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TJ-RJ promove seletividade protetiva perante a Lei Henry Borel
Ruchester Marreiros Barbosa é delegado de polícia do RJ, professor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, da Escola da Magistratura de Mato Grosso e do Cers, autor de livros, palestrante e colaborador oficial da Comissão de Alienação Parental da OAB-Niterói.
Isabela Cristina Loureiro dos Santos é advogada familiarista, especializada em alienação parental pela PUC-RJ, secretária-geral da Comissão de Alienação Parental da OAB-RJ (Niterói) e membro do Instituto Brasileiro do Direito de Família e Palestrante.
Em 24 de maio de 2022 foi sancionada a Lei 14.344/22, conhecida como Lei Henry Borel, que entrou em vigor em 8 de julho deste mesmo ano, em razão de sua vacatio legis de 45 dias, conforme apregoa a regra esculpida no artigo 8º, §1º da LC 95/98.
A ampliação desse sistema de proteção legislativa em rede (artigo 2º, parágrafo único c/c artigo 6º c/c artigo 12 c/c artigo 21, §1º c/c artigo 33, todos da Lei 14.344/22) nada mais é do que a efetivação convencional da proteção das crianças e adolescentes, a exemplo da Convenção sobre os Direitos da Criança, que em seu artigo 1 estabelece que "considera-se como criança todo ser humano com menos de 18 anos de idade".
A novatio legis elenca em seu artigo 2º espécies de violências doméstica contra menores de 18 anos, e nada mais são do que uma reprodução do mesmo elenco previsto no artigo 5º e artigo 7º Lei 11.340/06, que visam proteger a mulher vítima dessas mesmas ações violentas. Aqui deve-se ter uma atenção importante e relevante. O conceito dessas espécies de violências reproduzidas da Lei 11.340/06, são incompletas e inadequadas, visto que há no ordenamento jurídico o artigo 4º da Lei 13.431/17, de salutar pertinência à realidade das pessoas menores de 18 anos, tanto, que a violência patrimonial prevista no artigo 4º, V da Lei 13.431/17 foi atualizado pelo artigo 28 da Lei 14.344/22, não obstante o artigo 33 deste mesmo diploma, já dispusesse sobre a aplicação suplementar da Lei 13.431/17, fortalecendo importante precedente para a adoção do sistema do diálogo das fontes de Erik Jayme [1] como alternativa ao critério excludente de solução de conflitos de normas, adotado pela LINDB:
"'Diálogo' porque há influências recíprocas, 'diálogo' porque há aplicação conjunta das duas normas ao mesmo tempo e ao mesmo caso, seja complementarmente, seja subsidiariamente, seja permitindo a opção pela fonte prevalente ou mesmo permitindo uma opção por uma das leis em conflito abstrato — solução flexível e aberta, de interpenetração, ou mesmo a solução mais favorável ao mais fraco da relação (tratamento diferente dos diferentes)".
Ainda reproduzindo o texto idêntico ao previsto na lei Maria da Penha, previu a possibilidade de concessão de medida protetiva pelo juiz, delegado de polícia e o policial (artigo 14), que neste aspecto, as duas leis se identificam.
No entanto, diferentemente do rol restrito de legitimados a solicitar a referida medida artigo 19 da Lei 11.340/06, a Lei Henry, amplia os legitimados para representar/requerer por essas medidas protetivas de urgência, como o Conselho Tutelar, Delegado de Polícia ou qualquer pessoa que atue em favor da criança e do adolescente (artigo 14, §1º e 16), A legitimação do delegado, que defendemos possível na Maria da Penha, deduz-se de uma interpretação sistemático teleológica, haja vista que ao prever a possibilidade do delegado deferir ou indeferir medidas protetivas, como decidiu o STF (ADI 6.138/DF), que seria o mais, poderia representar, que seria o menos, quando o município for sede de comarca.
