Artigos
A possibilidade jurídica do uso do testamento na herança digital diante da ausência de instrumentos específicos
Samara Oliveira Fonseca*,
Isa Omena Machado de Freitas**
RESUMO
Este artigo tem como tema a possibilidade de regulamentação do instituto da herança digital por meio de instrumentos do direito sucessório. O objetivo geral é identificar se há ausência de regulamentação no que diz respeito à herança digital no ordenamento jurídico brasileiro e se o testamento pode servir de instrumento para que sejam resguardados os direitos de personalidade do de cujus nos casos de transmissão das redes sociais. Os objetivos específicos são conceituar o instituto da herança digital, especificar quais direitos de personalidade do de cujus podem ser atingidos por tal instituto na transmissão das redes sociais e investigar se o testamento pode auxiliar na regulamentação da herança digital, se ausente instrumento específico. A relevância deste tema para a área de conhecimento situa-se na medida em que se poderá ter noção do pensamento da doutrina em relação ao assunto em pauta, por isso o problema deste trabalho é a respeito da investigação do uso do testamento como instrumento que versa sobre os direitos de personalidade do de cujus referente na herança de redes sociais no instituto da herança digital. A pesquisa é exploratória, com abordagem qualitativa, o procedimento técnico de delineamento será o de pesquisa bibliográfica. Método dedutivo. Conclui-se que a doutrina existente considera o testamento como instrumento apto a regulamentar a herança digital, desde que com adaptações a esse fenômeno jurídico, e que há ausência de regulamentação específica dessa matéria no ordenamento jurídico brasileiro.
Palavras-chave: Herança Digital; Redes sociais; Testamento.
ABSTRACT
This article's theme is the possibility of regulating digital inheritance through instruments of inheritance law. The general objective is to identify whether there is a lack of regulation regarding digital inheritance in the Brazilian legal system and whether the testament can serve as an instrument to protect the personality rights of the deceased in cases the of transmission of social networks. The specific objectives are to conceptualize the notion of digital inheritance, to specify which of the deceased person's personality rights can be affected by this concept in the transmission of social networks, and to investigate whether the last will and testament can assist in the regulation of digital inheritance in the absence of a specific instrument. The relevance of this theme to the area of knowledge is located in the extent to which one has an idea of the doctrine's thinking in relation to the subject in question, therefore the problem of this work is investigating the use of the testament as an instrument that addresses the personality rights of the deceased person regarding the inheritance of social networks in the institute of digital inheritance. The research is exploratory with a qualitative approach, and the technical procedure of delineation will be bibliographic research. Deductive method. It concludes that the existing doctrine considers the will as a suitable instrument to regulate digital inheritance provided that there are adaptations to this legal phenomenon, and that there is a lack of specific regulation of this matter in the Brazilian legal system.
Keyword: Digital Inheritance; Social Networks; Last Will and Testament.
1 INTRODUÇÃO
Diante da presença constante da tecnologia na vida cotidiana, se faz necessário melhorar o entendimento acerca dos institutos que surgem, dentre os quais está a herança digital, um instituto considerado jovem e que ainda está se desenvolvendo dentro do ordenamento jurídico brasileiro, embora legislações como o Código Civil de 2002, o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965 de 2014) e a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709 de 2018) tentem suprimir, no que lhes cabe, esta lacuna.
Sabendo disto, é essencial aclarar alguns mecanismos e normas que buscam regulamentar o tema para compreender se há ou não ausência de regulamentação da herança digital no ordenamento jurídico pátrio e, em havendo, se é possível a regulamentação dessa matéria por meio de testamento. Serão abordados o conceito de tal instituto, bem como investigado se há ausência de legislação específica sobre o tema, bem como estudar direitos de personalidade do de cujus que podem vir a ser atingidos por tal instituto na transmissão das redes sociais.
É imprescindível compreender que o testamento vem sendo estudado e, inclusive, considerado pelo Projeto de Lei 1.689 de 2021, como ferramenta que auxilia na limitação e regulamentação da herança digital para que, após feita a transmissão das redes sociais, não haja uso abusivo ou degradante da imagem e dados do de cujus que foram incorporados à herança.
O foco desse projeto, é, portanto, investigar se o testamento pode ser utilizado como instrumento que versa sobre os direitos de personalidade do de cujus referente à herança de redes sociais no instituto da herança digital, caso seja demonstrada a ausência de previsão legal de instrumento específico. Em sendo cabível o referido instrumento, será apresentado, com base na pesquisa realizada, um modelo de testamento adaptável aos casos de herança digital de redes sociais.
Para tanto, buscar-se-á identificar se há ausência de regulamentação no que diz respeito à herança digital no ordenamento jurídico brasileiro e se o testamento pode servir de instrumento para que sejam resguardados os direitos de personalidade na transmissão das redes sociais após a morte de seus usuários, bem como conceituar o instituto da herança digital; especificar quais direitos de personalidade do de cujus podem ser atingidos por tal instituto na transmissão das redes sociais, bem como investigar se o testamento pode auxiliar na regulamentação da herança digital se houver ausência de regulamentação de tal instituto no ordenamento jurídico brasileiro.
Para alcançar tal fim, a pesquisa utilizará a metodologia da pesquisa jurídica, cuja finalidade é a análise dos conceitos operacionais da pesquisa sob uma perspectiva dedutiva.
Será realizado por meio de pesquisa exploratória, em análises qualitativas, baseadas em pesquisas bibliográficas (doutrinas) e documentais (legislação e jurisprudência), buscando identificar as melhores opções para regulamentação da herança digital, principalmente no que diz respeito ao uso do testamento como instrumento que limite o exercício dos herdeiros, a fim de garantir a proteção dos direitos de personalidade do de cujus.
