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A disputa pelo trono do Reino da Proteção Integral à Criança e ao Adolescente
A disputa pelo trono do Reino da Proteção Integral à Criança e ao Adolescente
Elton Costa[1]
Era uma vez, em um local não muito distante, um reino conhecido como o da Proteção Integral à Criança e ao Adolescente.
Quando nasceu, esse reino que de belo só tem o nome, tinha como sonho proporcionar às suas crianças e adolescentes uma vida digna e um crescimento saudável e harmonioso.
O seu poderoso rei - o Código Civil - governava com mão de ferro e afastava do reino todos os que tentassem interferir no seu reinado, mesmo que com as melhores intenções. Sua governança era balizada em normas rígidas – 2.046 artigos – que, segundo sua alteza, deveriam ser obedecidas à risca e, mais ainda, deveriam se sobrepor a todas e quaisquer outras normas.
Aqui, precisamos fazer um hiato na narrativa para falar do irmão mais velho do rei, o ECA. Nascido nos idos de 90, doze anos antes do rei CC (alguns súditos faziam o trocadilho com o mau cheiro, por conta da forma com que o rei governava), o ECA seria o sucessor legítimo do trono, vago pela morte do antigo rei, o Dom Civil 16 e pela enfermidade que acometera a rainha Constituição.
Acontece, todavia, que assim como nos enredos hollywoodianos – aqui certamente vocês estão pensando no filme O homem da máscara de ferro, do DiCaprio. Eu também, confesso (apesar do filme ser bem mamão com açúcar). Voltemos ao nosso enredo. Acontece, todavia, que o Código Civil, irmão mais novo e, consequentemente, posterior ao ECA na linha sucessória, tinha outros planos para o trono real.
Quando tomou conhecimento da grave enfermidade da rainha e da sua incapacidade de governar o reino, o CC arquitetou o seguinte plano: criarei a lenda de que meu irmão mais velho envenenou nossa mãe e que, por isso, ele será considerado indigno da realeza, seus escritos serão destruídos, será relegado à condição de bastardo e exilado para sempre do reino. E assim foi feito. Levado para terras bem distantes, o ECA foi lá deixado com a ameaça de que se um dia voltasse ao reino da Proteção Integral à Criança e ao Adolescente a sua pena seria a capital. Nasce, então, o reinado do agora autointitulado Dom Código Civil 2002.
Passaram-se anos e mais anos sob a batuta do rei DCC02 (passaremos a chama-lo assim por questões didáticas) e cada vez mais ficava notório que a forma como ele governava não atendia às necessidades dos seus súditos. As decisões tomadas pelo rei, com base unicamente nos artigos da sua lei, não atendiam aos anseios populares e, mais ainda, não contemplavam a razão de ser daquele reino. A proteção integral à criança e ao adolescente não era materializada e a insatisfação era cada vez mais visível.
O rei tinha conhecimento dessa insatisfação popular, porém, contava com o apoio da maioria dos anciãos do reino – que tinham como função principal julgar as demandas apresentadas pelo povo, aplicando a lei, os costumes e os princípios escritos sabiamente pela rainha Constituição.
Malversando sua função, os anciãos ignoravam os costumes e os princípios reais e aplicavam indistintamente as regras contidas no código do rei, mesmo que isso significasse ferir o primado basilar do reino: proteger integralmente as crianças e os adolescentes.
Bom, acho que já está na hora da reviravolta na história. Imagino que estejam pensando nos mosqueteiros salvando o irmão com a máscara de ferro. Se pensaram, esqueçam. Nosso herói foi banido e não preso numa masmorra no calabouço do castelo real.
Tudo começou a mudar quando um dos anciãos encontrou uma pequena parte do que o ECA havia escrito e que não fora destruído pelo rei DCC02. O texto continha a seguinte passagem:
Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Aquilo deixou o ancião em êxtase. Como tão sábio ensinamento nos foi negligenciado por tantos anos? Estou imaginando ele batendo à mesa e logo após pegando um cálice cheio de vinho para comemorar a sua descoberta.
E agora, o que farei com esse escrito? Conto para os demais anciãos? Levo ao conhecimento do povo? Pobre ancião. Não gostaria de estar na sua pele. Tendo o conhecimento que poderia revolucionar o reino e sem saber o que fazer com ele.
Só havia uma coisa a fazer: resgatar o irmão “bastardo” do rei, o ECA; constatou o ancião eufórico. Aqui imagino ele entornado o restante do vinho que dormia no seu cálice de prata. E assim o fez. Começou sua jornada atrás do salvador do reino.
