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A disciplina da união estável na lei nº 14.382-2022
Carlos Magno Alves de Souza [1]
A Lei nº 14.382, de 27 de junho de 2022, trouxe significativas mudanças na Lei nº 6.015/73, denominada Lei de Registros Públicos, notadamente, quanto à possiblidade de alteração de prenome e sobrenome, bem como quanto à disciplina da união estável perante as serventias extrajudiciais.
Inicialmente, percebeu-se uma grande publicidade nos meios de comunicação acerca da simplificação do procedimento de alteração do nome, recebendo pouco destaque as mudanças atinentes à união estável.
O presente texto busca trazer alguns apontamentos acerca da regulação da união estável na Lei de Registros Públicos, optando-se, para fins didáticos, pela apresentação dos assuntos através de tópicos, de modo a permitir uma melhor identificação e compreensão do tema proposto.
Da lavratura do termo declaratório de união estável e da impossibilidade da lavratura de distrato pelo oficial do registro civil.
Antes das recentes alterações sofridas pela Lei nº 6.015/73, o registro da união estável no livro “E” vinha sendo regulado pelo art. 2º, caput, do Provimento nº 37/2014 – CNJ, ao dispor que:
“O registro da sentença declaratória de reconhecimento e dissolução, ou extinção, bem como da escritura pública de contrato e distrato envolvendo união estável, será feito no Livro "E", pelo Oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais da Sede, ou, onde houver, no 1º Subdistrito da Comarca em que os companheiros têm ou tiveram seu último domicílio[1]”.
Desse modo, anteriormente à entrada em vigor da Lei nº 14.382/2022, em relação à união estável, podia ser objeto de registro no livro “E”: i) as sentenças declaratórias de reconhecimento e dissolução de união estável; ii) as escrituras públicas declaratórias de união estável; iii) os distratos envolvendo união estável.
Com o advento da Lei nº 14.382/2022, a matéria passou a ser regida pelo art. 94-A, caput, da Lei nº 6.015/73, tendo sido acrescida a possibilidade da lavratura do termo declaratório de união estável formalizado perante o oficial de registro civil, título hábil ao registro no livro “E”, nos seguintes termos:
“Os registros das sentenças declaratórias de reconhecimento e dissolução, bem como dos termos declaratórios formalizados perante o oficial de registro civil e das escrituras públicas declaratórias e dos distratos que envolvam união estável, serão feitos no Livro E do registro civil de pessoas naturais em que os companheiros têm ou tiveram sua última residência[2]”.
Desde então, os companheiros passaram a poder optar pela formalização de termo declaratório de união estável perante o oficial do registro civil ou pela lavratura de escritura pública declaratória de união estável perante o tabelião de notas, ambos os documentos possuindo a mesma natureza jurídica e com a finalidade de tomar a termo as declarações dos interessados acerca da união estável e as suas circunstâncias, tais como, data de início da convivência, regime de bens e eventual alteração de nome dos companheiros.
Assim sendo, em relação ao tema, a Lei nº 14.382/2022 basicamente inseriu a possiblidade da lavratura do termo declaratório de união estável pelo oficial do registro civil, hodiernamente, podendo ser objeto de registro no Livro “E”: i) as sentenças declaratórias de reconhecimento e dissolução de união estável; ii) os termos declaratórios de união estável; iii) as escrituras públicas declaratórias de união estável; iv) os distratos envolvendo união estável.
Desta forma, é necessário enfatizar que o registrador civil não possui a atribuição para a lavratura de distrato (dissolução) de união estável, cuja competência permanece sendo do tabelião de notas, nos termos do art. 733, caput, do CPC.
Diferentemente do termo declaratório da união estável, a sua dissolução deve observar determinados requisitos legais, tais como, ausência de nascituro ou filhos incapazes, servindo como título translativo e para o levantamento de importância depositada em instituições financeiras, através da lavratura de escritura pública, sendo imprescindível que os interessados estejam assistidos por advogado ou por defensor público, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial, conforme previsão do art. 733, §§ 1º e 2º, do CPC.
Estabelecendo um paralelo entre a união estável e o casamento, é importante compreender que é no registro civil que tramita o processo de habilitação, é realizada a celebração e registrado o matrimônio, todavia, é no tabelionato de notas que é lavrada a escritura pública de separação ou divórcio consensuais, onde é possível que sejam estabelecidas questões acerca da partilha de bens. De modo semelhante, apesar do termo de declaração de união estável poder ser formalizado e registrado perante o registro civil, a sua dissolução (distrato) deve ser objeto de escritura pública lavrada pelo tabelião de notas, com a participação de advogado ou defensor público, consoante prevê na norma de regência.