De acordo com o exposto, esta pesquisa busca investigar se há ausência de regulamentação da herança digital e quais direitos de personalidade do de cujus podem ser por ela atingidos, bem como investigar de qual forma o testamento pode ser adequado para atender a este fenômeno jurídico, obtendo assim, através de uma ótica dogmática, uma conclusão lógica.
2 O INSTITUTO DA HERANÇA DIGITAL FRENTE AO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
A herança digital é um instituto jovem no ordenamento jurídico brasileiro e que ainda possui uma interpretação nublada, uma vez que as legislações não são específicas para a forma como ocorre, ainda que haja o uso cada vez mais frequente das redes sociais, não apenas como forma de lazer, mas como fonte de renda. Apesar disto, a legislação existente tenta contribuir, dentro dos parâmetros possíveis, para o conceituar e regulamentar da herança digital, a exemplo do Código Civil de 2002, o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965 de 2014) e a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709 de 2018).
Antes de tratar diretamente sobre o instituto da herança digital, cabe conceituar herança dentro do ordenamento jurídico brasileiro. Prevista no artigo 1.784 do Código Civil Brasileiro, a herança tem como marco inicial a abertura da sucessão que nada mais é do que o falecimento de alguém que deixe bens a serem transmitidos aos seus herdeiros legítimos ou testamentários. Por força constitucional, o direito sucessório possui caráter de direito fundamental (artigo 5, inciso XXX, CF/88).
Quanto aos sucessores, são legítimos os herdeiros que possuem direito legal ao recebimento da herança, tal qual ocorre com os herdeiros necessários, aqueles previstos no rol do artigo 1.845 do Código Civil, sendo eles os descendentes, ascendentes e o cônjuge, sendo de pleno direito destes o recebimento de metade dos bens da herança.
Os herdeiros testamentários, por sua vez, são aqueles cujo direito de herdar se dá por meio do documento chamado testamento, podendo ser pessoa jurídica ou física, nascida ou concebida no momento da sucessão, dependendo exclusivamente da vontade do testador em dispor seus bens para com elas, desde que não lese direito dos herdeiros legítimos supracitados.
Tendo tais noções de direito sucessório, cabe agora conceituar o que é a herança digital propriamente dita. Sobre o tema, Biguelini (2018, p. 31) expõe que:
A herança é compreendida como o conjunto de bens deixados pelo de cujus. E fazendo uma interpretação extensiva desse direito com base nos bens digitais, pode-se dizer que a herança digital, nada mais é que o patrimônio digital deixado pelo autor da herança. E esse patrimônio poderá incluir desde fotos, vídeos, livros, documentos de modo geral, como também contas nas redes sociais.
Em complementação ao conceito de herança digital, Stacchini (2013, apud GOMES, 2021, p. 29) dispõe que:
A herança digital é todo o patrimônio passível de armazenamento em servidores virtuais, como músicas, fotos, vídeos, investimentos, dentre outros. Na busca de facilitar o gerenciamento dos arquivos digitais após a morte do usuário, algumas empresas passaram a oferecer “informações de serviços visando a facilitar o gerenciamento post mortem de bens digitais”.
Sendo assim, pode-se conceituar a herança digital como um conjunto de bens deixados pelo de cujus na esfera digital e que são passiveis de armazenamento em servidores virtuais, englobando de fotos e arquivos de mídia similares a documentos ou moedas que possuem valor na internet ou fora dela.
É perceptível que a regulamentação de tal instituto, na prática, vem sendo feita de forma desigual pelas próprias plataformas que ofertam serviços digitais, a exemplo do Facebook, e redes semelhantes, que oferecem a opção aos seus usuários de incluírem contatos herdeiros para que, após sua morte, transformem sua rede social em memorial ou a deletem de forma permanente.
Ocorre, porém, que tal regulamentação não deveria ser feita de forma discricionária pelas plataformas ou outros serviços que armazenem dados de natureza pessoal, mas deveria o legislador estabelecer meios adequados e legais para que se realize a desativação dessas redes ou, a desejo do de cujos e seus herdeiros, de garantir que a partilha que envolva redes sociais, nas quais se encontram informações e registros da vida pessoal do de cujus, seja feita de modo a garantir efetiva proteção aos direitos de personalidade deste.
Tendo em vista tal premissa, passou a ser tópico de discussão na doutrina se os acervos digitais seriam considerados ou não como bens suscetíveis de partilha e que, quando o fossem, se devia ou não haver um instrumento particular que limitasse seu uso de modo que seus herdeiros não viessem a causar qualquer lesão aos direitos do de cujus. Segundo Gomes (2021, p. 23),
A doutrina majoritária considera que os acervos digitais se enquadram no conceito de “bem”, porém quanto à sua classificação existem controvérsias. Eles não podem ser considerados bens imóveis porque não preenchem o texto do artigo 79 do Código Civil, que define os bens imóveis como “o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente”. E não podem ser classificados como bens móveis pelo fato de não se enquadrarem no artigo 82 do referido código: “São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social”.
Há ainda outra corrente que afirma que os direitos inerentes à herança digital podem se enquadrar nos moldes do inciso II do artigo 80 do Código Civil Brasileiro, ou seja, todo material armazenado virtualmente que se transmite aos herdeiros necessários e testamentários, conforme dispõe o artigo 1.784 do mesmo Código, seriam considerados bens imóveis por ser a herança digital considerada uma sucessão aberta (BIZZERRA, 2022, p. 11).
Outro debate doutrinário se dá em relação à sucessão de bens digitais que possuam ou não valoração econômica. Isso ocorre, principalmente, em relação aos últimos, porque se torna cada vez mais comum que as pessoas utilizem da internet como meio de trabalho e sustento, sendo assim, o acervo digital de grandes sites ou blogs, por exemplo, podem ter um valor monetário tão considerável que afetaria até mesmo a legítima dos herdeiros, uma vez que podem continuar gerando lucros até mesmo após a morte do proprietário (LIMA, 2013, p. 33).
