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Seria possível o reconhecimento de indignidade sucessória por manifestações nas redes sociais?
Marcos Ehrhardt Junior
Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor de Direito Civil da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e do Centro Universitário Cesmac. Editor da Revista Fórum de Direito Civil (RFDC). Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCivil). Presidente da Comissão de Enunciados do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Membro Fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual – IBDCont e do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Advogado. E-mail: contato@marcosehrhardt.com.br.
Gustavo Henrique Baptista Andrade
Pós-doutorado em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Mestre e Doutor em Direito Civil pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família – Secção Pernambuco (IBDFAM-PE). Membro do Grupo de Pesquisa Constitucionalização das Relações Privadas (CONREP) UFPE-CNPq. Procurador do Município do Recife. Advogado. E-mail: gustavo@gustavoandrade.adv.br.
De acordo com o dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, a origem da palavra dignidade remonta ao século XIII. Sua etimologia aponta para o latim dignitas, atis, como sinônimo de merecimento, valor, nobreza[1]. A pretensão aqui é contextualizar o significado do que hoje se entende por dignidade, para que se possa alcançar a compreensão do instituto da indignidade no direito das sucessões brasileiro, tema sobre o qual se debruçará este pequeno ensaio.
Convém lembrar que a dignidade é um dado prévio e que a noção de dignidade da pessoa humana representa uma categoria axiológica aberta, um conceito jurídico em permanente processo de construção e desenvolvimento, a exigir uma constante concretização e delimitação pela práxis constitucional[2].
Nas últimas décadas, enquanto se desenvolvia a noção de dignidade e se lhe ampliava o espectro para a ambiência da justiça social, a codificação civil brasileira trabalhava a sua antítese, a indignidade, em franca preocupação com os aspectos patrimoniais das situações jurídicas sucessórias. Considerando que poucas foram as modificações levadas a efeito no Livro das Sucessões do Código Civil de 2002, é possível afirmar que, mesmo com toda a evolução que tornou o direito de família brasileiro uma referência, ou com a tentativa de modernização das mais diversas disciplinas civilistas, a exemplo da responsabilidade civil e dos contratos, a indignidade sucessória ainda tem sua base presa aos alicerces liberais do século XIX. O descompasso acima descrito tem trazido algumas dificuldades para o enfrentamento de questões ligadas ao direito das sucessões no contexto da evolução tecnológica.
A indignidade prevista no Código Civil vigente abrange não somente os casos de exclusão da herança, aqueles que incorrerem em conduta que se desvia do comportamento que se espera de um herdeiro (arts. 1.814 a 1.818) – aqui incluídos tanto os herdeiros legítimos quanto os testamentários –, mas também as hipóteses de deserdação (arts. 1.961 a 1.965), estas ligadas exclusivamente aos herdeiros legítimos.
A exclusão da sucessão por indignidade somente se dá por decreto judicial, presumindo-se a princípio a legitimidade do herdeiro excluído. Como afirmado, trata-se de uma sanção atribuída a herdeiros legítimos e testamentários, além de legatários. Já a deserdação dá-se por ato voluntário do testador, atingindo os herdeiros necessários, uma vez que na inexistência destes, basta que o autor da herança destine seus bens a terceiros, excluindo os demais herdeiros legítimos[3].
Perceba-se que tanto a exclusão quanto a deserdação decorrem de disposição legal, mas a última depende de ato de vontade do autor da herança. Como assevera Paulo Lôbo, “o testamento é apenas seu instrumento, mas a finalidade é a exclusão do herdeiro necessário, o que a conduz necessariamente à sucessão legítima”[4], sendo certo que o instituto da indignidade abarca todas as causas de exclusão legal e de deserdação voluntária.