Apesar da previsão das medidas protetivas, sua efetividade tem enfrentado alguns óbices de ordem processual em matéria de competência sobre crimes contra criança e adolescente vítimas, em especial, no âmbito da organização judiciária dos estados. A Lei 13.344/22 é omissa quanto ao órgão competente, entretanto, em seu artigo 33 remete o intérprete a beber da fonte da Lei 13.431/17. Em seu artigo 23, parágrafo único prevê que os "órgãos responsáveis pela organização judiciária poderão criar juizados ou varas especializadas em crimes contra a criança e o adolescente". Acrescente-se que até "a implementação" dessas varas especializadas, "o julgamento e a execução das causas decorrentes das práticas de violência ficarão, preferencialmente, a cargo dos juizados ou varas especializadas em violência doméstica e temas afins".
No estado do Rio de Janeiro, por meio da Resolução TJ/OE nº 19/2022 [2], alterada pela Resolução 30/2022, transformou-se a 38ª Vara Criminal da comarca da Capital, na 1ª Vara Especializada em Crimes contra a Criança e o Adolescente (Veca), desde o dia 15/08/22, competente para "processar e julgar crimes exclusivamente contra a criança e o adolescente", ressalvados: a) as contravenções penais da competência dos Juizados Especiais, adequando-se o dispositivo ao parágrafo 1º do art. 226, da lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, alterado pelo artigo 29 da lei nº 14.344, de 24 de maio de 2022; b) os crimes da competência do Tribunal do Júri; c) os crimes patrimoniais; d) os crimes de tráfico de entorpecentes e associação para fins de tráfico, quando praticados em concurso de pessoas com criança ou adolescente.
O artigo 3º, ainda prevê que cabe à 1ª Vara Especializada em Crimes Contra a Criança e o Adolescente (Veca) processar e julgar: a) as medidas protetivas de urgência (da Lei 14.344/22), em relação às crianças e adolescentes vítimas de violência; e os crimes em espécie previstos na Lei 8.069/90 (ECA).
Assim, o disposto no artigo 3º, I a III, ao prever que a Veca processará e julgará os crimes contra criança e adolescente, com ressalvas para algumas espécies de crimes e também os crimes em espécies previstos na Lei 8.069/90, nos parece que a interpretação da nova redação do artigo 226, §1º, excluindo a incidência da Lei 9.099/95 aos crimes cometidos contra a criança e o adolescente, independentemente da pena prevista, tenha sido a híbrida: permitir a incidência da Lei 9.099/95 às contravenções penais, em razão do dispositivo ter se referido "aos crimes"; e ampliativa, porquanto exclui os crimes dolosos contra a vida, patrimônio e tráfico de drogas, quando praticados em concurso de pessoas com criança ou adolescente, a contrario senso, competente para os demais crimes do Código Penal (v.g. sexuais, honra etc) e legislação extravagante, além dos previstos na Lei 8.069/90, promovendo verdadeira seletividade protetiva.
Em outras palavras, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro entendeu que o §1º do artigo 226 da Lei 8.069/90, que está na seção I das disposições gerais possui redação independente de seu caput [3], que faz alusão "aos crimes definidos nesta Lei", ou seja, o caput se refere aos crimes da Lei 8.069/90 e não aos previstos no Código Penal e legislação extravagante, contudo, faz-se interpretação, neste ponto, com a qual concordamos [4], ampliativa e teleológica a semelhança ao que se realiza no artigo 89 da Lei 9.099/95, que ao prever a suspensão condicional do processo e o dispositivo se encontrar na parte das disposições gerais, aplica-se o instituto a qualquer crime. No caso da Lei 14.344/22, que alterou esse §1º, sua mens legis era garantir que àqueles que praticassem crimes contra criança e adolescente, não fossem beneficiados pelos institutos previstos na Lei 9.099/95, bem como os benefícios previstos no artigo 44 do Código Penal, por força do seu §2º, seguinte.
Melhor seria se na própria Lei 14.344/22 tivesse um dispositivo idêntico ao artigo 41 da Lei 11.340/06 para afastar a incidência da Lei 9.099/95, e não uma alteração na Lei 8.069/90. Não obstante a péssima técnica legislativa, entendemos que por se tratar de uma legislação que adota o sistema do diálogo das fontes, conforme artigo 33, a inteligência do artigo 226, §§ 1º e 2º do ECA deve ser entendido pela exclusão da aplicação de institutos despenalizadores, seguindo a mesma lógica da interpretação conforme pelo STF, pela ADI 3.096-5 ao artigo 94 do Estatuto do Idoso.