Segundo Pereira (2020, p. 147), “a herança digital é algo relativamente novo e consequentemente o testamento digital também, há algumas dificuldades a serem enfrentadas, principalmente porque esse tema encontra óbice na própria cultura”. Isso se refere ao fato de que os bens com valor afetivo costumam ser alvo de maiores controvérsias, por isso, uma das propostas feitas pelo próprio Legislativo brasileiro é de que se utilize do testamento para realizar tal transmissão.
Gagliano e Filho (2022, p. 94) afirmam que no âmbito do Direito Digital é necessário fazer o uso da interpretação extensiva e até mesmo da analogia, uma vez que a atividade legislativa não consegue acompanhar, de fato, as mudanças rápidas que ocorrem nesses tipos de relação. Apesar disto, o direito sucessório trata de relações mais profundas e sensíveis, principalmente por envolver a perda de um ente querido.
Para essa parte dos estudiosos, é necessário viabilizar o uso de instrumentos particulares, como o testamento, para garantir que haja uma rápida resposta estatal quanto à distribuição dos bens virtuais do de cujus, isto é, fazendo ser cumprida sua última vontade deixada em testamento ou até mesmo codicilo, como propõe o Projeto de Lei PL 1.689/2021, que dispõe sobre perfis, páginas, contas, publicações e os dados pessoais de pessoa falecida, e seu tratamento por estes instrumentos.
Há ainda diversos questionamentos sendo feitos acerca sobre a herança digital, uma delas seria em relação ao falecimento de pessoa que deixasse bens digitais armazenados, mas não tivesse qualquer herdeiro. A maior parte da doutrina existente sobre o tema tem concordado com o posicionamento expressado no Projeto de Lei PL 1.689/2021, feita pela deputada federal Alê Silva, que diz que
Em caso de falecimento em que não haja herdeiros legítimos, o provedor de aplicações de internet deverá eliminar o perfil, publicações e todos os dados pessoais do falecido, desde que seja informado da morte e lhe seja apresentado atestado de óbito [...] as publicações feitas em provedores de aplicações de internet constituem direitos patrimoniais do autor, para fins da Lei de Direitos Autorais.
A proposta que tramita no Legislativo é no sentido de que todo o acervo virtual integre direitos patrimoniais do autor para os fins da Lei de Direitos Autorais, sendo assim, caberá a este decidir o que deverá ser feito com suas redes sociais após a sua morte. Uma parte dessa proposta seria tratar as redes sociais daquele que não tem herdeiro como herança jacente, podendo ser mantida por um período não superior a 70 anos ou excluída imediatamente após apresentação de certidão de óbito, a depender da vontade do próprio de cujus.
Ainda são muitos os questionamentos e lacunas no que diz respeito à herança digital e, enquanto não há lei específica sobre a temática, o Judiciário e as próprias plataformas tentam atuar para auxiliar na aplicação do Direito. Embora os bens digitais necessitem de regulamentação, possuem especificidades próprias que acabam tornando ineficazes as normas que dizem respeito apenas aos bens móveis ou imóveis, já que estas não preveem suas características específicas, carecendo, assim, de normas que tragam institutos inovadores que os regulamentem ou adaptação aos já existentes para que não haja um vão tão grande quando se der a abertura da sucessão.
3 DIREITOS DE PERSONALIDADE DO DE CUJUS AFETADOS PELA TRANSMISSÃO DE REDES SOCIAIS NA HERANÇA DIGITAL
Segundo Zanin (2021, não paginado), “Direitos da personalidade são direitos civis que preservam a individualidade de cada pessoa”, normalmente, estão atrelados às ideias de direito à imagem, à vida, ao nome e à privacidade. Ainda segundo ela, os direitos de personalidade podem ser divididos em três grandes categorias: Direitos à integridade física, à integridade psíquica e à integridade moral.
Marighetto (2018, não paginado) classifica os direitos de personalidade como “direitos subjetivos absolutos”, uma vez que se relacionam intimamente com a personalidade do ser humano, suas características fundamentais e primordiais. Este ressalta que, no ordenamento jurídico brasileiro, os direitos de personalidade englobam
o direito à dignidade; o direito à liberdade (e o direito à livre iniciativa na forma e nos limites estabelecidos pela Lei); o direito à igualdade; o direito à segurança; o direito à cidadania; o direito à vida, o direito à integridade física e psíquica, o direito ao nome; o direito à imagem; o direito à inviolabilidade da vida privada; o direito à liberdade de pensamento e de expressão; o direito à propriedade; o direito a ser submetido ao justo processo; e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (direito novo, difuso e de exclusiva natureza pública). Trata-se de elenco “aberto” e não necessariamente taxativo, mas que muda e evolui conforme o “nível de civilização” da sociedade, ou seja, que depende das conquistas da sensibilização e do progresso das ciências naturais e humanas.
Diante da temática abordada, assim que ocorre a abertura da sucessão (falecimento de alguém), o de cujus ainda tem resguardados os direitos relativos à sua integridade física, pois seu cadáver não poderá ser objeto de estudo ou exposição sem prévia autorização, como ocorre com os corpos doados a universidades de medicina nos termos do artigo 14 do Código Civil, bem como não podem ser extraídos ou objeto de abusos, como bem prevê o Código Penal Brasileiro.
No que diz respeito à herança digital, porém, há que se falar especialmente da terceira categoria, que abrange os direitos à integridade moral, uma vez que abarcam direitos do indivíduo como a honra, a intimidade, a privacidade, a propriedade intelectual e tantos outros direitos relativos à figura do de cujus.
A Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que institui o Código Civil Brasileiro, preceitua em seu artigo 1º que todas as pessoas são capazes de direitos e deveres na ordem civil, assim sendo, desde antes do nascimento e até mesmo depois da morte o Direito resguardará pelos direitos inerentes à pessoa, como seu nome, imagem, dignidade e tantos outros direitos.
Isso porque no artigo 6º do Código Civil está disposto que “a existência da pessoa natural termina com a morte”, ainda que presumida. Em razão disso, se discutia a extinção da personalidade, e dos direitos à ela inerentes, com a morte da pessoa natural. É fato que a personalidade tem fim, mas alguns dos direitos prevalecem até mesmo neste cenário, o que a doutrina chamou, posteriormente, de personalidade post mortem. Segundo Gomes (2021, p. 28) alguns dos direitos referentes ao de cujo ainda podem ser tutelados mesmo após a morte, dentre os quais se pode citar o respeito ao morto, à sua honra ou memória e aos seus direitos como autor.
Em 2006, a jurisprudência pátria se fixou no sentido de que era cabível indenização por danos morais e materiais por danos à honra e a imagem de pessoa falecida após o julgamento do Recurso Especial nº 521.697-RJ sob o argumento de que
não se pode subtrair dos filhos o direito de defender a imagem e a honra de seu falecido pai, pois eles, em linha de normalidade, são os que mais se desvanecem com a exaltação feita à sua memória, como são os que mais se abatem e se deprimem por qualquer agressão que lhe possa trazer mácula. (REsp 521.697-RJ – Quarta Turma – Relator: Ministro CESAR ASFOR ROCHA. Julgado em: 18/02/2006. Publicação: 20/03/2006. Jurisp. Mineira, Belo Horizonte, a. 57, n° 176/177, p. 407-458, janeiro/junho 2006, p. 423).
Há no referido acórdão um vislumbre do que seria discutido, posteriormente, no âmbito digital. À época do acordão, eram utilizados livros, canais televisivos ou rádios para propagarem notícias referentes às pessoas, porém, tal proliferação se dá de forma ainda mais célere e facilitada por meio das redes sociais.
Se a honradez ou a boa fama de um nosso antepassado reflete sua luz benéfica sobre o nosso nome e a lembrança da honorabilidade dele constitui um prestígio para nós no seio da sociedade, de modo que a sua boa fama se torna um direito nosso, o descrédito lançado sobre a memória de um nosso parente morto projeta igualmente sobre nós sua sombra funesta e de certo modo nos comunica o mesmo desdouro, vexando-nos e diminuindo o nosso valor moral. O respeito aos mortos outra coisa não é que o respeito à integridade moral dos seus descendentes e a consideração que desfrutam junta à sociedade. O direito violado pela ofensa aos mortos é, portanto, um verdadeiro e próprio direito que reside na pessoa dos seus parentes supérstites [...] Garrincha morreu pobre, nada deixou de herança à sua numerosa prole, a não ser seu nome, a sua lembrança, a sua imagem. Além do aspecto moral até aqui ressaltado, essa imagem, se tem algum valor econômico, pertence aos seus herdeiros, cabendo a eles, e só a eles, o direito de explorá-la (REsp 521.697-RJ – Quarta Turma – Relator: Ministro CESAR ASFOR ROCHA. Julgado em: 18/02/2006. Publicação: 20/03/2006. Jurisp. Mineira, Belo Horizonte, a. 57, n° 176/177, p. 407-458, janeiro/junho 2006, p. 427).
Já neste contexto, o Judiciário brasileiro foi cirúrgico ao indicar que os direitos econômicos, ainda que vinculados à imagem do de cujus ainda pertencem aos seus herdeiros, não podendo terceiros usarem dessa propriedade imaterial para obter lucro. Nesse mesmo sentido, o Conselho de Justiça Federal publicou o Enunciado nº. 400 da V Jornada de Direito Civil em 2017, no qual ficou assegurada a legitimidade do cônjuge ou companheiro, e até mesmo demais parentes, para buscar em juízo reparação contra lesão causada post mortem.
As redes sociais vêm sendo um canal de facilidade, uma vez que há uma dificuldade em limitar o acesso às informações publicadas na rede e, por isso, até mesmo desconhecidos acabam por ter cópias de fotos, vídeos, áudios, textos e tantos materiais semelhantes publicados virtualmente, o que demanda cuidado próprio dos usuários e das próprias plataformas.
As redes sociais são, segundo Rodrigues (2022, não paginado), o conjunto de sites e aplicativos que operam em níveis diversos com a finalidade de compartilhamento de informações interpessoalmente ou entre empresas, seja com finalidade profissional, de relacionamento, estudantil ou outros interesses. Dessa forma, se enquadram na categoria de meios de comunicação e, ao mesmo tempo, são uma forma de armazenamento, pois arquivos de mídias ali disponibilizados ficam públicos até a retirada pelo autor das postagens, havendo, ainda, a possibilidade de terceiros ou ele próprio terem feito copias do referido material.
Como já dito, a herança digital é um conjunto de bens deixados pelo de cujus na esfera digital que são armazenáveis em servidores virtuais, incluindo fotos, arquivos de mídia similares a documentos ou moedas. O artigo 11 do Código Civil vem dizer que “com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária”.
Devido a tal disposição legal, discute-se na doutrina a legalidade da disposição de bens e direitos relativos à personalidade por meio de instrumentos de direito sucessório, pois poderia acarretar em séria violação à honra ou à imagem do de cujus que suas fotos e vídeos continuassem sendo utilizadas em redes sociais ativas ou até mesmo movimentações de criptomoedas em seu nome.
