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Alienação parental é uma questão generificada, e não uma questão de gênero
Alienação parental é uma questão generificada, e não uma questão de gênero
Bruna Barbieri Waquim1
No Brasil, enfrenta-se uma grande polêmica envolvendo a pergunta “A Alienação Parental é uma questão de gênero”?
O presente artigo objetiva levantar reflexões sobre essa afirmação, de que a Alienação Parental é uma questão de gênero, que é fruto do discurso articulado de grupos de defesa de mães que, ao promoverem denúncias de abuso infantil contra o outro genitor, se consideram prejudicadas pela existência da Lei nº 12.318/2010.
Afirmam coletivos e associações em defesa das mães que o Judiciário tem sido eminentemente machista ao desqualificar a suspeita de abuso contra a criança, acolhendo a alegação de falsa denúncia como ato de Alienação Parental como matéria de defesa suscitada pelo pai supostamente abusador.
Esta é uma questão grave e que deve ser estudada com a máxima prioridade e seriedade, posto que o Judiciário se vê diante de uma difícil missão: descobrir se a denúncia de abuso é verdadeira, protegendo, assim, a dimensão da integridade física e sexual dessa criança ou adolescente, ou descobrir se a denúncia de abuso é falsa, logo, artifício de Alienação Parental, quando então deve proteger a dimensão da integridade psicológica e relacional da pessoa em desenvolvimento.
Para tanto, promove-se um levantamento bibliográfico sobre o debate existente entre denúncias de abuso e alegações de Alienação Parental na experiência de países norte-americanos, em que o debate se desenvolve há mais tempo do que no Brasil.
Como hipótese a ser testada, levanta-se aqui o entendimento de que a Alienação Parental não é uma questão de gênero (posto que não possui em sua essência a nota de violência contra a mulher), mas a Alienação Parental é uma questão generificada, que recebe o atravessamento de inúmeras e complexas repercussões que os papéis sociais e lutas políticas de mulheres e homens acarretam.
Fazendo uso das palavras de Karen Woodall (2017), dizer que a Alienação Parental não é uma questão de gênero, mas “generificada”, “significa que a forma como é encenada por mães e pais é diferente dependendo dos papéis de gênero que essas mães e pais desempenham na vida de seus filhos”.
A experiência da autora aponta que “as mães que alienam o fazem mais frequentemente no mundo subjetivo e os pais que alienam o fazem mais frequentemente no mundo objetivo” (WOODALL, 2017). Mas como isto funciona?
As crianças que se tornam alienadas por uma mãe contra um pai muitas vezes se tornam assim porque a mãe manipulou a criança na relação subjetiva por meio do “emaranhamento” (que Woodall define como a incapacidade da mãe de dizer a diferença entre sua própria experiência e a de seu filho) e através da encenação das necessidades não satisfeitas da mãe usando a criança como uma extensão de seu próprio eu psicológico (WOODALL, 2017).
Quando os pais alienam seus filhos contra suas mães, na maioria das vezes, voltam seus comportamentos objetivos de controle para seus filhos quando a mãe deixa o relacionamento. As estratégias alienantes dos pais muitas vezes se tornam silenciosamente aceitas pelos praticantes por causa de sua própria narrativa de gênero que é “se uma criança rejeita uma mãe, deve ser porque a mãe é uma mãe muito ruim” (WOODALL, 2017).
Woodall (2017) adverte: a narrativa generificada da alienação parental fica submersa sob a narrativa dos direitos das mulheres que está plenamente presente no direito de família por meio da formação ideológica e das crenças dos praticantes desse campo.
O atravessamento de questões de gênero na prática de Alienação Parental já havia sido observada por Leona Kopetski (KOPETSKI; RAND; RAND, 2006), que analisou 84 casos de alegada Alienação Parental no período de 1976 a 1990 e percebeu que atitudes culturalmente determinadas e o cenário social são responsáveis pelas diferenças de gênero encontradas na Alienação Parental.
A autora descreve que a maioria das falsas alegações ocorridas nesses processos se relacionava ou a abuso ou a negligência infantil. A maioria das falsas alegações de abuso sexual foram feitas por mulheres, enquanto que a maioria das falsas alegações de negligência infantil foram feitas por homens (KOPETSKI; RAND; RAND, 2006).
Kopetski (KOPETSKI; RAND; RAND, 2006) revela que muitos pais haviam sido agredidos fisicamente pelas ex-mulheres e tinham as injúrias documentadas, mas as alegações de violência doméstica só eram feitas por mães. Como a autora destaca, uma acusação de abuso sexual feito pela mãe é muito mais fácil de ser levada a sério pelas autoridades de proteção à criança, levando à restrição da convivência com o pai.
Por outro lado, muitos pais alienadores aproveitavam-se do julgamento social contra mães que “negligenciavam” os cuidados com as crianças pelo bem do seus próprios interesses individuais. Citando um dos casos estudados, Kopetski aponta que o adoecimento mental de uma mãe serviu de combustível para a alegação do pai de negligência; se a família estivesse intacta, o natural seria que este pai e os demais parentes dessem apoio à mãe, porém, num cenário de Alienação Parental, os pais exploram eventuais falhas ou insuficiências encontradas até a exaustão das mães (KOPETSKI; RAND; RAND, 2006).
