adoção - TJPE é pioneiro com o desenvolvimento de projetos na área. Web: https://www.tjpe.jus.br/comunicacao/noticias//asset_publisher/ubhL04hQXv5n/content/cnj-uniformiza-procedimento-para-entrega-protegida-de-bebes-para adocao-tjpe-e-pioneiro-com-o-desenvolvimento-de-projetos-na-area?
(03) MARCO LEGAL DA PRIMEIRA INFÂNCIA. Lei n. 13.257, de 08.03.2016. Web: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13257.htm
()4) TJPE. “Acolhendo Mulheres: a entrega de crianças para adoção em Pernambuco”. Luiz Carlos de Barros Figueirêdo, Cynthia Mauricio Nery e Paulo André Sousa Teixeira (Org.), 2021, 2ª ed., 240 p.,
(05) DONATH, Orna. “Mães arrependidas: Uma outra visão da maternidade”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.
(06) BADINTER, Elisabeth. O Amor conquistado: O mito do amor materno. São Paulo: Ed. Nova Fronteira, 1985.
(07) BADINTER, Elisabeth. O Conflito: a mulher e a mãe. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2011.
(08) KNIBIEHLER, Yvonne. FOUQUET, Catherine. L'Histoire des mères du Moyen-Âge à nos jours”, Paris, Éd. Montalba, 1980
(09) Web: https://www.cnj.jus.br/cnj-uniformiza-procedimento-para-entrega-protegida-de-bebes-para-adocao/
Jones Figueirêdo Alves é desembargador emérito do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito de Lisboa. Integra a Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont).
Fonte: Consultor Jurídico, 29.01.2023
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