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Alienação parental, o teor inconstitucional e antiético da Nota Técnica nº 4-2022 -GTEC-CD, expedida pelo Conselho Federal de Psicologia
Por Fernando Salzer[1]
No ordenamento jurídico nacional, alienação parental é reconhecida como abuso de direito e/ou violência psicológica, respectivamente, pelas Lei Federais 12.318/2010 e 13.431/2017.
Recentemente, a Lei Federal 14.344/2022, apelidada de Lei Henry Borel, em seu artigo 3º, declarou que a violência doméstica e familiar contra a criança e o adolescente constitui uma das formas de violação dos direitos humanos.
A Constituição Federal vigente, na parte final do caput de seu artigo 227, determina que é dever da família, da sociedade e do Estado, colocar crianças e adolescentes a salvo de toda forma de violência, crueldade e opressão.
Reforçando tal previsão constitucional, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei Federal 8.069/1990, em seu artigo 70, ressalta que é dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente.
A violência contra crianças e adolescentes é procedimento tão abjeto, que a Lei Henry Borel, em seu artigo 26, tipificou a seguinte conduta como crime:
Art. 26. deixar de comunicar à autoridade pública a prática de violência, de tratamento cruel ou degradante ou de formas violentas de educação, correção ou disciplina contra criança ou adolescente ou o abandono de incapaz.
Desta feita, como atualmente alienação parental é legalmente considerada como uma forma de violência, de tratamento cruel contra crianças e adolescentes, constituindo, inclusive, um modo de violação dos direitos humanos, dúvidas não restam que ao Estado, lato sensu, não resta alternativa, senão a de proteger as crianças e adolescentes de tal ilícito desumano.
No Brasil, o Estado é composto pelo conjunto dos entes dotados de personalidade jurídica de direito público, os integrantes da administração direta e indireta, incluídos, nesta última categoria, os Conselhos ou Ordens de fiscalização profissional, que possuem natureza jurídica de autarquias[2].
Especificamente, no que toca ao Conselho Federal de Psicologia (CFP), o artigo 1º da Lei Federal nº 5.766/1971, que criou tal Conselho e os Conselhos Regionais de Psicologia, textualmente aponta tal natureza jurídica pública.
Art. 1º Ficam criados o Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Psicologia, dotados de personalidade jurídica de direito público, autonomia administrativa e financeira, constituindo, em seu conjunto, uma autarquia, destinados a orientar, disciplinar e fiscalizar o exercício da profissão de Psicólogo e zelar pela fiel observância dos princípios de ética e disciplina da classe.
Possuindo o CFP natureza jurídica de autarquia, automaticamente, tal pessoa jurídica de direito público está obrigada, constitucionalmente[3], a obedecer, entre outros, os princípios da legalidade, impessoalidade e moralidade.
Sendo obrigatória a observância do princípio da legalidade, não pode o CFP negar conhecimento[4] e vigência a formas de violência tipificadas em leis federais, como é o caso dos atos de alienação parental.
O próprio CFP, ao editar seu Código de Ética, Resolução CFP nº 010/2005[5], como não poderia ser diferente, fez questão de apontar que entre os princípios fundamentais da respectiva profissão, estão os seguintes: a) apoio aos valores que embasam a Declaração Universal dos Direitos humanos; b) contribuir para a eliminação de quaisquer formas de violência.
O Código de Ética do CFP, coerente com os princípios fundamentais confessados em tal normativo, em seu artigo 2º, alerta que é vedado às psicólogas e aos psicólogos:
Art. 2º – Ao psicólogo é vedado:
a) Praticar ou ser conivente com quaisquer atos que caracterizem negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade ou opressão;
b) Induzir a convicções políticas, filosóficas, morais, ideológicas, religiosas, de orientação sexual ou a qualquer tipo de preconceito, quando do exercício de suas funções profissionais;
c) Utilizar ou favorecer o uso de conhecimento e a utilização de práticas psicológicas como instrumentos de castigo, tortura ou qualquer forma de violência;
(...)
e) Ser conivente com erros, faltas éticas, violação de direitos, crimes ou contravenções penais praticados por psicólogos na prestação de serviços profissionais; (...)
Como visto anteriormente, atos de alienação parental são legalmente considerados como abuso de direito e/ou violência psicológica, neste último caso, caracterizando forma de violação dos direitos humanos, tipificando crime a conduta de deixar de comunicar à autoridade pública a prática de tal violência (art. 26, Lei Federal 14.344/2022).
A própria Lei Federal 5.766/1971, que criou o CFP, no inciso IV, de seu artigo 26, aponta que qualquer pessoa inscrita em tal Conselho, assim como os integrante de sua direção, gestão, órgãos ou quadros, comete infração disciplinar quando pratica ato que a lei defina como crime.
Art. 26. Constituem infrações disciplinares além de outras:
(...)
IV - Praticar, no exercício da atividade profissional, ato que a lei defina como crime ou contravenção;
Ocorre que, mesmo diante de tal robusto quadro normativo constitucional, legal e infralegal, o CFP, em setembro de 2022, divulgou a Nota Técnica nº 4/2022/GTEC/CD[6], que, em suma, veda que as psicólogas e os psicólogos fundamentem suas análises e conclusões com base no ilícito civil, definido pela Lei nº 12.318/2010 como alienação parental.
Tal documento, que não tem conteúdo normativo, mas tão somente opinativo, não podendo gerar qualquer sanção ética e/ou disciplinar aos profissionais que discordarem de seu alcance e conteúdo, padece de vários vícios, pois, claramente, desrespeita os constitucionais princípios da legalidade e da impessoalidade, uma vez que tenta induzir toda uma categoria profissional a seguir as convicções políticas, filosóficas, morais e ideológicas compartilhadas pelas pessoas que, momentaneamente, estão à frente da gestão pública de tal autarquia federal.
Noutro giro, cabe deixar consignado que a todos os cidadãos brasileiros, inclusive no regular exercício de suas profissões, é assegurado o direito fundamental a não ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.
Desta forma, neste cenário, fica claro que o conteúdo de tal Nota Técnica só pode se considerado como um manifesto da posição ideológica e política da gestão que conduzia à época o CFP, um mero panfleto de protesto, de inconformismo de tão somente uma parcela de tal categoria profissional, nada mais do que isso, sob pena de sua utilização para fins punitivos éticos e/ou disciplinares caracterizar crimes de abuso de autoridade[7] [8] [9] e/ou crime de denunciação caluniosa[10].
[1] Advogado especialista em direito de família pela FMP/RS.
[2] STJ. REsp 1757798/RJ, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 27/11/2018, DJe 12/02/2019.
[3] Constituição: Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
[4] Decreto-Lei nº 4.657/1942. Art. 3o Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece.
[5] Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2012/07/codigo-de-etica-psicologia.pdf
[6] Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2022/08/SEI_CFP-0698871-Nota-Tecnica.pdf
[7] Lei Federal 13.869/2019. Art. 27. Requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa: Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
[8] Lei Federal 13.869/2019. Art. 30. Dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente: Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
[9] Lei Federal 13.869/2019. Exigir informação ou cumprimento de obrigação, inclusive o dever de fazer ou de não fazer, sem expresso amparo legal: Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
[10] Código Penal. Art. 339. Dar causa a? instauração de inquérito policial, de procedimento investigatório criminal, de processo judicial, de processo administrativo disciplinar, de inquérito civil ou de ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime, infração ético-disciplinar ou ato ímprobo de que o sabe inocente: (Redação dada pela Lei nº 14.110, de 2020). Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa.
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