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(In)constitucionalidade do artigo 1.641, II, do Código Civil. Repercussão Geral acerca do Tema 1236 do STF: A separação obrigatória de bens seria um ato atentatório à dignidade humana?
Amanda de Paula Chaves[1]
No dia 29 de setembro de 2022 o Supremo Tribunal Federal reconheceu a existência de Repercussão Geral acerca do Tema 1236 em que se discute, à luz dos artigos 1º, III, 30, IV, 50, I, X, LIV, 226, § 3º e 230 da Constituição Federal, a (in)constitucionalidade do artigo 1.641, II, do Código Civil, que estabelece ser obrigatório o regime da separação de bens no casamento da pessoa maior de 70 (setenta) anos, e a aplicação dessa regra às uniões estáveis, considerando para tanto o respeito à autonomia e à dignidade humana, a vedação à discriminação contra idosos e a proteção às uniões estáveis.
A análise inicial sobre essa matéria merece ser conduzida pelo Enunciado 125 firmado na Primeira Jornada de Direito Civil, o qual reputa pela inconstitucionalidade do inciso II, do artigo 1641, do Código Civil:
A norma que torna obrigatório o regime da separação absoluta de bens em razão da idade dos nubentes (qualquer que seja ela) é manifestamente inconstitucional, malferindo o princípio da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República, inscrito no pórtico da Carta Magna (art. 1º, inc. III, da CF). Isso porque introduz um preconceito quanto às pessoas idosas que, somente pelo fato de ultrapassarem determinado patamar etário, passam a gozar da presunção absoluta de incapacidade para alguns atos, como contrair matrimônio pelo regime de bens que melhor consultar seus interesses.
Verifica-se, a partir disso, que a imposição da idade como quesito decisivo de incapacidade é cabalmente inadmissível em um Estado Democrático de Direito, pois não encontra nenhum escudo legal para distinguir – ou discriminar – as escolhas patrimoniais e matrimoniais das pessoas maiores de 70 (setenta) anos de idade.
A restrição fixada pelo inciso II do artigo 1.641 do Código Civil fere indiscutivelmente os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade, previstos em norma constitucional, introduzindo um preconceito quanto às pessoas idosas que, somente pelo fato de ultrapassarem determinado patamar etário, passam a gozar da presunção absoluta de incapacidade para alguns atos.
Nesse sentido, FLAVIO TARTUCE aponta a incompatibilidade do referido artigo com a Lei Maior[2]:
(...) Sobre a afirmação de inconstitucionalidade do inc. II do art. 1.641, de fato, há posicionamento convincente na doutrina segundo o qual essa previsão é inconstitucional. A essa conclusão chegaram os juristas que participaram da I Jornada de Direito Civil, conforme o Enunciado n. 125 do Conselho da Justiça Federal, que propõe a revogação da norma. Foram suas justificativas, com as quais se concorda integralmente: “A norma que torna obrigatório o regime o regime da separação absoluta de bens em razão da idade dos nubentes (qualquer que seja ela) é manifestamente inconstitucional, malferindo o princípio da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República, inscrito no pórtico político da Carta Magna (art. 1 , inc. III, da CF). Isso porque introduz um preconceito quanto às pessoas idosas que, somente pelo fato de ultrapassarem determinado patamar etário, passam a gozar de presunção absoluta de incapacidade para alguns atos, como contrair matrimônio pelo regime de bens que melhor consultar seus interesses”. (...) A justificativa de proteção patrimonial dos herdeiros também não é plausível. Ora, se esses querem juntar um bom patrimônio, que o façam diante do seu trabalho, pois herdeiro não é profissão. (...)
Observa-se que a matéria de direito exposta apresenta questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social e jurídico, ultrapassando os interesses subjetivos, razão pela qual o STF reconheceu a Repercussão Geral do tema, nos termos do artigo 1.035, § 1º do Código de Processo Civil[3].
Diante disso, cabe salientar que o STF poderá declarar a (in)constitucionalidade do artigo 1.641, II, do Código Civil por meio incidental e concreto e, a partir disso, produzir efeitos erga omnes, ou seja, vincular todos os indivíduos e Tribunais do território nacional à um padrão decisório a partir do qual serão deliberados os demais casos em que se tenha suscitado a mesma questão de direito.
No que concerne ao controle de constitucionalidade, Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco prelecionam que o entendimento do STF deverá ser aplicado à todos os casos que ainda não houverem transitado em julgado, ou seja, em regra, sua aplicação produzirá efeito ex tunc.