Apesar de os casos de indignidade, seja como causa de exclusão, seja de deserdação, encerrarem numerus clausus e procurarem indicar situações objetivamente definidas, não há como deixar de salientar a existência do conteúdo moral[5] vigente à época da redação da codificação do início do século XX, o que fica claro ao se confrontar os dispositivos atualmente vigentes com os arts. 1.595 a 1.602 (exclusão) e 1.741 a 1.745 do Código Civil de 1916, os quais apresentam muitas semelhanças, à exceção da hipótese de “desonestidade da filha que vive na casa paterna” da legislação pretérita, dado seu manifesto cunho discriminatório e sua consequente inconstitucionalidade.
O ponto de partida para tratar das questões abordadas neste artigo é a atual disciplina jurídica estabelecida pelo Código Civil, que foi sintetizada acima, sobre a qual se detém a melhor doutrina pátria na direção de sua ressignificação para uma melhor adequação ao programa valorativo da CF/88. No entanto, enquanto parte considerável dos autores que estudam o tema se dedica a promover e densificar a dignidade humana, constata-se o significativo aumento da exposição de aspectos de nossa intimidade e privacidade em plataformas digitais, cujo conteúdo oferecido é exatamente aquele que as pessoas estão dispostas a compartilhar em busca de reconhecimento, que costuma ser aferido em número de visualizações e de curtidas.
Ana Carla Harmatiuk Matos e Hermano Victor Faustino Câmara destacam que “não importa necessariamente a notoriedade das pessoas, nem a relevância dos fatos: tudo pode ser objeto de veiculação”. De fato, “a mais pacata das pessoas, cometendo ações banais, pode ser retratada em postagens e publicações nas redes sociais, pois nessa ambiência o interesse por conteúdos não é norteado de modo exclusivo pela notoriedade das figuras ou fatos”[6].
Nada obstante, as ferramentas e aplicações de inteligência artificial que permitem a customização do conteúdo disponibilizado individualmente para cada usuário ou grupo de pessoas, vale dizer, a personalização daquilo que cada um de nós deseja acessar, apresentam como efeito colateral o crescente processo de radicalização no qual as pessoas com valores e distintas visões de mundo afastam-se em direção a pontos extremos, que ameaçam o diálogo e o exercício de tolerância para com aqueles que pensam diversamente.
Nessa senda, importante destacar que “além de não poder aniquilar os próprios direitos, o usuário das redes sociais também não pode descuidar dos direitos de personalidade alheios: as opiniões lançadas no ambiente virtual não estão isentas de controle, pois há situações em que a honra alheia há de ser protegida, e a liberdade de expressão no ambiente virtual há de ser limitada também em face dos direitos da personalidade”[7].
Simone Tassinari e Eduarda Santos, em artigo específico destinado ao estudo da liberdade de expressão nas relações familiares, anotam que, em geral, situações de tensão entre personalidade versus liberdade de expressão ocorrem em ambiente público, o que torna um pouco mais fácil perceber os casos em que o “exercício da liberdade de expressão acaba por ferir os direitos de personalidade de alguém nas relações sociais em geral, sobretudo quando da exposição ofensiva decorrem efeitos a partir do conhecimento de terceiros”[8].
No ambiente das relações familiares ? que numa perspectiva puramente analógica, vale dizer, anterior ao advento dos grupos familiares em redes sociais e aplicativos de mensagens, costumava ser retratado como um espaço de intimidade blindado de interferências externas –, muitos dos conflitos ficam restritos ao conhecimento dos componentes daquele núcleo, servindo a falta de publicidade como maior obstáculo ao controle judicial de questões que envolvem violações aos direitos de personalidade[9]. Por isso há quem sustente que ofensas verbais proferidas no contexto familiar nem sempre são suficientes para caracterizar um dano extrapatrimonial indenizável, afastando, pelos mesmos argumentos, a eventual possibilidade do reconhecimento da indignidade.
Considerando tudo o que foi exposto até o presente momento, seria possível considerar o abuso no exercício da liberdade de expressão no ambiente familiar hipótese fática de configuração de procedimento indigno no campo do direito sucessório?
