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Traumatização Vicária e Direito de Família
Alcina Juliana Soares Barros[1]
No trabalho com processos em Direito de Família, através de determinados casos complexos, entramos em contato com material traumático, seja pelo relato direto dos envolvidos, leitura de documentos, visualização de fotografias, vídeos e material eletrônico (como mensagens de texto, prints de redes sociais), ou pela escuta de gravações e áudios. Por mais que sejamos profissionais, a avaliação técnica desses conteúdos pode repercutir na nossa vida pessoal e ocupacional, produzindo desde sentimentos de tristeza, irritabilidade, menor tolerância a afetos negativos, até a substituição da empatia por intelectualização. Aqui, a diferença essencial entre o sentir e o entender merece ser esclarecida: se nos limitarmos ao sentido lógico e racional de um dado, a profundidade da informação poderá ser perdida, especialmente se estamos participando da análise e assistência de casos em que a vida familiar, as relações estabelecidas, os sentimentos e os vínculos dos envolvidos são discutidos.
Há cerca de 32 anos, as pesquisadoras McCann e Pearlman (1990) introduziram na literatura científica psicológica e médica um interessante conceito: a traumatização vicária. Ela consiste em trauma indireto, tendo sido identificada e descrita, inicialmente, como a transformação ocorrida dentro de psicoterapeutas de vítimas de violência sexual. Posteriormente, foi reconhecida também em outros profissionais que trabalham com trauma (operadores do Direito, assistentes sociais, médicos, enfermeiros, bombeiros), sendo decorrente do engajamento com as experiências traumáticas e dolorosas dos pacientes/clientes e suas sequelas. Esse engajamento inclui a escuta das descrições gráficas de eventos terríveis, além do testemunho da crueldade de um ser humano em relação a outro. Deste modo, a traumatização vicária representa um risco ocupacional para aqueles que trabalham com sobreviventes de situações traumáticas, não refletindo uma patologia prévia do profissional ou intencionalidade do paciente/cliente.[2]
A traumatização vicária implica em modificações na maneira do profissional experimentar a si mesmo, os outros e o mundo, permeando a subjetividade e as relações. Podem ocorrer rupturas nos esquemas internos de segurança, independência/dependência, estima por si e pelo próximo, intimidade, poder e referenciais. Características do profissional que podem influenciar no surgimento do trauma vicário incluem: história pessoal de trauma, o significado de eventos traumáticos para ela/ele, estilo psicológico e interpessoal, desenvolvimento profissional, estressores e rede de suporte atuais.
Importante pontuar que a traumatização vicária não é sinônima de burnout, fadiga de compaixão e estresse pós-traumático secundário, sendo independente do número de casos trabalhados. Todas essas condições patológicas possuem diferentes fontes, processos e manifestações.
E por que difundir esse conceito no Direito de Família? Pela necessidade dos profissionais reconhecerem que situações de violência psicológica, física, sexual e negligência familiar, afetando crianças, adultos e idosos, são, muitas vezes, trazidas à tona pela primeira vez nos processos de família, sendo essencial a devida atenção quanto às reações diante de tais conteúdos. Trabalhar sem adoecer emocionalmente é um desafio contínuo. Em estudo realizado por Barros e cols. (2020)[3], envolvendo peritos psiquiatras e psicólogos que examinaram indivíduos acusados por crimes sexuais, foi observado que estratégias de enfrentamento mal-adaptativas, como sentimentos de indiferença, distanciamento e imobilidade e emprego de mecanismos imaturos de defesa psicológica estiveram associados com manifestações de trauma vicário nesses profissionais.
A prevenção da traumatização vicária se inicia no reconhecimento da condição e se efetua através da busca por tratamento pessoal psicoterápico. Receber suporte psicológico não deve ser um aspecto menosprezado dentre aqueles que trabalham com situações traumáticas, mesmo que indiretas.
[1] * Médica Psiquiatra Judiciária do TJRS. Doutora em Psiquiatria e Ciências do Comportamento pela UFRGS. Psicoterapeuta de Orientação Analítica. Membro da American Academy of Psychiatry and the Law.
[2] PEARLMAN LA, MAC IAN PS. Vicarious Traumatization: An Empirical Study of the Effects of Trauma Work on Trauma Therapists. Professional Psychology: Research and Practice, v. 26, n. 6, p. 558-565, 1995.
[3] BARROS AJS el al. Countertransference, defense mechanisms, and vicarious trauma in work with sexual offenders. The Journal of the American Academy of Psychiatry and the Law, v. 48, n. 3. p. 302-314, 2020.
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