Se ao Supremo Tribunal Federal compete, precipuamente, a guarda da Constituição Federal, é certo que a interpretação do texto constitucional por ele fixada deve ser acompanhada pelos Tribunais e Turmas dos Juizados Especiais, em decorrência do efeito definitivo outorgado à sua decisão. Pouco importa que a decisão do Tribunal de origem tenha sido proferida antes daquela do Supremo Tribunal Federal no leading case, pois, inexistindo o trânsito em julgado e estando a controvérsia constitucional submetida à análise deste Tribunal, não há qualquer óbice para aplicação do entendimento fixado pelo órgão responsável pela guarda da Constituição Federal.[4]
A consequência legal imediata do reconhecimento dessa inconstitucionalidade no caso da união estável será a alteração do regime de separação obrigatória para o regime de comunhão parcial, tendo em vista que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Tema 809 – Repercussão Geral, declarou a inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil e equiparou a união estável ao casamento, nos seguintes termos: “É inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/2002”.
Segundo Giselda Hironaka, citada por Carlos Roberto Gonçalves[5], o regime de comunhão parcial de bens observa regras sucessórias diferentes para os bens particulares e os bens comuns. Confira-se:
No regime de comunhão parcial de bens, portanto, os que compõem o patrimônio comum do casal são divididos, não em decorrência da sucessão, mas tão só em virtude da dissolução da sociedade conjugal, operando-se, por via de consequência, a divisão dos bens, separando-se as meações que tocavam a cada um dos membros do casal; já os bens particulares e exclusivos do autor da herança, relativamente aos quais o cônjuge sobrevivente não tem direito à meação, serão partilhados entre ele, sobrevivo, e os descendentes do autor da herança, por motivo da sucessão causa mortis.(apud GONÇALVES, 2022, p. 178)
Dessa forma, a alteração do regime de separação obrigatória para o regime de comunhão parcial assegurará ao companheiro sobrevivente o direito à meação sobre os bens comuns, pois haverá a presunção absoluta de colaboração conjunta pela aquisição onerosa de bens. De modo que, todos os bens adquiridos durante a união estável serão reconhecidos como frutos de ajuda mútua e, por consequência, o companheiro sobrevivente gozará de 50% (cinquenta por cento) de todo o patrimônio comum a título de meação
Ademais, o regime de comunhão parcial de bens assegurará ao companheiro sobrevivente o direito à concorrência sobre os bens particulares, desse modo, além da meação, também receberá uma quota parte referente aos bens particulares do de cujus.
Depreende-se, portanto, caso seja reconhecida a inconstitucionalidade do artigo 1.641, II, do Código Civil, haverá a preservação do direito de meação do companheiro sobrevivente sobre os bens adquiridos na constância da união estável, bem como a herança, em concorrência com os descendentes, dos bens particulares do de cujus por motivo da sucessão causa mortis.
Conquanto o STF declare a inconstitucionalidade desse dispositivo legal, poderá, diante da repercussão e da insegurança jurídica, modular os efeitos da decisão para afastar a sua aplicação nos casos em que houver coisa julgada, por isso, é imprescindível que se aplique o artigo 1.035, §5º do Código de Processo Civil, a fim suspender o julgamento de todos os processos pendentes que versem sobre essa questão até que seja apurada a compatibilidade entre a lei e a Constituição Federal.
Por outro lado, ainda que não seja reconhecida a inconstitucionalidade do artigo 1.641, II, do Código Civil, é imperioso apurar a possível aplicação da Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal, segundo a qual “No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento”, no intuito de reconhecer ao menos que o companheiro sobrevivente tenha direito a partilhar os aquestos, ou seja, tenha direito à metade dos bens adquiridos onerosamente na constância da união estável, desde que, comprovado o esforço comum das partes.
A discussão sobre esse tema suscita a reflexão sobre o limite da proteção jurídico-social assegurada ao idoso pela legislação, pois evidencia a importância da autonomia, inclusive, no âmbito patrimonial, para a construção de uma vida plena, por meio da qual será assegurado a efetivação do direito à liberdade e à dignidade da pessoa idosa, sem qualquer discriminação ou presunção de incapacidade.
[1] Advogada associada ao Gonçalves, Macedo, Paiva e Rassi Advogados. Pós-graduanda em Direito de Família e Sucessões pela Fundação Escola Superior do Ministério Público. Membro da Comissão de Direito das Famílias da Seccional de Goiânia, Goiás. Membro da Comissão de Direito das Sucessões da Seccional de Goiânia, Goiás.
[2] FLÁVIO TARTUCE e outros. Código Civil Comentado – Doutrina e Jurisprudência. Forense, 4ª ed., 2022, pág. 1.426.
[3] § 1º Para efeito de repercussão geral, será considerada a existência ou não de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassem os interesses subjetivos do processo.
[4] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. – 13. Ed. rev. E atual. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018.
[5] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro – Direito das Sucessões. V. 7. 16. Ed. São Paulo: Saraiva, 2022.
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