Nesse sentido, Barbosa (2017, p. 39 apud Pereira, 2020, p. 37) defende a posição de que
Ao se realizar a ponderação entre os direitos especificados, deve-se levar em consideração que a vontade do falecido poderia ser no sentido de manter as suas informações pessoais em segredo, visto que o acesso a elas era dado unicamente a si quando em vida. Portanto, é necessário avaliar: seria da vontade do falecido que os seus herdeiros obtivessem acesso ao conteúdo existente nas suas contas digitais, como e-mail, armazenamento em nuvem e ao conteúdo privado das redes sociais, que só poderia ser visto por si mesmo? Ademais, é necessário considerar que os recursos acima especificados são completamente diferentes, no quesito privacidade, daqueles constantes em postagens públicas de redes sociais, por meio das quais se pode dar acesso a um número indeterminado de pessoas sobre certa informação. O conteúdo a que ora se refere é aquele de cunho privativo do usuário da conta/recurso, na maioria das vezes sigiloso, acessado apenas por meio de senhas ou códigos de acesso.
É nesse cenário que Gomes (2021, p. 30) reforça a necessidade de elaboração da figura de um testamento virtual, uma vez que “diante da ausência da manifestação de vontade do falecido em relação ao seu acervo digital, deve o acesso aos seus bens digitais podem ser acessados pelos legitimados do Código Civil”.
É preciso ter cautela, entretanto, já que a disposição testamentária que dá acesso aos herdeiros às redes sociais do de cujus precisam ser observadas de forma mais criteriosa no momento da assinatura do documento, por exemplo, pois, se autorizado, aquele instrumento deverá conter todas as limitações necessárias à uma sucessão que não lese qualquer direito personalíssimo.
Defendendo tal posicionamento, Lara (2016, p. 92 apud Pereira, 2020, p. 37) traz os diferenciais do testamento dos bens digitais, afirmando que
No testamento de bens digitais podemos deixar instruções claras sobre o destino de nossos bens digitais: nossas senhas de acesso aos sites, e-mails e redes sociais; um inventário prévio de nosso patrimônio digital; e até mesmo os contatos que os sucessores devam realizar para acessar a esse patrimônio, tais como os endereços eletrônicos, telefones de contato de alguma empresa contratada previam ente para inventariar todo nosso acervo digital.
Em razão disto, Pereira (2020, p. 37) afirma que é preciso ter uma legislação específica aprovada o quanto antes para que seja feita a transmissão de bens digitais por meios testamentários, principalmente, no que diz respeito aos que não possuem valor econômico, mas meramente afetivo. Ressalta-se, ainda, a imprescindibilidade de que tal inovação legislativa se dê de forma compatível com as legislações que, atualmente, desempenham esse papel regulador, tais quais o próprio Código Civil de 2002, o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965 de 2014) e a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709 de 2018).
A jurisprudência pátria também vem se posicionando no sentido de que se estende aos herdeiros o direito de defender direitos de entes queridos mesmo após a sua morte, a exemplo da Súmula 642 do Superior Tribunal de Justiça que determina que “o direito à indenização por danos morais transmite-se com o falecimento do titular, possuindo os herdeiros da vítima legitimidade ativa para ajuizar ou prosseguir a ação indenizatória”.
Segundo Couto (2020, não paginado), a referida súmula teria afrontado o disposto no artigo 111 do Código Civil Brasileiro, onde está previsto que “com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária”, uma vez que o Tribunal Superior teria acolhido a possibilidade de transmissão do direito à indenização, fosse em razão do falecimento do autor no curso da ação ou antes mesmo de sua propositura.
Assim sendo, muitas decisões jurisprudenciais se posicionam no sentido de que é legítimo o direito dos herdeiros de pleitearem em juízo tutela de lesões causadas post mortem por terceiro, mas não havendo regulamentação ou havendo regulamentação lacunosa, e que é possível que a transmissão de redes sociais por meio de testamento não imponha limites necessários à preservação dos direitos de personalidade do de cujus, podendo essa sucessão causar lesões juridicamente reconhecidas à sua imagem, sua honra e sua propriedade material.
4 O TESTAMENTO COMO INSTRUMENTO QUE AUXILIARIA NA REGULAMENTAÇÃO DA HERANÇA DIGITAL
Segundo Gonçalves (2014, p. 24) a herança é caracterizada pelo somatório de bens, dívidas, direitos, obrigações, pretensões e ações, desde que transmissíveis. Segundo ele, os bens incorpóreos não se enquadram dentro do conceito “domínio” e que, por isso, o dispositivo legal introduziu o termo “herança”.
O artigo 1.786 do Código Civil Brasileiro é claro ao dizer que “a sucessão dá-se por lei ou por disposição de última vontade”, no último caso é onde se enquadra a possibilidade de sucessão por meio de testamento. A sucessão testamentária é aquela que se dá em razão da expressa manifestação de última vontade, em testamento ou codicilo.
O foco da presente pesquisa está na figura do testamento dentro da herança digital, razão pela qual, não se aprofundará muito na figura do codicilo. Testamento é, segundo a doutrina clássica, um instrumento derivado da máxima “Testamentum est voluntatis nostrae justa sententia, de eo, quod quis pos mortem suam fieri velit” (Testamento é a justa manifestação de nossa vontade sobre aquilo que o indivíduo quer que se faça depois da morte), porém, há discussões acerca da imprecisão desse conceito.
Pereira (2020, p. 17), aborda o testamento com um conceito mais legalista, sendo este considerado um ato personalíssimo, unilateral, solene e revogável, podendo ser alterado a qualquer tempo, por força legislativa do artigo 1.858 do Código Civil.
É personalíssimo e unilateral porque depende de uma única manifestação de vontade e esta manifestação deve ser do autor da herança, ou seja, do de cujus, sem o uso de procuração ou por meio de assistência ou representação. Ainda assim, não há vedações em relação à ação de terceiro na transcrição da manifestação de vontade do testador, como ocorre com o tabelião, que poderá redigir a minuta do testamento nos termos daquele.
