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Repensando a guarda
Elisa Costa Cruz
Doutora em Direito Civil pela UERJ
Professora na FGV Direito Rio.
Defensora Pública no Rio de Janeiro
Resumo: O presente artigo tem como objetivo apresentar críticas aos conceitos atuais de guarda unilateral e compartilhada, apresentando uma alternativa em substituição à ideia de guarda.
Palavras-chave: Guarda. Criança. Adolescente. Melhor interesse
Abstract: This article aims to present some critics to actual physical and joint custody and expects to present an alternative to the conception of custody,
Key words: Custody. Child. Adolescent. Best interest.
- Guarda e novos significados
Desde a graduação, na disciplina de direito das famílias, aprendemos que a guarda tem duas espécies regulamentadas no Código Civil.
A mais tradicional é a guarda unilateral, em que um dos pais ou mães é nomeado guardiã(o) e o outro, enquanto não guardiã(o) exercerá o direito de convivência (também chamado de visitação) e irá fiscalizar as atividades do outro(a) genitor(a) que está investido na guarda.
Desde 2008, e mais especificamente 2014, a preferência legal tornou-se a guarda compartilhada, onde as responsabilidades serão exercidas conjuntamente entre pais e/ou mães em relação à autoridade parental (art. 1.583, § 1º, do CC).
Somos levados a acreditar que a guarda compartilhada se opõe à guarda unilateral, como se fossem faces opostas da mesma moeda. Contudo, esse entendimento é falso.
A guarda unilateral de fato foi construída a partir da ideia que o pertencimento da criança ou adolescente ficará a cargo de apenas um dos pais. E, estando a criança ou adolescente sob a autoridade de um dos pais, cabe a ele todas as decisões sobre o(a) filho(a) comum, com a exclusão do outro. Esse entendimento não se mostra possível diante do art. 1.632 do Código Civil, segundo o qual a situação de conjugalidade dos pais não altera o direito dos pais em ter os filhos em sua companhia; e, se olharmos mais detidamente o art. 22 do ECA, perceberemos que, independentemente da relação de conjugalidade, pais e mães têm o direito de transmitir suas crenças e valores culturais e tem o dever de efetivar o sustento, guarda e educação dos filhos menores de 18 anos e não emancipados.
A ideia equivocada sobre a guarda unilateral vem usualmente acompanhada da proposta de que ao guardiã(o) cabe o direito de permanecer com o(a) filho(a), regular seu domicílio, disciplinar as rotinas habituais da sua vida, ao mesmo tempo em que é fiscalizado pelo(a) outro(a) genitor(a) e recebe alimentos em nome da criança.
O primeiro problema a ser enfrentado é que a guarda compartilhada não é o oposto à guarda unilateral, pois, naquela, é irrelevante o pertencimento físico do filho com um dos pais. A guarda compartilhada é definida a partir da ideia de responsabilização conjunta e independe do local de residência ou de domícilio para existir. O traço identificador da guarda compartilhada é a responsabilização conjunta pelos pais, o que permite entender a possibilidade da existência de guarda compartilhada com residências diferentes e com pais que residam em cidades ou países diferentes, pois, o ponto envolve a responsabilização conjunta.
Posto que inclusiva, ao traçar seu elemento diferencial na responsabilização conjunta, a guarda compartilhada acaba por confundir-se com a própria autoridade parental, que significa a responsabilidade parental pelo cumprimento dos deveres parentais e o desenvolvimento da criança e do adolescente em tudo o que se mostrar necessário para o seu desenvolvimento até a fase adulta. Não à toa, Ana Carolina Brochado escreveu um artigo falando sobre a desnecessidade da guarda compartilhada, revelando que, em termos jurídicos, a guarda compartilhada se confunde com a própria autoridade parental[1].
Mas não apenas a guarda compartilhada tem problemas: a ideia de que a guarda unilateral confere poderes exclusivos a(o) guardiã(o) também não tem fundamento jurídico. Veja-se novamente o art. 1.632 do Código Civil: “A separação judicial, o divórcio e a dissolução da união estável não alteram as relações entre pais e filhos senão quanto ao direito, que aos primeiros cabe, de terem em sua companhia os segundos”.
Os deveres de sustento, convivência, participação na vida, transmissão de cultura, assistência moral e material decorrem da autoridade parental e do princípio da parentalidade responsável, e, não, da guarda. Mais, a mudança de residência da criança ou adolescente para outro domicílio depende da concordância de ambos os pais, conforme art. 1.634, V, do Código Civil, independentemente da guarda.
A guarda unilateral enfrenta ainda outros mitos: existe fiscalização na guarda compartilhada, pois o que está em debate é o direito da criança e adolescente, em caráter prioritário; há dever de pagar alimentos, ainda que não haja repasse entre os representantes legais; a responsabilidade civil por ato dos filhos não se altera em razão da guarda (art. 932 do CC); e, o domicílio é o dos representantes legais, o que significa dizer que é os domicílios dos representantes, que serão os pais, salvo decisão sobre suspensão ou destituição da autoridade parental.
Em relação a residência, mais novo debate, importante recordar o seu conceito: moradia com ânimo de permanência. Mesmo com pais que morem em locais diferentes, a criança poderá ter múltiplas residências e domicílios, afinal, os períodos em que estiver com cada genitor importará em mudança de residência e/ou domicílio, pois a residência e domicílio segue o do representante legal[2]. A questão, assim, não é sobre residência ou domicílio, mas de estabelecimento de local que funcionará como centro de interesses da criança e fixará o local de saúde, educação e demais direitos sociais, individuais e políticos previstos no ECA.