Nos termos do disposto no inciso II do art. 1.814 do CC/02, a resposta para a indagação acima apresentada é afirmativa. Devem ser excluídos da sucessão aqueles que mediante abuso no exercício da liberdade de expressão atentarem contra a honra do autor da herança, por qualquer meio ilícito, incluindo aqui o ambiente das redes sociais. Trata-se de punição imposta pelo sistema jurídico àquele que pratica atos contrários ao direito.
Vivemos atualmente o desafio de traduzir uma legislação e jurisprudência analógicas para uma realidade digital, enquanto não se produzem leis específicas para lidar com novas questões que a tecnologia inseriu em nossas vidas. Estamos num ponto sem retorno, e a mudança de atitudes, hábitos e valores se tornará ainda mais evidente quando ultrapassarmos o distanciamento social que a pandemia nos impôs, pois parte daquilo que se tornou a nova rotina nos lares brasileiros continuará sendo adotada e intensificada. Se intrinsecamente a tecnologia não pode ser rotulada como algo bom ou ruim, o emprego que fazemos dela tem consequências que não estão imunes às garantias constitucionais e à legislação vigente.
Muito se tem a discutir, errar e acertar no campo do domínio da internet para o direito. Novas situações jurídicas surgem a cada dia, e a primeira conclusão a que se pode chegar é acerca da necessidade de se trabalhar com parâmetros éticos bem definidos para a convivência nesse universo.
Há que se preocupar também com o modelo de negócio que fará transmitir e fazer circular as informações. Tal modelo de negócio deve igualmente se pautar pela ética e por boas práticas, dispondo de ações afirmativas aptas a prevenir ou minimizar os efeitos de eventual violação de direitos. Entretanto, cumpre salientar a existência, no sistema jurídico brasileiro, de base legislativa suficiente para a solução dos casos concretos, em especial ante a colisão dos direitos fundamentais em tela, a liberdade de expressão[10].
[1] HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p. 684.
[2] SARLET, Ingo Wolfgang Sarlet. Algumas notas em torno da relação entre o princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais na ordem constitucional brasileira. In: LEITE, George Salomão (Org.). Dos princípios constitucionais. Considerações em torno das normas principiológicas da Constituição. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 198-236.
[3] LÔBO, Paulo. Direito civil. Vol. 6. Sucessões. São Paulo: Saraiva Educação, 2021, p. 204.
[4] LÔBO, Paulo. Direito civil. Vol. 6. Sucessões. São Paulo: Saraiva Educação, 2021, p. 205.
[5] Acerca da A vagueza semântica da locução procedimento indigno, seja permitido remeter a QUINTELLA, Felipe; MAFRA, Tereza Cristina Monteiro. Abuso no exercício da liberdade de expressão e indignidade no direito de família. In: EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; LOBO, Fabíola Albuquerque; ANDRADE, Gustavo (Coord.). Liberdade de expressão e relações privadas. Belo Horizonte: Fórum, 2021. p. 327-344.
[6] MATOS, Ana Carla Harmatiuk; CÂMARA, Hermano Victor Faustino. Direitos da personalidade e liberdade de expressão nas redes sociais: atualizando critérios de ponderação. In: EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; LOBO, Fabíola Albuquerque; ANDRADE, Gustavo (Coord.). Liberdade de expressão e relações privadas. Belo Horizonte: Fórum, 2021. p. 98.