É ato solene pois deve observar as formalidades descritas em lei para ter validade, salvo nos casos em que a própria Lei flexibilizar; e, por fim, é ato revogável pois o testador pode revogá-lo, total ou parcialmente, quantas vezes quiser, sendo válido aquele último escrito por ele se não tiver finalidade meramente complementar.
Tendo em vista a lacunosa regulamentação da herança digital na realidade brasileira, a Deputada Federal Alê Silva justificou a indicação do testamento como instrumento cabível no PL 1.689/2021 pois é preciso garantir que o sujeito tenha como velar por todos os seus direitos, ainda que a legislação não os alcance tão prontamente. Ela afirmou no referido projeto que,
é possível ao testador incluir em seu testamento os direitos autorais, os dados pessoais e as demais publicações e interações que estejam em provedores de aplicações de internet. Com exceção do testamento público, que deve ser lavrado em cartório, preceituamos que os testamentos cerrado e particular e os codicilos serão válidos em formato eletrônico, quando assinados digitalmente com certificado digital pelo testador, na forma da lei. (PL 1.689/2021, 2021, p. 04.)
Por meio disto, visa-se incluir no artigo 1.857 do Código Civil um terceiro parágrafo que autorize a disposição de direitos autorais e mídias armazenadas nas redes sociais por meio de testamento, além da criação de um artigo 1.863-A que determinaria quais espécies de testamento seriam legítimas para essa transmissão.
Direitos autorais são aqueles previstos em Lei a fim de proteger os autores e sua exclusiva exploração sobre suas criações, os quais se resguarda por meio de um Certificado de Registro de Direito Autoral. O referido certificado é sucessível pelos herdeiros do autor e terá validade por mais 70 anos, com base no disposto no artigo 41 da Lei nº 9.610 de 1998, que regula os Direitos Autorais.
Nesse sentido, se pode ressaltar o caso ocorrido no Brasil em 2001, quando Francisco Ribeiro Eller herdou de sua mãe, a renomada cantora Cássia Eller, royalties por direitos autorais e valores relacionados às vendas de discos post mortem. Por ser uma criança à época da abertura da sucessão, a administração desses bens ficou por conta de sua madrasta, Maria Eugênia, até que o herdeiro viesse a atingir sua maioridade no ano de 2012.
Assim sendo, enquanto não se vislumbra regulamentação por instrumento específico da herança digital, o testamento se mostra como o mais eficaz para suprir a necessidade social que a herança das redes sociais demanda, já que não se fala apenas de um objeto passível de sucessão, mas um conjunto de bens jurídicos atrelados a nome, imagem e à própria personalidade do de cujus.
Pode-se, na presente discussão, citar, também, a discussão que se deu entre o pai do cantor Cristiano Araújo contra as plataformas Google, Yahoo, Facebook e Microsoft em razão da disponibilização das fotos do cantor durante a preparação do corpo do jovem para o funeral nos mecanismos de busca e redes sociais. Em outubro de 2015 o juiz Clauber Costa Abreu, da 15ª Vara Cível de Goiânia decidiu liminarmente, com base nas informações mantidas públicas, que as referidas plataformas deveriam
suprimir, bloquear e/ou excluir os resultados de busca de suas ferramentas de pesquisa dos links[1] e hash[2] informados, onde estivessem contidos fotos e vídeos relacionados à imagem do falecido filho do autor no local do acidente automobilístico que o vitimou fatalmente e dos momentos que se seguiram, com destaque para o procedimento da necropsia e do velório. (Processo 357751-62.2015.8.09.0051, não paginado, Tribunal de Justiça do Estado do Goiás, Juiz Clauber Costa Abreu).
Segundo Gomes (2017, não paginado), o Google chegou a recorrer da decisão, porém, teve seu recurso negado por decisão unânime de desembargadores da 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Goiás no dia 8 de agosto de 2017, ficando obrigado a deletar todas as imagens do cantor no local do acidente ou na necropsia de seus mecanismos de busca. O Facebook, por sua vez, acabou tendo o recurso acolhido no sentido de não ter controle prévio sobre o que os usuários postariam na rede social, mas que fariam controle repressivo e posterior desse tipo de conteúdo.
O acesso às redes sociais por parte dos herdeiros pode ser, segundo Sankievicz (2021, não paginado), de suma importância para que haja o fornecimento de informações sobre contas bancárias, assinaturas de serviços, criptomoedas e sociedades em empresas. Pensando nessa possibilidade e estudando diversas outras pesquisas sobre o tema, é clara a necessidade de um testamento que seja válido e limitado de modo que o espólio não venha a usar de forma abusiva ou degradante da herança que lhes foi deixada em armazenamento virtual, e, ao mesmo tempo, não lhe seja negado o acesso a informações de extrema importância sobre bens incorpóreos do de cujus.
Para evitar ainda mais a saturação no Judiciário brasileiro ou até mesmo não se deixar a cargo das plataformas decidir acerca da manutenção e exclusão das redes sociais, o testamento poderia ser adequado de diversas formas para atender à demanda que herança digital cria no cenário social, cada vez mais envolvido pela tecnologia.
Depois de realizado estudo acerca de tal realidade social, com base na legislação vigente, a presente pesquisadora optou por ofertar como parte da pesquisa um modelo adaptável do testamento privado para atender à demanda trazida pela herança digital:
Figura 1 – Modelo de Testamento de Herança Digital.
Fonte: Autora do Projeto de Conclusão (2022).
Utilizando dos elementos básicos do testamento, estando o sujeito em plenas faculdades intelectuais, poderia começar a testar especificando os bens que estão suscetíveis à herança e, como demonstrado na Figura 1, e, em seguida, poderia optar por especificar quais redes sociais deseja transmitir por meio do testamento ou até mesmo especificar quais redes sociais deseja que sejam transmitidas e quais sejam excluídas.