O ancião ficou impressionado com o que viu no curso da sua jornada reino a dentro. Acostumado a aplicar a lei real sem distinção, sem conhecer a realidade vivenciada pelos plebeus em cada demanda apresentada e as consequências das suas decisões, ele experimentou algo inédito em sua vida: a percepção de que os anciãos também sentem e choram. E ele chorou!!!
Nesse ponto precisamos rebobinar a fita e voltar ao começo da nossa lenda, mais especificamente ao sexto parágrafo (me peguei pensando no barulhinho da fita rebobinando).
Quando exilado do reino, o ECA vagou sem rumo por muito tempo e por vários lugares, sempre movido pela esperança de um dia alcançar a sua função precípua: proteger integralmente as crianças e os adolescentes. Apesar de todas as dificuldades e da injustiça que lhe fora imposta, ele nunca desistiu da sua nobre missão.
Após longos anos de peregrinação, o ECA encontrou um pequeno reino que, assim como dispunha a sua mínima geografia, era habitado por pequenos, trocando em miúdos - com o perdão do trocadilho – lá viviam somente crianças e adolescentes. O nome do reino? Reino dos pequenos invisíveis.
Era um lugar belo, onde imperava a bondade e a ingenuidade peculiares à idade dos seus habitantes. Não obstante à essa paz e harmonia existentes, uma coisa chamou bastante a atenção do ECA: o olhar triste dos pequenos. Por mais harmônico e gracioso que fosse o lugar, repleto de brincadeiras e momentos alegres, no fundo dos olhos das crianças e dos adolescentes, como que nas suas almas, via-se a face sombria da tristeza. Aquilo incomodou demasiado o ECA. Por que em um reino tão belo, cheio de paz e harmonia, restava tanta tristeza?
Apertemos o FDW para adiantarmos a fita e sigamos com a jornada do ancião. Logo a gente volta para o ECA e o reino dos pequenos invisíveis.
No curso de sua triste jornada – se não se recordam, recomendo voltar alguns parágrafos – o ancião teve notícias de que em um reino bem distante dali havia uma espécie de profeta, um messias ou algo assim. Rezava a lenda que lhe chegou que esse homem encantava a todos com fábulas belíssimas sobre como seria a vida das crianças e adolescentes se os seus ensinamentos fossem respeitados e aplicados de fato.
Só pode ser ele, pensou o agora entusiasmado aplicador da lei real. Preciso achá-lo o quanto antes, pois a harmonia em nosso reino precisa ser estabelecida. E lá foi ele na sua peregrinação solitária. Aqui pensei em acompanhá-lo de uma comitiva de cavaleiros e nos remeter aos clássicos humorísticos do Monty Pyton, mas lembrei que ele descobriu os escritos e guardou o segredo para si.
Vários e exaustivos dias de cavalgada, tomado pela ânsia de como seria finalmente encontrar quem escrevera tão preciosas linhas sobre a proteção integral à criança e ao adolescente, a busca finalmente teve um fim. (Pausa para vocês imaginarem como seria a primeira visão que o ancião teve do ECA).
Minha versão: Lá estava ele, sentado em um banquinho de madeira, rodeado de crianças e adolescentes, que se deleitavam com sua parlenda. Um jovem e sábio senhor, que continha muito mais esperança do que caberia no bojo dos seus 267 artigos. ECA, é você?! Indagou o incrédulo e exausto ancião. Não creio que minha jornada finalmente chegou ao fim?
Por que em um reino tão belo, cheio de paz e harmonia, restava tanta tristeza? Lembram-se dessa pergunta? Pois é, voltemos (sem rebobinar a fita dessa vez) ao tempo em que o ECA chegou ao reino dos pequenos invisíveis.
Como já foi dito, apesar de naquele reino cheio de paz, harmonia e brincadeiras (Qualquer relação com o reino encantado do Peter Pan é mera coincidência, ou não. Deixo a critério de cada um) a sensação que o ECA teve foi de que havia algo errado naquele lugar. A alegria estampada naqueles rostos ingênuos e juvenis era ilusória, momentânea, tal qual o passeio de domingo no shopping em dia de visitação quinzenal entre filho e pai (o verbete visitação está destacado de propósito. Pai e filho convivem, todavia, quando isso ocorre em finais de semana alternados não sei se dá para classificar como tal).
