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Aborto: a violação do “segredo de justiça” e a tragédia como “bandeira”
Um bebê de aproximadamente 29 semanas de vida intrauterina foi morto em 23 de junho último no estado de Santa Catarina. Esse foi o desfecho de um caso que ganhou notoriedade nacional graças ao vazamento de dados de um processo sigiloso. Sim, a notoriedade do caso é fruto de um ilícito perverso.
O artigo 189 do Código de Processo Civil, lido em consonância com o artigo 206 do Estatuto da Criança e do Adolescente (“ECA”), dentre outros dispositivos protetivos da infância e da juventude de índole constitucional, impunham ao caso segredo de justiça. O caso envolvia menores de idade em situação de vulnerabilidade. Parte de uma audiência judicial foi ilicitamente gravada e ilicitamente vazada à imprensa. Foi o início do triste caso que viria a ganhar repercussão nacional.
O linchamento moral da juíza e da promotora que atuavam no caso ocorreu na sequência. Profissionais do direito, mulheres, foram ilicitamente expostas pela divulgação espúria. Causa espécie que declaração editada (e ilicitamente divulgada) das autoridades que tinham profundo conhecimento do processo judicial foi o bastante para quase todos os grandes órgãos de imprensa e até mesmo diversas entidades que congregam especialistas, inclusive o IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, pronunciarem-se favoravelmente à interrupção da gravidez da menina, a qual viria a “parir” um cadáver. O silêncio aqui valeria ouro. Optaram por espalhar lama.
Perverter, verbo transitivo direto, significa “desfigurar, dar mau sentido, desvirtuar”. Perverso é aquele que age de modo a corromper a virtude e, segundo a psicanálise, goza com isso. O perverso não é “louco”, conhece a lei. Seu gozo vem justamente da negação da norma.
Impossível não se observar no conjunto dos fatos que se seguiram à ilícita divulgação do ato processual o ápice da perversão. O uso de uma tragédia familiar privada, resguardada por lei e por profissionais do mais alto gabarito na defesa de interesses de menores vulneráveis se torna, a partir do ilícito vazamento, bandeira para a defesa vulgar do aborto, um “case” para se comentar nas redes sociais ou nos botecos.
Muitos já discorreram sobre quando a vida humana começa. Para o caso de não se admitir uma conclusão definitiva quanto a isso, recorramos a uma probabilidade sem viés: 50% de chance de que a vida humana se inicie na concepção; 50% de chance de que a vida humana se inicie em outro momento posterior. Pois bem. O mero fato de haver 50% de chance de se errar e de tal erro vir a resultar na morte de um ser humano inocente é motivo mais do que suficiente para a condenação moral do aborto. “In dubio pro vida”, bem maior constitucionalmente protegido. Essa conclusão é puramente lógica.
Evidentemente que há situações em que a norma penal não se aplica de modo a punir a mãe ou o partícipe do ato de se matar um bebê intrauterino. Mas no caso em tela, dado o avançado estágio da gravidez e dado que o bebê era fruto de uma relação entre dois menores de 14 anos (dado que depois se soube que fora omitido pelo “site” ao qual o ato processual fora ilicitamente vazado), tinha diversas nuances que dificultavam o enquadramento claro, exato e imediato em uma excludente de ilicitude.
Pode-se especular se as autoridades expostas à execração pública após o ilícito vazamento não teriam, diante do avançado estágio da gravidez, ponderado entre o parto de um ser humano que poderia vir a ser eventualmente adotado por outra família ou o “parto” de um cadáver (ambos igualmente traumáticos para a jovem genitora). Seria uma ponderação absolutamente legítima. É para isso que existem os operadores do direito: para interpretar a norma ao aplicá-la ao caso concreto.
O “segredo de justiça” estabelecido em lei, longe de ser uma mera formalidade, pode ser a diferença entre a vida e a morte. Isso nunca foi tão evidente como nesse triste episódio. A violação ilegal do sigilo pode ter obstaculizado o processo interpretativo para dar novo rumo ao caso: o rumo da morte. E as crianças vulneráveis envolvidas irão crescer e um dia acessarão todos os detalhes, as opiniões, as solenes “notas oficiais”, os palpites, os xingamentos, as piadas... Sua tragédia usada como “bandeira”, sem direito ao esquecimento.
Fernando Borges de Moraes
Advogado
OAB/AM A446
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