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A Súmula Vinculante e os direitos das Crianças e dos adolescentes
A Emenda Constitucional n. 45/2004 introduziu em nosso ordenamento jurídico a Súmula Vinculante, (art. 103-A) a possibilidade de as Súmulas se revestirem do caráter vinculante a partir do voto de 2/3 dos Ministros do Supremo Tribunal Federal.
A expressão Súmula foi utilizada pela primeira vez pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal, Victor Nunes Leal, nos idos de 1963, para definir, em pequenos enunciados, o que vinham decidindo os mais renomados ministros de modo reiterado acerca de temas que se repetiam amiudadamente em seus julgamentos.
Era uma medida de natureza regimental, que se destinava, primordialmente, a descongestionar os trabalhos do Tribunal, simplificando e tornando mais célere a ação de seus juízes. Ao mesmo tempo, a Súmula servia de informação a todos os magistrados do País e aos advogados, dando a conhecer a orientação da Corte Suprema nas questões mais freqüentes.
Seu criador, Victor Nunes Leal, saiu em campo e, em conferências proferidas na época, explicou e deixou bem claro que a Súmula não tinha caráter impositivo ou obrigatório. Ela era matéria puramente regimental e podia ser alterada a qualquer momento, por sugestão dos ministros ou das partes, através de agravo contra o despacho de arquivamento do recurso extraordinário ou do agravo de instrumento.
Naquela oportunidade, não de imaginava a possibilidade de conferir à Súmula o poder vinculante ou de cumprimento obrigatório, imutável para o próprio tribunal que a edita ou para as instâncias inferiores. "Do contrário teríamos a revivescência dos Assentos do Superior Tribunal de Justiça, na esteira dos Assentos das Casas de Suplicação, considerados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, desde a fundação da República", explica Evandro Lins e Silva.
Segundo Evandro Lins e Silva, "é muito difícil e devem ser raríssimos os casos de rebeldia contra as Súmulas. Ao contrário, os juízes de segunda e primeira instâncias não apenas as respeitam, mas as utilizam, como uma orientação que muito os ajuda em suas decisões. Todos sentem falta das Súmulas, que se tornaram instrumentos utilíssimos a todos os juízes e aos advogados. Elas, na prática, já são quase vinculantes, pela tendência natural dos juízes em acompanharem os julgados dos Tribunais Superiores.
Torná-las obrigatórias, não me parece ortodoxo, do ponto de vista da harmonia, independência e separação dos poderes. Todos os juízes devem ter a independência para julgar de acordo com a sua consciência e o seu convencimento, inclusive para divergir da Súmula e pleitear a sua revogação".
São contraditórias as opiniões sobre a conveniência de adotar-se ou não da tese da vinculação de Súmulas. Os Tribunais, pelo menos alguns deles, estão muito empenhados em sua adoção, enquanto muitos juristas se opõem, abertamente.
Os defensores da Súmula Vinculante justificam-na com o fato de que muitos assuntos são repetitivos e trazidos à justiça, obrigam a uma perda de tempo enorme. Isto ocorre, com mais freqüência em matéria fiscal; os Tribunais são chamados a se pronunciar sobre o mesmo assunto, numerosas vezes, o que caracteriza uma perda de tempo flagrante. O desafio consiste em estabelecer normas que abranjam apenas os casos em que a sua adoção seja, efetivamente, satisfatória.
No entanto, há que se ver com cautela a forma de imposição que possa fazer uma Súmula Vinculante e o alcance de sua aplicação ao caso concreto. Tratando-se de direitos e deveres vinculados à população infanto-juvenil e às relações familiares, as situações são marcadas de particularidades em cada caso.
Alerte-se que qualquer tipo de imposição de interpretação de normas torna-se inválida diante da infinita riqueza de casos possíveis mediante os quais as normas podem ser subsumidas. Num conflito da Súmula com a lei, a prevalência desta última torna aquela ineficaz; ao mesmo tempo, se assumimos que a Súmula tem força de lei estamos submetendo-nos a um conjunto de normas emanadas de um poder não sujeito ao controle popular.