Ainda sobre o tema competência, não se pode olvidar que a Lei 14.344/22 e a Lei 13.431/17 tratam de proteção à criança e adolescente vítimas e TESTEMUNHAS de violência, estas em razão de se proteger sua higidez mental perante a violência, causadora de comorbidades psicológicas, doenças psíquicas, como a nictúria. Suponhamos então que uma mãe/pai agrida o pai/mãe fisicamente ou verbalmente na frente do filho em comum de 11 anos.
Caberia medida protetiva em favor da criança? Sim. Mas o órgão competente seria a Veca? De acordo com a resolução do TJ-RJ, não, pois no referido ato normativo, é competente somente quando ela for vítima e não testemunha. Neste caso, o juiz competente para a medida protetiva prevista na Lei 14.34422 seria o juiz competente para a contravenção ou crime da ação principal, ou seja, Juizado Especial Criminal ou a Vara Criminal, porquanto possui natureza jurídica de medida cautelar prevista em uma legislação extravagante, como ocorre com a prevista no artigo 69, parágrafo único da Lei 9.099/95, ou na Lei 9.613/98, Lei 12.850/13, Lei 9.296/96 e tantas outras.
Em caso um concreto, ocorrido na capital do estado do Rio de Janeiro, em busca de proteção a uma criança e ao seu guardião, testemunhamos a contramão do significado ontológico da expressão legal "urgência", que num primeiro momento, ocorreu nitidamente por desinformação e inabilidade em subsumir o fato concreto às novas regras. Neste caso real, os agentes públicos sequer tinham ciência da vigência da Lei 14.344/22, bem como não haviam informações de como a materializar documentalmente para se garantir a efetivação da medida.
Impende destacar, que para maior efetivação concreta de uma medida cautelar, que se pretende ser de URGÊNCIA, deveria sim o Delegado de Polícia, como primeiro garantidor dos direitos fundamentais, analisá-la para IMEDIATAMENTE efetivá-la, como já defendido por Ruchester [5], sendo muito mais garantidor e protetivo à criança e o adolescente a incidência instantânea da proteção do que sujeitar a vítima ou testemunha a um procedimento burocrático (e que não está sobre a reserva absoluta de jurisdição) de "requerer' uma medida, na qual o delegado possui um prazo de 48 horas para remeter os autos, o juiz mais 48h para analisar e deferir, sendo que entre a providência entre um e outro, se intima o Ministério Público para se manifestar, restando a lei omissa quanto ao prazo, devendo se aplicar por analogia o mesmo prazo do delegado. Assim, teríamos 144 horas, que em termos práticos seriam seis dias, o que é um absurdo, violação frontal ao princípio da proibição da proteção deficiente, mas nosso legislador é cego e, como sempre, parece alheio à realidade.
Voltando ao caso concreto, após remessa do procedimento ao judiciário não havia transformado a 38ª Vara Criminal em Veca, tendo sido remetido a uma das varas Criminais da Comarca da Capital, e esta, acertadamente, declinou a competência para o Juizado de Violência Doméstica e Familiar, contudo, este órgão suscitou o conflito sem apreciar a medida de urgência. O que assusta não é a escorreita cautela em se estabelecer o juiz natural, mas a falta de esforço em se proteger menores de idade, ainda vistos como objeto do Direito, mas são sujeitos de direitos e garantias fundamentais!
Seria plenamente viável, no caso concreto, em razão da ponderação de interesses, que se sobrepusesse o direito fundamental da vida/integridade física e saúde de um vulnerável, sobre outra garantia fundamental sobre competência, corolário do juiz natural. É o que se denomina de quebra positiva de direitos fundamentais, traduzido pelo vetusto brocardo incompetentia periculum in mora non attenditur. Outrossim, o deferimento de medidas de urgência, mesmo por juízo absolutamente incompetente, seja por aquela razão ou se adotando a teoria da aparência, aplicável pacificamente ao processo penal, diante do já referido artigo 23, parágrafo único da Lei 13.431/17, buscaria se efetivar garantias fundamentais de proteção, sendo totalmente desrazoável se omitir diante disso. Verificamos como é difícil a consolidação de direitos e garantias fundamentais das crianças e os adolescentes, tratando-se de uma verdadeira violência institucional ainda frequente, e em pleno século XXI.