Portanto, é válido ressaltar que o art. 94-A, caput, da Lei nº 6.015/73, não revogou o disposto no art. 733, §§ 1º e 2º, do CPC, de modo que o termo declaratório firmado perante o registrador civil não tem o condão de tratar de questões patrimoniais, não sendo título hábil para a transferência de bens e direitos, assim como para promoção de todos os atos necessários à materialização das transferências de bens e levantamento de valores (DETRAN, Junta Comercial, Registro Civil de Pessoas Jurídicas, instituições financeiras, companhias telefônicas, etc.)[3]
Outro detalhe é que, assim como nas sentenças declaratórias de reconhecimento e dissolução de união estável e escrituras públicas declaratórias de união estável ou de sua dissolução, é plenamente possível a lavratura do termo declaratório de união estável quando os companheiros se acharem separados de fato ou judicialmente, em consonância com o disposto no art. 1.723, § 1º, do CC. Todavia, deve o registrador civil orientar os interessados que a união estável de pessoas separadas de fato não poderá ser registrada no livro “E”, tendo em vista a vedação expressa contida no art. 94-A, § 1º, da Lei nº 6.015/73.
No registro da união estável no livro “E” deverão constar os seguintes elementos: i) data do registro; ii) nome, estado civil, data de nascimento, profissão, CPF e residência dos companheiros; iii) nome dos pais dos companheiros; iv) data e cartório em que foram registrados os nascimentos das partes, seus casamentos e uniões estáveis anteriores, bem como os óbitos de seus outros cônjuges ou companheiros, quando houver; v) data da sentença, trânsito em julgado da sentença e vara e nome do juiz que a proferiu, quando for o caso; vi) data da escritura pública, mencionados o livro, a página e o tabelionato onde foi lavrado o ato; vii) regime de bens dos companheiros; viii) nome que os companheiros passam a ter em virtude da união estável.
No tocante à alteração dos sobrenomes, desde que a união estável esteja devidamente registrada no livro “E”, os interessados poderão requerer a inclusão ou exclusão do sobrenome de seu companheiro na constância da união estável, bem como, em caso de dissolução, optar por retornar ao nome de solteiro, cujas alterações poderão ser averbadas nos assentos de nascimento e casamento, nos termos do art. 57, §§ 1º e 2º, da Lei de Registros Públicos.
Da conversão da união estável em casamento.
Na conversão de união estável em casamento o ato da celebração do matrimônio é dispensado, devendo constar tanto no edital de proclamas quanto no respectivo assento que se trata de conversão de união estável em casamento.
Quando da apresentação do requerimento de habilitação, na hipótese do convivente ser representado por mandatário, é imprescindível que seja apresentada procuração pública, com poderes específicos, devendo constar informações relevantes, tais como, o regime de bens escolhido e eventual opção por alteração de sobrenome. Além disso, o instrumento público deve ter o prazo máximo de 30 (trinta) dias, diversamente da procuração pública para a celebração de casamento, cujo prazo máximo é de 90 (noventa) dias, nos termos do art. 1.542, § 3º, do CC. No caso de ambos os nubentes não puderem comparecer à serventia extrajudicial, eles devem ser representados por procuradores distintos, de modo a evitar conflito de interesses[4].
Diferentemente do casamento civil e do casamento religioso com efeito civil que possuem o ato de celebração, na conversão da união estável em casamento a manifestação de vontade de estabelecer o vínculo conjugal se dá no momento da prenotação do requerimento de habilitação, de maneira que, encontrando-se a documentação em ordem, o falecimento da parte no curso do processo de habilitação não impedirá o registro póstumo da conversão.
Do procedimento de certificação eletrônica de união estável.
Apesar da sua pouca repercussão, no âmbito do direito das famílias, é provável que a certificação eletrônica da união estável seja uma das principais inovações na Lei de Registros Públicos.
A inclusão do período da convivência da união estável no registro civil sempre foi de interesse das partes, principalmente, em virtude da sua repercussão no campo patrimonial e em questões relativas ao direito previdenciário.
Em decorrência de regramentos editados pelas corregedorias estaduais, admitia-se que no assento de casamento pudesse constar a data de início da união estável, exclusivamente, quando o período de convivência houvesse sido reconhecido por sentença declaratória de reconhecimento de união estável.
Não obstante, a mera declaração dos conviventes, tomadas em instrumento público ou particular, não é considerada suficiente para comprovar a data da união estável iniciada no passado, portanto, nessa hipótese, o período de convivência não pode constar no assento de casamento.