Percebemos, neste momento, a gravidade do problema e também a verdadeira questão que está por trás do debate. Em nome da celeridade da Justiça o desafio que se apresenta ao ordenamento jurídico brasileiro é estabelecer os casos em que a sua adoção seja, efetivamente, satisfatória.
Temos defendido o reconhecimento dos Direitos Fundamentais da Criança e do Adolescente como cláusulas pétreas, sejam estes de cunho individual ou coletivo, sem afastar a aplicabilidade imediata dos mesmos ( art, 5o, parágrafo 1o- CF). No mesmo patamar de eficácia estão aqueles dispersos na Constituição Federal, bem como aqueles consagrados nos Tratados e Convenções ratificados, como explicamos na introdução desta obra. Alerte-se, sobretudo para o fato de que o Estatuto da Criança e do Adolescente configura-se como o diploma legal que regulamenta os referidos Direitos Fundamentais, quais sejam, aqueles elencados no art. 227-CF.
O Magistrado, ao determinar uma medida em nome do "melhor interesse de uma criança", não pode ser condicionado, em princípio, a uma norma prévia, desprovida dos conteúdos humanos próprios de cada caso, em nome da uniformização de condutas e de uma almejada celeridade. No âmbito da família, infância, juventude e do idoso exige-se maior cautela a submissão às Súmulas Vinculantes.
A Jurisprudência dos Tribunais tem comparecido como importante fonte de orientação nas decisões que envolvem esta parcela considerável da população no exercício de seus direitos fundamentais. No âmbito da tutela jurisdicional da infância e juventude, procedimentos importantes de celeridade foram assumidos no "Estatuto", a exemplo de prazos menores para apelação e recursos, a possibilidade de o juiz retratar-se de sua decisão antes de remeter a Apelação ao Segundo Grau, a dispensa de Revisor em grau de recurso, são exemplos desta postura de vanguarda assumida desde 1990.
Também no âmbito das relações familiares é difícil conceber que o Juiz seja condicionado em suas decisões relativas à guarda de filhos, limites da responsabilidade dos pais no exercício do Poder Familiar, regulamentações de visitas, partilha de bens, etc. Deve ser também preservada a independência do Magistrado em seu livre convencimento diante do caso concreto. O apoio de uma equipe interdisciplinar permite-lhe o efetivo conhecimento das variáveis de cada situação a ser julgada.
Comungamos com Paulo Afonso Garrido de Paula ao estabelecer que "ao validar um direito da criança e do adolescente, a eficácia do ato decisório transcende os limites das partes no processo, alcançando a própria estrutura social, porquanto além da entrega do bem da vida ao infante, garante condições acautelatórias da marginalidade ou fomenta suas próprias transposições para a cidadania". (...) Em decorrência da natureza preventiva e de urgência da tutela diferenciada na Justiça da Infância e Juventude, cabe ao Juiz "atalhar dano irreparável ou de difícil reparação e promover medidas que, se não concedidas com rapidez, perdem seu sentido ante a efemeridade dos interesses postos em Juízo".
Não comporta, portanto, tratando-se de direitos e deveres relativos á criança, ao adolescente e às relações familiares prejulgarmos como negativa a submissão à Súmula Vinculante. Sendo atribuição específica do Supremo Tribunal Federal, espera-se dos seus membros o zelo pelas disposições constitucionais vigentes e pelo respeito aos Direitos Humanos.
Evandro Lins e Silva "Crime de Hermenêutica e Súmula Vinculante" In http://campus.fortunecity.com/clemson/493/jus/m05-011.htm - retirado em 19/02/2005
2 Vide Tânia da Silva Pereira e Carolina de Campos Melo. "Infância e Juventude: os direitos fundamentais e os princípios constitucionais consolidados na Constituição de 1988" In Revista Trimestral de Direito Civil n.3 . Rio de janeiro: Padma, 2000. pp.89/109.
3 Paulo Afonso Garrido de Paula In O Direito da criança e do Adolescente e a tutela diferenciada na Justiça da Infância e Juventude.
São Paulo: RT, 2002, pp.129/130.
* O artigo foi escrito pela presidente da Comissão Nacional de Infância e Juventude do IBDFAM, Tânia da Silva Pereira, em ocasião da sanção da Emenda Constitucional 45 e dentro das comemorações dos 15 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
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