A previsão de vara especializada para Criança e Adolescente vítimas de violência está prevista em lei desde 2017! Segundo informações do CNJ [6] existem, no Brasil, 39 varas para tratar de Crimes de Violência Contra Criança e Adolescente, sendo estas varas não especializadas, acumulando diversas matérias, inclusive algumas delas tratando de crimes comuns, enquanto apenas cinco varas no Brasil são especializadas em Crimes de Violência Contra Criança e Adolescente, estando localizadas em Salvador, Belém, Recife e Boa Vista [7].
Foi preciso mais uma lei, a Lei 14.344/22, que sequer prevê uma vara especializada para crimes contra criança e adolescente, que mesmo diante do já existente artigo 23, parágrafo único da Lei 13.431/17, prevendo em seu artigo 29 a vacatio de 1 ano para as instituições se prepararem, entrando em vigor em 5 de abril de 2018, e mesmo assim, como se pode observar pelo site oficial do CNJ, encontramos um judiciário pouquíssimo comprometido com efetivação de garantias e direitos dos vulneráveis menores de 18 anos de idade.
Levando em consideração tudo que vem sendo exposto, o que se pretende, é fomentar o debate de uma norma, já em vigor desde 2018, e uma outra de 2022, motivada pela morte trágica de uma criança, por entes familiares (mãe e padrasto), que reforçam (v.g. políticas afirmativas e assistência social), ampliam (v.g. aumentam legitimados para solicitar tutela de proteção) e trazem novos mecanismos de proteção (v.g. whistleblower ou informante do bem), contudo, que não vem sendo aplicadas de forma efetiva em razão da ausência de uma sistematização adequada, e a toda evidência, falta de comprometimento institucional, devendo os órgãos responsáveis ficarem atentos para que novas violações não continuem ocorrendo, tornando nosso sistema legislativo ineficaz, promovendo uma verdadeira violência institucional por omissão, fato grave e em flagrante violação aos direitos humanos, podendo o Brasil ser acionado perante o sistema interamericano de proteção aos direitos humanos e os agentes públicos responsabilizados por essa desumana desídia.
[1] Apud MARQUES, Claudia Lima. Manual de direito do consumidor. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 89/90.
[2] Disponível em: encurtador.com.br/apvz9, acesso em 22/10/2022
[3] Nos parece também a visão de CABETTE, Eduardo. Lei Henry Borel - Principais Aspectos. Disponível em: encurtador.com.br/novx8
[4] No mesmo sentido: NETO, Francisco Sannini. Lei Henry Borel cria novos mecanismos de proteção contra violência doméstica. Revista Consultor Jurídico. Disponível em: encurtador.com.br/ntQZ9; COSTA, Adriano Sousa e ARAÚJO, Anderson Marcelo de. Temas controversos da Lei Henry Borel. Revista Consultor Jurídico. Disponível em: encurtador.com.br/vQ246, acesso em 22/10/22.
[5] BARBOSA, Ruchester Marreiros. Alteração na Lei Maria da Penha efetiva garantias, mas viola a Constituição. Revista Consultor Jurídico. Disponível em: encurtador.com.br/xHM13. Acesso em 6/10/2022.
[6] É possível consultar a relação de varas existentes no país pelo painel do Módulo de Produtividade Mensal, disponível na página de painéis do DPJ: encurtador.com.br/BGIV6, acesso em 6/10/2022.
[7] Acesso detalhado das varas especializadas por crime contra criança e adolescente no painel do CNJ, disponível em: encurtador.com.br/pBTW4, acesso em 6/10/2022.
Publicação original: https://www.conjur.com.br/2022-out-25/academia-policia-tj-rj-promove-seletividade-protetiva-lei-henry-borel#author
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