Incomodado com o que vira, o ECA perguntou para o mais velho habitante do lugar, um adolescente de 16, 17 anos - nem ele mesmo tinha certeza da sua idade – o motivo daquilo. Por que em um lugar tão lindo, habitado somente por crianças e adolescentes, onde tudo é paz e brincadeira, vocês não são plenamente felizes?
Confesso a vocês que passei alguns minutos pensando no que escreveria como resposta. Mas como lenda boa é aquela que nos faz refletir criticamente, deixo a resposta por conta de vossas imaginações, percepções, ideologias, etc, etc, etc...
Sem ter muito o que fazer diante daquele cenário posto, o ECA passou a conversar diariamente com aqueles pequenos sobre como seriam suas vidas se as decisões tomadas acerca delas não levassem em conta somente a lei do rei. O brilho tomou conta dos pequenos e agora marejados olhos.
E foi então que o ECA descobriu que aquelas crianças e adolescentes nada mais eram que filhos perdidos de pais separados, exilados em um reino de brincadeiras, sorvetes, passeios no shopping, cinema, pizza no domingo à noitinha, mas que, em verdade, tudo o que queriam era ser ouvidos sobre seus anseios, desejos e sonhos. Realmente não dá para ser plenamente feliz quando lhe roubam os sonhos.
Como em um jogo de tabuleiro, você tirou a carta que manda voltar 6 casas, no nosso caso, ou in casu, para ter um pouco de jurisdiquês nessa lenda, seis parágrafos.
Sim, sou eu, respondeu o ECA. Quem vem lá e deseja saber? (Tentei nos transportar para o linguajar da época com o quem vem lá; espero ter conseguido. Acaso não, minhas sinceras escusas). Sou um ancião do reino da Proteção Integral à Criança e ao Adolescente e estou sem palavras para descrever a felicidade por finalmente encontrá-lo.
Para não enfadar vocês com dois ou três parágrafos do ancião explicando para o ECA o motivo da sua busca, o que ele presenciou e experimentou nessa jornada e tudo mais, serei breve. Eles conversaram por vários dias, sob os olhares atentos e brilhantes das crianças e adolescentes. Decidiram voltar para o reino.
Agora sim podemos imaginarmos uma caravana. Ancião, ECA e todas aquelas crianças que moravam naquele reino. Destino: esperança.
Nos dias que se sucederam até a chegada ao reino, o ECA foi reescrevendo seus artigos para o olhar maravilhado do ancião. Como esses escritos preciosos nunca nos foram apresentados? Ponderou ele.
Ao que respondeu o ECA: Simples, meu bom homem. O meu irmão, o rei CC nunca entendeu que nosso reino foi criado para de fato proteger as crianças e os adolescentes. Exilou-me para que vocês, aplicadores da lei, só conhecessem os seus artigos. Ele nunca entendeu que não se trata de uma competição entre normas e sim que deve ser aplicada ao caso concreto a que mais se amolda à realidade fática e a que leve à criança ou adolescente maiores benefícios. Não sou eu – ECA – ou ele – Código Civil – somos nós em prol dos pequenos invisíveis. Quanto mais o ECA falava, mais o ancião sofria pelo fato de nunca ter aplicado seus sábios ensinamentos.
Acho que já está na hora deles chegarem ao reino! Entrada triunfal, para os olhares incrédulos do rei NCC02, dos anciãos e dos genitores (pais e mães). Alguns sequer lembravam dos seus filhos perdidos. Apesar da débil tentativa do rei de impedir o óbvio, diante dos fortes argumentos do ECA – parlou em praça pública para ouvidos atentos e olhares repletos de esperança – o conselho de anciãos se reuniu e decidiu normatizar que daquele dia em diante, no reino da Proteção Integral à Criança e ao Adolescente, o disposto no ECA deveria ser considerado primeiramente ao se tratar das demandas envolvendo interesse de criança e adolescente, sem, contudo, excluir a participação do contido no Código Civil, desde que a interpretação e a aplicação fossem as mais benéficas para quem realmente importa: os pequenos invisíveis.
E todos foram felizes para sempre. FIM ... ou não! Acredito que essa (hi)estória esteja apenas começando.
[1] Servidor efetivo do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Compõe o gabinete da Vara de Família, Sucessões, Tutela, Curatela, Ausência, Infância e Juventude da Comarca de Caxias. Especialista em Família e Sucessões (ESAPI). Mestrando em Direito e Gestão de Conflitos (UNIFOR). Coautor de obra e artigos jurídicos. Professor e Palestrante.
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