Ocorre que o art. 70-A, § 6º, da Lei nº 6.015/73, passou a prever um novo procedimento extrajudicial, por meio do qual é possível que a data do início ou o período de duração da união estável seja certificado pelo oficial de registro civil.
Assim sendo, a certificação eletrônica de união estável pode ser compreendida como o procedimento pelo qual o oficial do registro civil das pessoas naturais, com base nas provas colhidas, atesta a data de início ou o tempo de duração da união estável, como requisito para a consignação do período de convivência no assento da conversão de união estável em casamento.
A opção do legislador pela modalidade eletrônica está em consonância com o disposto no art. 1º, § 3º, da Lei de Registros Públicos, que prevê que os atos registrais serão escriturados, publicizados e conservados em meio eletrônico, sem prejuízo da possibilidade de sua impressão em meio físico, nos termos do art. 19, § 5º, do referido diploma legal.
A certificação eletrônica de união estável poderá ser lavrada nos seguintes casos: i) apresentação de sentença declaratória de reconhecimento de união estável, na qual conste a data de início ou o período de duração da união estável, sem a necessidade de produção de outras provas; ii) apresentação de termo declaratório formulado perante o registrador civil ou escritura pública declaratória lavrada por tabelião de notas, acompanhados de documentos capazes de evidenciar de maneira inequívoca a data de início ou período de duração da união estável.
Para fins de formação de seu convencimento, é lítico ao registrador civil ouvir testemunhas, realizar diligências e solicitar a apresentação de outros documentos pelos interessados, de maneira a averiguar o início do período de convivência. Caso não fique comprovado o tempo pretérito da união estável, o oficial levará em consideração a data da lavratura do termo declaratório ou da escritura pública como termo inicial da convivência.
O oficial deverá atestar a data de início ou o período de duração da união estável mediante apuração objetiva por intermédio da verificação de elementos concretos, podendo a parte demonstrar o tempo pretérito da convivência por todos os meios em direito admitidos, tais como: certidão de nascimento, se houver filho comum aos conviventes; termo de celebração de casamento religioso, sem registro civil; conta conjunta ou cartão de crédito adicional; plano de saúde com um dos companheiros como dependente; apólice de seguro; contrato de aluguel ou financiamento de imóvel em nome de ambos; declaração de imposto de renda onde consta o nome do companheiro como dependente; fotografias; compartilhamento de contas de streaming; ata notarial; declaração de testemunhas com firma reconhecida.
O procedimento de certificação eletrônica de união estável não se confunde com o termo declaratório de união estável. Neste, os companheiros pleiteiam que o Registrador formalize a declaração de união estável, sem pretensão de reconhecimento do tempo pretérito da convivência, ao passo que, naquele, busca-se que o Oficial certifique o período de convivência iniciado no passado.
Ou seja, a lavratura do termo declaratório não produz prova acerca do tempo pretérito da convivência, ao contrário da certificação eletrônica que, assim como a sentença declaratória de reconhecimento da união estável, atesta de maneira inequívoca o início do período de convivência, por força do que dispõe o art. 70-A, § 6º, da Lei nº 6.015/73.
Em que pese a certificação eletrônica de união estável servir para consignar o período de convivência no assento da conversão da união estável em casamento, a sua validade independe da efetiva concretização do matrimônio, nada impedindo que ela seja utilizada para outras finalidades, em que haja a necessidade de comprovação do início da convivência ou tempo de duração da união da união estável, por exemplo, perante órgãos previdenciários.
Traslado da união estável realizada no exterior.
Finalizando, a Lei nº 14.382/2022 estabelece, ainda, que na hipótese de união estável reconhecida ou lavrada no exterior, em que ao menos um dos companheiros tenha a nacionalidade brasileira, o respectivo título poderá ser trasladado para assento no livro “E”, do registro civil em que qualquer dos companheiros tem ou tenha tido sua última residência no território nacional. Para tanto, os documentos deverão ser devidamente legalizados ou apostilados e acompanhados da respectiva tradução juramentada.
[1] Provimento nº 37/2014 – CNJ.
[2] Lei 14.382, de 27 de junho de 2022.
[3] Resolução nº 35/2007 – CNJ.
[4] TJSP - 2ª VRP/SP - PP nº 0032937-69.2014.8.26.0100.
[1] Mestre em Direito pela Universidade Católica de Salvador. Especialista em Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Especialista em Direito Notarial e Registral pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais em Salvador/BA.
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