[7] MATOS, Ana Carla Harmatiuk; CÂMARA, Hermano Victor Faustino. Direitos da personalidade e liberdade de expressão nas redes sociais: atualizando critérios de ponderação. In: EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; LOBO, Fabíola Albuquerque; ANDRADE, Gustavo (Coord.). Liberdade de expressão e relações privadas. Belo Horizonte: Fórum, 2021. p. 99. Ainda sobre o tema, vale destacar o entendimento de Eduardo Nunes Souza, Rodrigo da Guia e Cássio Rodrigues: “Como propõe a ótica civil-constitucional, os institutos jurídicos devem ser compreendidos como figuras históricas e relativas. A malfadada aplicação de um conceito jurídico de liberdade desprovido de qualquer historicidade (ou, pior, munido da importação acrítica da experiência alheia) faz com que o direito deixe de refletir sua própria sociedade, sua história e cultura, suas conquistas arduamente alcançadas, para representar uma identidade estrangeira. O que é ainda mais grave: não se pode esperar que tal importação indevida forneça os mesmos resultados benéficos que porventura possam ter sido produzidos em outro sistema, justamente porque, neste último, o conceito está situado no tempo e no espaço – mas não no primeiro, que o absorveu de forma acrítica e desatenta ao seu próprio contexto. Esse aspecto singelo da interpretação e aplicação do direito, se desconsiderado, acarreta uma quebra de sistemática: um instituto jurídico existe em relação com os demais e com a realidade social, de tal modo que o seu sentido, em certo ordenamento, apenas se explica a partir do fino equilíbrio e do sistema de compensações entre ele e esses outros elementos”. (SOUZA, Eduardo Nunes de; SILVA, Rodrigo da Guia; RODRIGUES, Cássio Monteiro. Desafios atuais à disciplina jurídica da liberdade de expressão nas redes sociais. In: EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; LOBO, Fabíola Albuquerque; ANDRADE, Gustavo (Coord.). Liberdade de expressão e relações privadas. Belo Horizonte: Fórum, 2021. p. 122-3).
[8] FLEISCHMANN, Simone Tassinari Cardoso; SANTOS, Eduarda Victória Menegaz dos. Liberdade de expressão: um direito absoluto no ambiente familiar? In: EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; LOBO, Fabíola Albuquerque; ANDRADE, Gustavo (Coord.). Liberdade de expressão e relações privadas. Belo Horizonte: Fórum, 2021. p. 312.
[9] Vale aqui destacar a excelente pesquisa jurisprudencial realizada por Simone Tassinari e Eduarda Santos, que sistematizaram os principais argumentos utilizados nos tribunais ao apreciar casos que versam sobre os conflitos relacionados à liberdade de expressão na família: “O primeiro, mais óbvio, é o fato de que a ofensa que ocorre somente dentro do ambiente familiar não é suficiente para ofender. É necessário que haja presença de terceiros estranhos perante aos quais ela aconteça. O segundo diz respeito a uma elasticidade que somente é admitida no ambiente familiar, porque entendida como totalmente desrespeitosa em ambiente social, mas perdoada em seio familiar. As mesmas expressões dirigidas a membro da família não lesam, mas dirigidas a terceiros geram tutela jurídica. O terceiro seria a exigência de que o ofendido não retorne a agressão. Em quarto lugar, verifica-se que ainda está presente o resquício do patriarcado, que objetifica e ofende as mulheres com expressões extremamente pejorativas que questionam sua sexualidade, ainda que na tentativa de ofender o homem com quem ela se relaciona e não encontram tutela estatal para reconhecê-las como danosas. E, por fim, verifica-se que o montante condenatório fora do ambiente familiar é maior”. (FLEISCHMANN, Simone Tassinari Cardoso; SANTOS, Eduarda Victória Menegaz dos. Liberdade de expressão: um direito absoluto no ambiente familiar? In: EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; LOBO, Fabíola Albuquerque; ANDRADE, Gustavo (Coord.). Liberdade de expressão e relações privadas. Belo Horizonte: Fórum, 2021. p. 312).
[10] Sobre o tema, seja permitido remeter a ANDRADE, Gustavo Henrique Baptista. Liberdade de expressão, Estado de direito e democracia. In: EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; LOBO, Fabíola Albuquerque; ANDRADE, Gustavo (Coord.). Liberdade de expressão e relações privadas. Belo Horizonte: Fórum, 2021. p. 50.
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