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A Lei Federal 14.382 - 2022 e a possibilidade de realizar a alteração do prenome no Registro Civil de Pessoas Naturais
Bianca Rolfsen[1]
Rodrigo Feracine Alvares[2]
Existe uma tendência no ordenamento jurídico brasileiro de desjudicializar procedimentos que não precisam ser enfrentados, necessariamente, pelo Poder Judiciário, uma vez que não existe lide. São casos em que não há uma pretensão resistida e que eram resolvidos em sede de jurisdição voluntária. Nestas hipóteses, a atuação dos magistrados possui feição administrativa, e não jurisdicional, sendo esta a razão precípua pela qual é possível delegar a outros agentes estatais referida função.
Seguindo essa linha, o Conselho Nacional de Justiça, em 28 de junho de 2018, em consonância com o decidido no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.275/DF pelo Supremo Tribunal Federal, editou o Provimento nº 73 que possibilitou a mudança do prenome, do gênero, ou de ambos, fosse realizada diretamente perante os Oficiais de Registro Civil das Pessoas Naturais nos assentos de nascimento e de casamento de pessoas transgênero, sem a necessidade de nenhuma intervenção judicial, como regra. No entanto, tal permissão de modificação de prenome é excepcional e atinge diminuta parcela da sociedade. Em 27 de junho de 2022, a Medida Provisória 1.085/2021 foi convertida em Lei Federal 14.382, que alterou, dentre outras, a Lei 6.015/1973. A novidade que aqui se destaca (entre tantas trazidas pela mencionada lei) está prevista no artigo 56 da Lei 6.015/1973 e cuida da possibilidade de ser alterado o prenome da pessoa registrada, após ter atingido a maioridade, por meio de requerimento pessoal e imotivado, independentemente de decisão judicial. A lei passou a admitir, de modo amplo, a mutabilidade do prenome.
Essa evolução de imutabilidade para mutabilidade do nome tem por fundamento precípuo a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição Federal de 1988). Sobre o conteúdo da dignidade da pessoa humana, Ingo Wolfgang Sarlet[3] assevera que:
“Assim sendo, temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca distintiva reconhecida a cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de proporcionar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida”
A adoção da dignidade como fundamento da República Federativa do Brasil irradiou efeitos para todos os ramos do direito, em especial para a interpretação dada às disposições constantes do Código Civil de 2002. Nesse sentido, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho[4] afirmam que:
“Uma das principais inovações da Parte Geral do Código Civil de 2002 é a existência de um capítulo próprio destinado aos direitos da personalidade. Trata-se de um dos sintomas da modificação axiológica da codificação brasileira, que deixa de ter um perfil essencialmente patrimonial, característico do Código Civil de 1916, concebido para uma sociedade agrária, tradicionalista e conservadora, para se preocupar substancialmente com o indivíduo, em perfeita sintonia com o espírito da Constituição Cidadã de 1988”.
Dentre os direitos da personalidade, o artigo 16 do Código Civil estabeleceu que toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome. Embora o Código só mencione o prenome e o sobrenome, José Roberto Neves Amorim[5] ensina que os elementos do nome são: “prenome, nome de família, sobrenome, agnome, partícula e conjunção, nome vocatório, apelido e alcunha, hipocrístico, pseudônimo e heterônimo, títulos nobiliárquicos e heterônimos”.
Ressalta-se que o nome tem relevância tanto na esfera pública (tendo o Estado interesse que as pessoas sejam perfeita e corretamente identificadas e individualizadas) como também na esfera individual (relacionado à dignidade da pessoa humana, servindo como identificador nas relações pessoais e sociais).
Entretanto, a Lei Federal 6.015/73, que trata dos Registros Públicos, já cuidava da disciplina da colocação do nome e das hipóteses excepcionais de sua alteração, nos artigos 54 a 58. A respeito do tema, Leonardo Brandelli[6] ensinava que: “A alteração do nome somente é permitida em determinados casos devidamente justificados, posto que a regra é a da imutabilidade do nome”.
Com a vigência da Lei Federal 14.382/2022, que alterou a Lei dos Registros Públicos, em seu artigo 56 e parágrafos, para permitir a modificação do prenome da pessoa registrada, após ter atingido a maioridade, por meio de requerimento pessoal e imotivado, independentemente de decisão judicial e da oitiva do Ministério Público, objetivou-se tratar com isonomia todos os pedidos de mutação do prenome. Não há mais o limite temporal de um ano, após atingida a maioridade, para requerer a alteração do prenome em sede administrativa. A regra da definitividade do prenome cada vez mais tem sido mitigada, a ponto de se poder defender que atualmente prevalece a regra da mutabilidade do nome. Ademais, nos tempos atuais, com o desenvolvimento da sociedade, a suposta insegurança jurídica não mais pode servir como entrave à desjudicialização do procedimento de mutação do prenome. Cabe salientar que para se evitar riscos a terceiros constarão expressamente tanto da averbação de alteração de prenome quanto em todas as certidões extraídas do assento modificado o prenome anterior, os números do documento de identidade, de CPF, de passaporte e de título de eleitor.
Somente poderá o Oficial de Registro recusar a retificação do prenome quando suspeitar de fraude, falsidade, má-fé, vício de vontade ou simulação quanto à real intenção da pessoa requerente.