Em seguida, o testador poderia especificar a finalidade com a qual quer transferir as redes sociais disponíveis ou especificadas, caso se trate de redes sociais que gerem renda, deveria especificar os valores percebidos por meio delas e até mesmo limitar negociações e renegociações de projetos ou parcerias feitas, comumente, por blogueiras, se demonstrando da seguinte forma:
Figura 2 – Modelo de Cláusula Sobre Herança de Redes Sociais Rentáveis.
Fonte: Autora do Projeto de Conclusão (2022).
Caso as redes sociais possuam não possuam natureza monetária e seu proprietário deseje mantê-las ativas após a sua morte por motivos meramente sentimentais, o testador poderia dispor que deseja que seja mantida ativa a rede social, ainda que não gere qualquer renda, a fim de manter as memórias armazenadas no servidor competente para que seus familiares e outros entes queridos possam continuar acessando fotos, vídeos, áudios ou outras mídias disponibilizadas na referida rede social.
Seria possível, ainda, que o proprietário usasse do testamento para limitar o que poderia ou não ser feito em suas redes sociais, já que não seriam utilizadas como fonte de renda e, inclusive, exigindo a utilização do formato “Memorial” já disponível em plataformas como o Facebook ou que, não havendo tal funcionalidade, que as informações lá dispostas não fossem alteradas ou atualizadas pelos familiares, demonstrado da seguinte forma:
Figura 3 – Modelo de Cláusula Sobre Herança de Redes Sociais Não Rentáveis.
Fonte: Autora do Projeto de Conclusão (2022).
Após especificadas as redes sociais a serem transmitidos e as condições de seu uso pelos herdeiros, o testamenteiro seguiria o rito legal colhendo a assinatura de três testemunhas e registrado perante Tabelionato de Notas. Sabendo disto, fica disponível a seguir o modelo na íntegra de um testamento adaptado à herança digital:
Eu, FULANO DE TAL, nacionalidade, estado civil, profissão, inscrito (a) sob o CPF nº..., e portador do RG inscrito sob o nº... expedido por ..., endereço eletrônico (E-mail), residente e domiciliado em..., estando em perfeito juízo e em pleno gozo de minhas faculdades intelectuais, sem interdição, livre de qualquer induzimento ou coração ou qualquer causa que afaste a minha livre convicção, na presença de três testemunhas ao final qualificadas, resolvo lavrar o presente TESTAMENTO PARTICULAR no qual exaro minha última vontade da seguinte forma:
Eu, FULANO DE TAL, possuo os seguintes bens: XXX, XXX, XXX, os quais desejo que sejam divididos entre meus herdeiros pelas vias comuns da sucessão, mas gostaria de dispor, em minha última vontade, sobre a rede social Y, armazenada na plataforma B, da qual faço uso desde o ano de 0000. Deixo em envelope lacrado e apartado os dados para que possa ser efetuado login nesta conta, constando meu nome de usuário, senha e o que mais for necessário para o livre acesso dos meus herdeiros às informações armazenadas nos servidores da referida plataforma.
a) Para o caso de redes sociais que geram lucro:
Na referida rede social Y costumava fazer XX postagens ao dia, às quais rendiam o importe de R$ 000.000,000 (valor por extenso) cada uma. A renda mensal era de R$ 000.000,000 (valor por extenso) englobando publicidades, postagens avulsas e parcerias de marca. Sendo impossível a realização de novos projetos, desejo que seja mantida ativa minha rede social a fim de perceber os valores que os projetos já ativos ainda gerarão, até XX/XX/XXXX. Após esta data, exprimo a minha vontade de que a rede social Y seja mantida/desativada.
b) Para o caso de redes sociais que não geram lucro:
Na referida rede social Y costumava fazer XX postagens ao dia, às quais não geravam qualquer renda extra a mim ou à minha família, mas, com interesse em manter vivos os momentos lá registrados com familiares e amigos queridos, gostaria que fosse mantida ativa tal rede social, mas sem qualquer atualização das informações lá dispostas. Caso a plataforma B ofereça a opção de “memorial”, desejo que seja esta escolhida pelos meus entes queridos.
Esclareço aqui que, embora disponibilize acesso à rede social Y, armazenada na plataforma B, com a finalidade ... (monetária/sentimental), não autorizo meus herdeiros a utilizarem dos meus materiais e imagens para determinados fins, tais como ... (indicar situações específicas), ressalvadas, ainda, as situações de caráter humilhante e/ou vexatório que já protege nosso ordenamento jurídico.
Por fim, declaro que são testemunhas deste meu ato voluntário e em pleno gozo de minhas faculdades mentais:
1. Testemunha 01, nacionalidade, estado civil, profissão, inscrito (a) sob o CPF nº..., e portador do RG inscrito sob o nº... expedido por ..., endereço eletrônico (E-mail), residente e domiciliado em... Assinatura por extenso.
2. Testemunha 02, nacionalidade, estado civil, profissão, inscrito (a) sob o CPF nº..., e portador do RG inscrito sob o nº... expedido por ..., endereço eletrônico (E-mail), residente e domiciliado em... Assinatura por extenso.
3. Testemunha 03, nacionalidade, estado civil, profissão, inscrito (a) sob o CPF nº..., e portador do RG inscrito sob o nº... expedido por ..., endereço eletrônico (E-mail), residente e domiciliado em... Assinatura por extenso.
É mister salientar, uma vez mais, que os modelos acima apresentados foram produzidos com impulso científico para complementação da presente pesquisa e que o testamento ainda não é o instrumento específico utilizado como regulamentação da herança das redes sociais no Brasil.
