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Tudo no seu devido lugar
Autora- Bernadete Schleder dos Santos[1]
A velha senhora olhava de forma incrédula aquele jovem que se apresentava como juiz. Em plena pandemia, sua humilde casa havia sido tomada por pessoas com os rostos semicobertos. Nervosa, atendeu ao pedido para que relatasse os acontecimentos que resultaram num processo judicial, explicando seu engano ao assinar um documento sobre o qual ainda não conseguia compreender os efeitos.
O julgador, por sua vez, ciente da importância da produção de provas através da inspeção judicial, gentilmente perguntava e ouvia atentamente as palavras pronunciadas com forte sotaque regional, numa voz fraca e entrecortada pela emoção.
Era de fácil compreensão a descrição de um dia quente, quando a depoente, recém saída de um hospital, foi levada ao tabelionato da pequena cidade e, ainda dentro do carro, foi induzida a assinar um documento. A verdade é que a velha senhora acreditava estar autorizando um contrato de financiamento, para que se pudesse manter o sustento da família após o recente falecimento do seu marido.
Não sabia que termos como “doação” ou “dispensa de colação” significassem a transferência de 50% de seu patrimônio para apenas um de seus filhos, prejudicando os demais. Na verdade, ela sequer conseguiu ouvir essas palavras: sua deficiência auditiva e a fraqueza física lhe tiravam a capacidade de entendimento. Apenas desejava retornar ao lar e se acomodar na cama, na companhia da sua filha cuidadora.
O julgador foi conduzindo o depoimento, fazendo suas anotações à mão e reconstruindo a história. Convicto de verdade revelada, no seu retorno à cidade vizinha, já se preocupava com a fundamentação da sentença. Sabia que a prova, até o momento apresentada, era frágil. Apenas fortes indícios frente à presunção de veracidade de um documento público. Certo de que qualquer decisão que tomasse seria objeto de recurso, precisava encontrar os argumentos adequados para embasar sua convicção pela procedência do pedido.
Os tempos eram atípicos e difíceis. A pandemia estava no auge. A autora da ação de anulação de uma doação era uma idosa, doente, fragilizada pela depressão provocada pela recente viuvez e pela descoberta de que havia sido induzida a erro por um de seus filhos. A sensação de uma injustiça provocada contagiou o julgador, que compreendeu a urgência da tomada da decisão.
Lembrou da sua própria origem, do seu esforço e do incentivo de sua família para chegar à magistratura. Pensou no início do seu trabalho, da convivência nas pequenas comunidades com diferentes costumes que lhe exigiam um exercício de empatia. Percebeu então que as diferenças culturais não alteram os sentimentos maternos em relação ao tratamento justo e igualitário entre os seus filhos.
Crónica publicada originalmente no jornal Diário de Santa Maria em 13/09/2022
Sua decisão estava tomada e os argumentos necessários foram encontrados. Resolveu colocar as coisas no seu devido lugar. Naquele momento não sabia que, mais tarde, suas palavras seriam transcritas por mais três julgadores que simplesmente as ratificaram de forma unânime.
[1] Advogada especializada em Direito das Familias e Sucessões; professora titular das disciplinas de Direito das Famílias e de Direito das Sucessões da UFN- Santa Maria/RS; articulista do jornal Diário de Santa Maria
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