Cumpre consignar que se trata de norma que é aplicada de forma imediata pelos Oficiais de Registro Civil de Pessoas Naturais, não sendo necessária nenhuma regulamentação. Sobre o tema, a Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais, ARPEN BRASIL, em Cartilha[7] que traz as suas considerações iniciais acerca da Lei Federal 14.382/2022, afirma que:
“Embora auto-aplicável, é prudente que seja solicitada, ao requerente, documentação análoga àquela exigida para a alteração do prenome de pessoas transgênero, na forma do Provimento CNJ n°73/2018, com vistas a verificar eventual situação de fraude e conferir maior segurança ao procedimento, conforme artigo 56, §4°, da Lei n. 6015/1973 (...)”.
Referida recomendação, embora pareça bastante prudente, uma vez seguida pelos Oficiais poderá ser questionada. Isso em razão de não representar o que foi disposto na lei. Por outro lado, caso sejam dispensadas as certidões exigidas por força do Provimento n° 73/2018 do CNJ, para que seja alterado o prenome de pessoa transgênero, violar-se-á, possivelmente, o princípio da isonomia, vez que as diversas certidões somente seriam exigidas nos casos do referido provimento, quando a consequência (alteração do prenome) é exatamente a mesma. Logo, o adequado seria que o legislador dispusesse de modo uniforme para situações análogas de sorte a observar os ditames decorrentes da dignidade da pessoa humana, bem como para que sejam respeitados os demais princípios da isonomia e da legalidade.
Ressalta-se que a Lei Federal 14.382/2022 não trouxe previsão referente ao sigilo, mas, pelo contrário, exigiu que conste tanto da averbação quanto das certidões o prenome anterior, diversamente do que ocorre quando há a alteração do prenome de pessoas transgênero, nos termos do Provimento CNJ n° 73/2018.
Indaga-se, ainda, se este requerimento pessoal e imotivado da pessoa registrada, que possibilita a modificação do prenome, seria um ato personalíssimo ou poderia ser praticado por meio de representante. Aparentemente, trata-se de ato que não poderia ser requerido ou praticado por meio de representação, por ser personalíssimo, a exemplo do que ocorre no caso do testamento, nos termos do artigo 1.858 do Código Civil. Ademais, por ter por objeto um direito da personalidade e por envolver juízo de valor a respeito de eventual fraude, falsidade, má-fé ou simulação é recomendável que o titular do direito se apresente pessoalmente perante o Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais. Contudo, trata-se de tema polêmico, o qual deverá ser solucionado pela doutrina e pela jurisprudência, em razão do silêncio normativo.
Outra questão interessante é a possibilidade, ou não, de o emancipado alterar seu prenome, por meio de requerimento pessoal e imotivado, independentemente de decisão judicial e da oitiva do Ministério Público, diretamente, no Oficial de Registro Civil de Pessoas Naturais. Deve-se recordar, inicialmente, que a emancipação não antecipa a maioridade. Nos termos do artigo 5° do Código Civil, a menoridade cessa aos dezoito anos completos, quando a pessoa fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil, caso não exista outra causa de incapacidade. Já a emancipação caracteriza-se como sendo a possibilidade de antecipação dos efeitos da capacidade civil plena aos menores de dezoito anos de idade. A emancipação gera capacidade civil plena, sem alterar, contudo, a maioridade. Assim, em razão do princípio da legalidade estrita, o emancipado não poderá valer-se dessa novidade legislativa.
Diante do exposto, é de se louvar a iniciativa legal de desburocratizar a modificação do prenome ao se permitir que tal procedimento se dê perante os Oficiais de Registro Civil das Pessoas Naturais, contribuindo, assim, para a efetiva aplicação do direito e possibilitando que o Poder Judiciário se dedique ao que está vocacionado: a resolução de conflitos de interesses.
Bibliografia:
AMORIM, José Roberto Neves. Direito ao Nome da Pessoa Física. São Paulo: Saraiva, 2003.
ARPEN BRASIL. Considerações acerca da Lei n° 14.382/2022. Disponível em: <https://infographya.com/files/Cartilha_Arpen_BR_(1).pdf>. Acesso em 14 de julho de 2022.
BRANDELLI, Leonardo. Nome Civil da Pessoa Natural. São Paulo: Saraiva, 2012.
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Manual de Direito Civil. 6ª ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade (da pessoa) Humana e os Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 10º ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015.
[1]Advogada e sócia do escritório Rolfsen, Balsalobre e Cusciano Advogados. Foi Oficiala Substituta no Cartório de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de Porangaba-SP. Foi Vice-Presidente da Comissão de Direito Imobiliário da 101ª Subseção da OAB-SP de 2019 a 2021. Especialista em Direito Imobiliário pela Escola de Direito da FGV-SP. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário – IBRADIM.
[2]Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais e Tabelião de Notas do Distrito do Itaim Paulista, Comarca de São Paulo-SP. Professor convidado em cursos de Pós-Graduação em Direito Notarial e Registral. Mestre em Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP).
[3] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade (da pessoa) Humana e os Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 10ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, p.70/71.
[4] GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Manual de Direito Civil. 6ªed. São Paulo: SaraivaJur, 2022, p. 69/70.
[5] AMORIM, José Roberto Neves. Direito ao Nome da Pessoa Fisica. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 9.
[6] BRANDELLI, Leonardo. Nome Civil da Pessoa Natural. São Pualo:Saraiva, 2012, p. 147.
[7]ARPEN BRASIL. Considerações acerca da Lei n° 14.382/2022. Disponível em: <https://infographya.com/files/Cartilha_Arpen_BR_(1).pdf>, p. 7. Acesso em 14 de julho de 2022.
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