Após um levantamento de casos sobre queixas de Alienação Parental no Canadá no período de 1989 a 2008, Nicholas Bala, Suzanne Hunt e Carrie McCarney (2009) identificaram que as mães são duas vezes mais propensas que os pais a alienar os filhos do outro progenitor, mas isso reflete o fato de que as mães são mais propensas a ter a guarda ou cuidados primários de seus filhos; pais fizeram mais de três vezes mais alegações infundadas de alienação parental do que mães, mas isso também reflete o fato de que as alegações de alienação (fundadas e infundadas) são geralmente feitas por pais que buscam acesso aos filhos.
Scott e Emery (2014) refletem que o conceito de “Melhor interesse da criança” se tornou o produto de uma guerra de gênero que se desenrolou em legislaturas e tribunais por décadas nos Estados Unidos. Substantivas reformas no sistema foram percebidas como favorecendo pais ou mães, e assim geraram batalhas políticas entre seus respectivos defensores. A frente principal nesta guerra tem sido uma prolongada batalha sobre custódia.
Defensores das mães fizeram lobby de forma eficaz por uma lei com presunção desfavorável ao progenitor que praticou atos de violência. Por sua vez, os grupos de pais responderam procurando persuadir os tribunais e legislaturas para atribuir um peso negativo substancial à decisão de um genitor de alienar a criança do outro (SCOTT E EMERY, 2014).
Scott e Emery (2014) apontam que cada um desses fatores implica uma preocupação política chave e, em teoria, pode trazer maior determinação à doutrina da custódia em importantes categorias de casos. Mas violência doméstica e reivindicações de alienação são difíceis de verificar, e os tribunais são muitas vezes mal equipados para separar reivindicações válidas daquelas que são fracas ou falsas.
As ponderações acima dos autores, publicadas em 2014 nos Estados Unidos, podem facilmente ser replicadas ao contexto brasileiro em pleno ano de 2022.
A preocupação de Jaffe-Geffner (2021) é de que, apesar do enquadramento aparentemente mais neutro da teoria da Alienação Parental, pesquisas empíricas mostram que os Tribunais a usam para desacreditar as alegações das mães de violência doméstica e abuso e para justificar o afastamento da guarda da mãe.
Porém, estudos robustos como o de Harman e Lorandos (2020), que analisaram 967 casos judiciais nos Estados Unidos, trazem dados que fazem cair por terra essa alegação.
Harman e Lorandos (2020) identificaram que alegar que alguém está sendo alienado de uma criança nem sempre funciona como uma estratégia legal para obter a guarda dos filhos tanto para mães ou pais. Tal alegação tinha de ser “fundada” e, quando foi, tribunais de família em todo o país tomaram medidas para proteger as crianças desta forma de abuso. Esta conclusão indica que os tribunais reconhecem os danos que os comportamentos de alienação parental fazem às crianças e que não é do melhor interesse das crianças ter sua relação com o genitor alienado prejudicada ou destruído pelo genitor alienador.
Nesse mesmo estudo, os resultados encontrados não apoiam a alegação de que quando as mães fizeram uma alegação de abuso e o pai fez uma alegação de Alienação Parental, ela seria penalizada com uma perda do tempo de convivência ou de custódia. Os dados apoiaram o resultado oposto: pais, independentemente de serem conhecidos ou supostos alienadores, eram mais propensos a perder a custódia de seus filhos do que mães, se fizessem uma alegação de abuso sobre a mãe. Este resultado pode refletir um efeito de reação, como se os pais enfrentassem represálias sociais por terem acusado as mães de serem abusivas, porque existem estereótipos que as mulheres não são abusivas e que os homens não podem ser abusados (HARMAN, LORANDOS, 2020).
A teoria da violação da expectativa pode explicar por que os comportamentos de alienação parental não são vistos de forma negativa quando as mães os exibem, ao contrário dos pais. Duzentos e vinte e oito pais completaram um pesquisa on-line avaliando percepções de aceitabilidade de comportamentos coparentais negativos (alienação parental) e positivos. Os resultados permitiram concluir que, embora os comportamentos de alienação parental fossem classificados como inaceitáveis, eles eram mais aceitáveis ??para as mães do que para os pais (HARMAN et al, 2016).
Isso porque as teorias do papel de gênero e do esquema de gênero afirmam que existem expectativas estereotipadas para homens e mulheres com relação a seus comportamentos, e que homens e mulheres são julgados por essas expectativas quando se desviam do que é considerado normativo, tanto por seu papel quanto pela congruência entre o gênero estabelecido e papéis sexuais (HARMAN et al, 2016).