O que se busca demonstrar é que tal instrumento pode, na ausência de regulamentação específica, ser adequado para suprir uma necessidade que a legislação pátria ainda não alcançou, a fim de garantir que herança caracterizada pelas redes sociais não sejam alvo de decisão discricionária das plataformas e até mesmo esquecidas, pois, comumente, são mantidos dados e mídias de redes sociais de pessoas falecidas quando a família não dá à plataforma conhecimento de seu falecimento para a tomada das devidas providências.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo geral e também a questão central deste trabalho foi identificar se há ausência de regulamentação no que diz respeito à herança digital no ordenamento jurídico brasileiro e se o testamento pode servir de instrumento para que sejam resguardados os direitos de personalidade na transmissão das redes sociais após a morte de seus usuários, isso porque o fenômeno da herança digital vem se tornando cada vez mais comum na sociedade brasileira, visto que se tornou possível a acumulação de bens na esfera digital que merecem mais atenção e que, em alguns casos, podem integrar a lista de bens a ser partilhada.
É mister compreender que o testamento vem sendo estudado e, inclusive, considerado pela doutrina e Legislativo pátrio, inclusive no Projeto de Lei 1.689 de 2021, como ferramenta que auxilia na limitação e regulamentação da herança digital para que, após feita a transmissão das redes sociais, não haja uso abusivo ou degradante da imagem e dados do de cujus.
Para cumprir com o objetivo específico de conceituar o instituto da herança digital realizou-se pesquisa documental cujo resultado obtido exprime o referido instituto como um conjunto de bens deixados pelo de cujus na esfera digital e que são passiveis de armazenamento em servidores virtuais, englobando de fotos e arquivos de mídia similares a documentos ou moedas que possuem valor na internet ou fora dela.
Em seguida, para cumprir o objetivo de especificar quais direitos de personalidade do de cujus podem ser atingidos pelo instituto da herança digital na transmissão das redes sociais obteve-se o resultado de que os direitos de personalidade do de cujus na herança digital abrangem os direitos à integridade moral, uma vez que abarcam direitos do indivíduo como a honra, a intimidade, a privacidade, a propriedade intelectual e tantos outros direitos relativos à sua figura.
Não só pode a pessoa pleitear por seus próprios direitos em vida como se estende aos herdeiros o direito de pleitear judicialmente a manutenção e preservação dos direitos de personalidade, tal como fixou o julgamento do Recurso Especial nº 521.697-RJ relativo aos herdeiros da figura pública Garrincha.
O último objetivo era investigar se o testamento pode auxiliar na regulamentação da herança digital se houver ausência de regulamentação de tal instituto no ordenamento jurídico brasileiro, o que se pode observar de maneira favorável dado o atual cenário jurídico brasileiro no qual, com base na pesquisa produzida, não há instrumento específico que regulamente a herança digital e que, com os ajustes necessários, o testamento pode ser utilizado para tal finalidade.
Por fim, há que se falar sobre a problemática que versa acerca do uso do testamento como auxílio na regulamentação da herança digital, quando há ausência de regulamentação de tal instituto no ordenamento jurídico brasileiro. Embora se utilize de legislações como o Código Civil de 2002, o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965 de 2014) e a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709 de 2018) para suprimir, no que lhes cabe, esta lacuna, não há tratamento legislativo específico para a herança digital no ordenamento jurídico pátrio.
Neste cenário fica clara a necessidade de uso de instrumento capaz de auxiliar na regulamentação da herança digital, e o testamento é um instrumento derivado da máxima “testamentum est voluntatis nostrae justa sententia, de eo, quod quis pos mortem suam fieri velit” (testamento é a justa manifestação de nossa vontade sobre aquilo que queremos que se faça depois da morte).
Embora haja debate doutrinário acerca da extensão dessa máxima, o testamento se mostra como o mais eficaz para suprir a necessidade social que a herança das redes sociais demanda, já que não se fala apenas de um objeto passível de sucessão, mas um conjunto de bens jurídicos atrelados a nome, imagem e à própria personalidade do de cujus, isto porque é fruto da exteriorização da última vontade deste, devendo ser respeitada, desde que não fira qualquer preceito legal.
A conclusão lógica obtida acerca da problemática central de uso do testamento como instrumento que versa sobre os direitos de personalidade do de cujus referente à herança de redes sociais no instituto da herança digital, se houver ausência de previsão legal de instrumento específico, é de que o testamento particular pode ser utilizado, sim, como instrumento de regulamentação, tendo em vista a ausência de instrumento mais adequado para as circunstâncias, bem como a adaptação possível do testamento para suprimir tal lacuna.
A tecnologia é uma presença cada vez mais constante na vida cotidiana, isto porque começou a ser fonte de renda e de memórias, tudo armazenado e processado em servidores virtuais. É por isso que se faz necessário melhorar o entendimento acerca dos institutos que surgem, principalmente no que diz respeito à sucessão nessa esfera, já que não cabe ao Judiciário legislar sobre tal problemática e tampouco podem as plataformas decidir conforme os próprios critérios um fenômeno social que atinge a todos.
Há, ainda, muita controvérsia sobre a matéria e muitos conflitos com direitos fundamentais, como privacidade e inviolabilidade, e, enquanto a jurisprudência pátria e o Legislativo não pacificarem tal controvérsia, resta à sociedade utilizar dos instrumentos particulares cabíveis ou das políticas digitais disponíveis para garantir uma transmissão e uso digno de suas redes sociais e todo o material ou renda por elas abarcados.
REFERÊNCIAS
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[1] Segundo TechLib (2021, não paginado) Hiperlink, comumente conhecido como link, é uma palavra, frase ou imagem na qual você pode clicar para ir para um novo documento ou uma nova seção do documento ou página digital.
[2] Segundo Donohue (2014, não paginado), Hash é um algoritmo matemático que transforma qualquer bloco de dados em uma série de caracteres de comprimento fixo.
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