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Pai, por que me abandonaste?
Luciana Brasileiro, advogada, mestre e doutora em direito privado pela UFPE, vice presidente da comissão de direito e arte do IBDFAM, conselheira científica do IBDFAM/PE, pesquisadora do Grupo Constitucionalização das Relações Privadas da UFPE.
Recentemente circulou nas redes sociais um vídeo do ator André Gonçalves, pivô de polêmicas envolvendo não pagamento de pensão alimentícia, se retratando com a filha pela sua ausência paterna.
O vídeo faz parte de acordo judicial celebrado pelo autor com sua filha Manuela, na cobrança dos alimentos por ele devidos.
Já tendo cumprido prisão domiciliar pela dívida acumulada de pensão com outra filha, o ator reconhece no vídeo ter sido um pai ausente, pede desculpas e assume a sua (ir)responsabilidade paterna. A cena de um pai conhecido nacionalmente pelos seus personagens (por acaso não me ocorre nenhum neste momento) pouco convence. Ele lê um texto mecanicamente, sem qualquer emoção, sem esforço para representar um arrependimento qualquer, cumprindo uma função protocolar. Imediatamente fui jogada na leitura Kafkaniana de Carta ao Pai, que embora com papéis invertidos, nos faz entrar na fria relação havida entre Kafka e seu pai (genitor?), onde ele chega a questionar a falta de afeto do pai, reconhecendo seu temor reverencial a ele, aqui usando o meu parco conhecimento sobre as teorias freudianas de lei e proibição.
Mas a carta lida pelo ator André Gonçalves nos sinaliza um outro momento vivenciado pela prática familiarista. Quantas demandas judiciais envolvendo cobrança de alimentos trazem consigo a atitude lesiva de responsáveis financeiros que se omitem em relação às necessidades de seus dependentes? E de que forma estamos criando mecanismos para fazer com que estes alimentos sejam adimplidos? O Brasil adota a sistemática da prisão civil para o incumprimento dos alimentos, mas não nos parece que tenhamos alcançado um patamar de consciência de responsabilidades sobre estes alimentantes. Não raro, nos deparamos com famílias completamente disfuncionais, repletas de conflitos. O não pagamento da pensão, especialmente quando feito de forma deliberada, ou seja, totalmente fora do cenário de incapacidade para o pagamento, representa uma forma de violência intrafamiliar, para além da omissão.
Mecanismos alternativos para o cumprimento, como a inscrição em cadastros negativos de crédito, apreensão de passaporte e suspensão de CNH têm surgido como caminhos outros para a busca do adimplemento.
Nos parece que a retratação surge aqui como uma forma de fazer com que o devedor não só reconheça o incumprimento, mas se autorresponsabilize pelo ilícito cometido. Especialmente quando este ilícito, além de patrimonial, venha a ser também existencial. Na carta dedicada ao pai, Kafka deixa o seu recado da ausência de uma figura afetuosa. Afirma que era uma criança teimosa, difícil de lidar, mimada pela mãe, “nem que uma palavra amável, um silencioso levar pela mão, um olhar bondoso não pudesse conseguir de mim tudo que quisesse.”[1]
Pois sim. Ele queria mais que um pai que lhe preparasse para as agruras da vida, ou que lhe proporcionasse, patrimonialmente, conforto. Queria um pai menos ameaçador. A convivência familiar é uma garantia constitucional e a sua ausência já trouxe outros contornos jurídicos, como a indenização pelo abandono afetivo.
O movimento de redemocratização do país trouxe às famílias, pela primeira vez, uma abordagem igualitária de direitos e deveres para homens e mulheres. Ou melhor, isonômica. As mulheres então, passaram a se inserir no mercado de trabalho e a contribuir patrimonialmente para a manutenção do lar familiar, do patrimônio comum. O movimento feminista favoreceu este cenário, através do lobby do batom. Os homens, por sua vez, deveriam assumir as atividades domésticas, antes destinadas exclusivamente à mulher.
O que falta para concluirmos que este cenário se concretizou, trinta e quatro anos após a promulgação da constituição Federal de 1988? A inserção masculina no trabalho doméstico. As mulheres ainda acumulam esta atividade com suas vidas profissionais (ainda precarizadas) e ainda lideram os números em assunção de responsabilidades parentais. A guarda compartilhada, que é regra geral na lei, ainda não se materializou como maioria na prática. É uma mudança cultural, uma transformação do provedor, para o pai.
É certo, no entanto, que há homens fazendo um importante movimento inverso. O da luta pela inserção mais intensa na vida dos filhos. A aqui mencionada guarda compartilhada, é uma vitória de um grupo de pais que buscaram a sua inserção expressa na lei, como forma de viabilizar a participação efetiva na vida dos filhos após o desfazimento da conjugalidade.
Esta postura, que é a esperada de qualquer pessoa que se propõe a um planejamento familiar de concepção, ainda surpreende uma parcela da população que não vislumbra a figura paterna na atividade doméstica.
O pedido público de retratação, então, vem se somar às teorias progressistas. Autorresponsabilizar-se, ainda que de forma mandatória, judicial (mas poderia ter sido decorrente também de um acordo extrajudicial) é se expor para a sociedade e se impor uma reflexão sobre seu verdadeiro papel social. Kafka se queixa de ter tido um pai patrimonialmente presente, afetivamente vazio. Pior. Cheio de culpas e medos de um pater que não lhe escondia os sacrifícios feitos na vida para proporcionar à família conforto e prestígio.
Nem sempre é sobre isto, quase sempre é sobre afeto.
Notas:
[1] KAFKA, Franz. Carta ao Pai. São Paulo: Companhia das Letras, 12ª reimpressão, p. 07
Publicação original: https://juridicamente.info/pai-por-que-me-abandonaste/
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