Embora advogados e juízes possam acreditar conscientemente que mães e pais divorciados merecem ser tratados igualmente, eles podem recorrer ao uso de heurísticas (por exemplo, “mamãe sabe mais”; “os homens são mais propensos a serem agressivos”; "eu conheço o avaliador e confio em suas credenciais”), que são alimentadas por estereótipos parentais tradicionais. Usando essas heurísticas para ajudar a orientar seu trabalho e decisões, em vez de considerar objetivamente todos os fatos, as consequências para as crianças e famílias são substanciais (HARMAN et al, 2016).
Woodall (2017) já chamava à atenção: pergunte a uma criança alienada o que ela deseja e você pode ter certeza de que a resposta que você receberá não será dela, mas do pai controlador coercitivo. Isso porque eles estão sendo controlados coercivamente, cuja própria definição é ser um padrão de comportamento que procura tirar a liberdade da vítima, despojar seu senso de identidade.
Por isso, é cada vez mais clara a constatação de que a Alienação Parental é uma questão de disputa de poder no espaço de família, e não de gênero. E qual seria a solução?
A solução é desenhada no horizonte por Woodall (2017):
Ela começa com o gênero. Ela começa com o eu. Começa com o que se passa na mente dos praticantes e começa com o desenvolvimento de uma compreensão mais ampla, mais ampla e muito mais sofisticada do que a família faz ao passar pela separação. Requer foco, conhecimento, experiência e compreensão de que as vozes das crianças não são mais evoluídas do que as de seus pais e que as crianças têm necessidades, e direitos a uma infância saudável, que não são indivisíveis daquelas de sua mãe ou pai.
O fenômeno da Alienação Parental não é uma questão essencialmente de gênero, mas é uma questão generificada em virtude dos atravessamentos socioculturais dos papéis de pai e mãe, o que repercute nas relações de poder no espaço da família e frequentemente deságua no contexto dos processos judiciais.
[1]Doutora em Direito pelo Centro Universitário de Brasília. Mestre em Direito e Instituições do Sistema da Justiça pela Universidade Federal do Maranhão. Especialista em Direito Civil e Processo Civil e em Direito de Família e Sucessões. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Maranhão. Formadora credenciada pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam). Assessora Jurídica no Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Professora e Tutora da Escola Superior da Magistratura do Estado do Maranhão. Palestrante. Autora de diversos artigos jurídicos e dos livros "Relações Simultâneas Conjugais: o lugar da Outra no Direito de Família", "Alienação Familiar Induzida: aprofundando o estudo da Alienação Parental" e da Coleção "Alienação Parental na perspectiva dos direitos da criança e do adolescente: impactos no Judiciário e nas Políticas Públicas". Vice-Presidente do IBDFAM/MA. Componente do Grupo de Estudos e Trabalho sobre Alienação Parental do IBDFAM Nacional. Educadora Parental em Disciplina Positiva certificada pela Associação Internacional de DP (PDA). Mãe do Romeu.
REFERÊNCIAS
BALA, Nicholas. HUNT, Suzanne. MCCARNEY, Carrie. Parental Alienation - Myths, Realities & Uncertainties: A Canadian Study, 1989-2008. May 12, 2009 – Summary Disponível em: https://canadiancrc.com/PARENTAL-ALIENATION-CANADA/Parental_Alienation-Myths_Realities_and_Uncertainties-Professor_Nicholas_Bala_SUMMARY_12MAY09.aspx. Acesso em: 10 nov. 2022.
HARMAN, J. J., & LORANDOS, D. (2020, December 14). Allegations of Family Violence in Court: How Parental Alienation Affects Judicial Outcomes. Psychology, Public Policy, and Law. Advance online publication. Acesso em: 15 nov. 2022.
Harman, J. J., Biringen, Z., Ratajack, E. M., Outland, P. L., & Kraus, A. (2016, August 8). Parents Behaving Badly: Gender Biases in the Perception of Parental Alienating Behaviors. Journal of Family Psychology. Advance online publication. http://dx.doi.org/10.1037/fam0000232 Acesso em: 15 nov. 2022.
JAFFE-GEFFNER, Nina. Gender Bias in Cross-Allegation Domestic Violence-Parental Alienation Custody Cases: Can States Legislate the Fix? Columbia Journal of Gender and Law, 42(1), 58–111 Disponível em: https://journals.library.columbia.edu/index.php/cjgl/article/view/9373. Acesso em: 10 nov. 2022.
KOPETSKI, Leona M. RAND, Deirdre Conway. RAND, Randy. Incidence, Gender and False Allegations of Child Abuse: Data on 84 Parental Alienation Syndrome Cases. In The International handbook of parental alienation syndrome. Charles C Thomas Pub Ltd; 1st edition (June 1, 2006). Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/329572557_Incidence_Gender_and_False_Allegations_of_Child_Abuse_Data_on_84_Parental_Alienation_Syndrome_Cases. Acesso em: 04 nov. 2022.
WOODALL, Karen. The Gendered Reality of Parental Alienation and Coercive Control. 6 fev. 2017. Disponível em: https://karenwoodall.blog/2017/02/06/the-gendered-reality-of-parental-alienation-and-coercive-control/. Acesso em: 09 nov. 2022
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