Ou seja, nenhum dos critérios que até hoje guiou a compreensão da guarda unilateral tem, de fato, correspondente, com uma norma jurídica existente. Talvez a vinculação da criança ou adolescente a um genitor, mas nem isso. Seja porque existe a convivência que flexibiliza o lugar territorial da criança, como também a guarda unilateral não atribui poder de controle sobre a criança, como bem mostram o art. 1.632 e art. 1.634, V, do CC.
Nada, portanto, que justifique a ideia vigente sobre guarda unilateral e guarda compartilhada, pois, nenhum dos dois, resolve os problemas da filiação entre pais que não coabitam[3].
A frase de Ana Carolina Brochado pode ser expandida para a guarda como um todo, pois o seu sistema é desconexo com os deveres inerentes à autoridade parental.
Nesse momento, dois questionamentos devem ter surgido? Por que, então, existe previsão sobre guarda? E, o que colocar em substituição ao modelo atual?
Quanto à primeira pergunta, merece registro histórico que mulheres não eram detentoras do pátrio poder até 1942. Sim, considerando o período republicano, as mulheres não tinham pátrio poder, salvo se fossem viúvas. A atribuição da guarda no mesmo período histórico que legalizou o desquite parece justificar o instituto, permitindo que mulheres pudessem gerenciar a vida dos filhos em caso de desquite ou de o que hoje chamamos, maternidade solo. A partir de 1941, com a edição do Estatuto da Mulher Casada, começou a separação da conjugalidade da filiação, movimento que não foi inteiramente completado sequer após a Constituição da República de 1988. A guarda, nos parece, surgiu como instituto para permitir à mulher o exercício do pátrio poder, mas permaneceu ao longo dos anos pela influência patriarcal do Direito e em especial do Direito das Famílias.
Mas, a guarda em si não tem valor atualmente, pois independente de quem esteja com o(a) filho(a) em determinado momento, as decisões são sempre conjuntas dos pais, pois todos têm direito a transferir suas crenças e culturas. Então, por exemplo, escolhas de saúde ou educacionais são sempre conjuntas, por força do art. 22 do ECA. É, portanto, falsa a ideia de que o(a) guardiã(o) decidi sozinho(a) sobre o(a) filho(a), porque toda a maioria das decisões envolvem o desenvolvimento da criança e elas sempre dependerão
Qual será, então, a alternativa à guarda? Portugal e Argentina têm experiências que merecem ser observadas. Ambos os países eliminaram a palavra guarda de seus Códigos Civis e, no capítulo que antes se referiam a ela, previram a “regulação do exercício das responsabilidades parentais”. Em Portugal a regulação da regulação do exercício das responsabilidades parentais de pais que não coabitam é feita a partir de 4 critérios: residência (local de referência) da criança, capacidade dos pais de promover a convivência com o outro e com parentes da família extensa, decisões ordinárias (rotineiras) sobre a vida e alimentos.
Acaso queiramos manter a tradicional designação guarda, é necessário ressignificá-la para entender o processo de guarda como o estabelecimento do centro de referência da criança e do adolescente com um dos genitores, de modo que a partir dele se estabeleça a referência de educação e saúde, que, ao menos nos serviços públicos, é feito a partir da residência da criança. Ou seja, independentemente da criança estar presente nas residências materna e/ou paterna, ela terá a sua própria residência para fins de saúde e educação, sem prejuízo de outras finalidades, estabelecendo-se nesse local o centro de referência de seus direitos.
O aspecto desconhecido do direito brasileiro é a definição sobre se algum dos pais tem controle sobre os filhos. Como mostramos acima, a resposta é negativa. A despeito da regulação da guarda, a partir das normas jurídicas existentes, as decisões sobre filhos comuns não pertencem a um dos genitores, sequer na guarda unilateral. O aprofundamento sobre guarda exige, então, que se defina se algum dos genitores pode ter, judicialmente, esse poder, o que nos parece viável, desde que justificado o porquê as decisões competirão a um dos genitores e em que medida essa decisão judicial se compatibiliza com o art. 1.632 do CC.
Em suma, é essencial reconstruir a guarda para entendê-la como regulação dos deveres parentais a fim de buscar uma teoria sobre guarda que se aproxime da realidade e da autoridade parental.
- Referências
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LEAL, Ana Teresa; d’OLIVEIRA, Felicidade; RAPOSO, João Vasconcelos; CARVALHO, Luís Baptista; MELO, Helena Gomes. Poder parental e responsabilidades parentais. Lisboa: Quid Juris, 2010.
MARTINS, Rosa. Menoridade, (in)capacidade e cuidado parental. Coimbra: Coimbra, 2008.
OLIVEIRA, Maria Rita de Holanda Silva. A autonomia parental e os limites do planejamento familiar no sistema jurídico brasileiro. 2016. 297 f. Tese (Doutorado) Universidade Federal de Pernambuco, 2016.
PEREIRA, Tânia da Silva. Direito da criança e do adolescente: uma proposta interdisciplinar. Rio de Janeiro: Renovar, 1996.
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[1] TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. A (des) necessidade da guarda compartilhada ante o conteúdo da autoridade parental. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite (coords.). Manual de Direito das Famílias e das Sucessões. Belo Horizonte: Del Rey: Mandamentos, 2008.
[2] Art. 80 do CC.
[3] E, nem de pais que coabitam, pois a divergência entre opinião é remetida ao Poder Judiciário, conforme art. 1.631, parágrafo único, do CC.
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