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Somos todas Genis
Ouvir a música de Chico Buarque, dos idos da década de 1970, Geni e o Zepelim, nos dá a sensação de ter sido composta hoje.
Geni e o Zepelim é uma das canções mais fortes da MPB. Composta por Chico Buarque em 1978 como parte do espetáculo Ópera do Malandro, a música permanece atual e suas críticas são super contemporâneas.
Em 1978 eu tinha recém completado 18 anos que, na época, não significava a maioridade civil. Vivíamos a ditadura militar, estava em pleno vigor o AI5, com a censura imperando no Brasil.
Chico Buarque e outros compositores brasileiros foram alvos da censura, suas músicas focavam nos problemas sociais, na opressão, na falta de liberdade e, por isso, proibidas.
Chico foi e é um contestador, um ícone para a MPB brasileira, com esse contexto de expor as mazelas da sociedade cataclísmica da ditadura.
Chico compôs sobre diversas mulheres, Yolanda era minha canção predileta, canção original do cubano Pablo Milanés que teve sua versão feita por Chico em 1984.
Geni fala sobre o uso do corpo, a objetificação da mulher e sua condenação pela sociedade.
Yolanda é uma construção advinda do amor de Pablo por sua esposa Yolanda Benet.
Geni é uma jovem senhora de 44 anos e é supermoderna, pois, 4 décadas passadas, continuamos a jogar pedras nas Genis.
Genis em termos figurados, Genis por serem mulheres, por terem ou não nascidas mulher.
Os casos recentes de uma mulher-menina de recém-completados 11 anos e de uma mulher-jovem de 21 anos, mostra bem a sociedade misógina que perdura no Brasil desde a colônia.
Sobre o aborto autorizado Maria Berenice Dias escreveu forte e lindamente.
Minha intenção, tendo vivido Geni e Yolanda, tendo empunhado faixas de: “abaixo a ditadura”; “constituinte livre, nacional e soberana”; por ter participado do movimento estudantil no fim da década de 1970 e início de 1980, por ser mulher e nordestina, mãe por adoção fruto de uma entrega legal, é falar do direito à entrega de um filho ou de uma filha em adoção.
Nós, mulheres, nem Genis nem Yolandas, somos donas dos nossos próprios corpos e senhoras dos nossos destinos.
Uma gravidez não desejada, seja por qual razão for, mas, principalmente advindo de um ato de violência hediondo como o estupro, pode ensejar a entrega da criança em adoção.
Esse não é o único motivo, que fique bem claro. A mulher que não desejar maternar não tem a obrigação de fazê-lo. Nós, mulheres, não temos a função de gerar filhos para a perpetuação da sociedade.
O poeta cubano José Martí escreveu que “há uma coisa que o homem deve fazer na vida: plantar uma árvore, escrever um livro e ter um filho.”
Nascer, crescer, reproduzir-se e morrer, ensinaram-me os livros escolares.
Esse ciclo de vida é destinado àqueles que não podem planejar a vida, assim como os animais não humanos.
Essas “obrigações” inquietaram-me até os 33 anos, eis que já era uma balzaquiana, solteira, sem filhos e sem qualquer indício de tê-los. Arquitetei uma “produção independente” que se transformou em um casamento e duas filhas maravilhosas. Nem tudo sai como planejado.
Nós, mulheres, podemos fazer planejamentos para uma vida acadêmica, profissional, afetiva e familiar, seguindo o nosso desejo.
Aprendi com minha amiga e psicanalista Elizabeth Capistrano que somos seres desejantes e que podemos seguir esses desejos, inclusive o de não maternar.
E, se por um acaso, ou por um ato de violência, engravidarmos, temos o direito legal de fazer a entrega da criança em adoção.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990) estabelece o direito à entrega legal em vários de seus artigos.
Art. 8º
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§ 5 o A assistência referida no § 4 o deste artigo deverá ser prestada também a gestantes e mães que manifestem interesse em entregar seus filhos para adoção, bem como a gestantes e mães que se encontrem em situação de privação de liberdade.
Art. 13
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§ 1 o As gestantes ou mães que manifestem interesse em entregar seus filhos para adoção serão obrigatoriamente encaminhadas, sem constrangimento, à Justiça da Infância e da Juventude.
Art. 19-A. A gestante ou mãe que manifeste interesse em entregar seu filho para adoção, antes ou logo após o nascimento, será encaminhada à Justiça da Infância e da Juventude.
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§ 5 o Após o nascimento da criança, a vontade da mãe ou de ambos os genitores, se houver pai registral ou pai indicado, deve ser manifestada na audiência a que se refere o § 1 o do art. 166 desta Lei, garantido o sigilo sobre a entrega.
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§ 9 o É garantido à mãe o direito ao sigilo sobre o nascimento, respeitado o disposto no art. 48 desta Lei.
Art. 166. Se os pais forem falecidos, tiverem sido destituídos ou suspensos do poder familiar, ou houverem aderido expressamente ao pedido de colocação em família substituta, este poderá ser formulado diretamente em cartório, em petição assinada pelos próprios requerentes, dispensada a assistência de advogado.
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I - na presença do Ministério Público, ouvirá as partes, devidamente assistidas por advogado ou por defensor público, para verificar sua concordância com a adoção, no prazo máximo de 10 (dez) dias, contado da data do protocolo da petição ou da entrega da criança em juízo, tomando por termo as declarações;
A lei respalda inúmeras vezes o direito à entrega legal e estabelece que será realizada em sigilo.
A sociedade através das mídias sociais, que são, ao mesmo tempo, céu e inferno no mundo globalizado, numa espécie de necrojornalismo, expõem a vida de uma mulher, rasgam-lhe o âmago, jogam-lhe pedras como se a nova Geni ressurgisse 44 anos depois da Opera do Malandro numa opera macabra da vida privada.
E sim, Andrea Pachá, a vida não é justa e não temos o direito ao esquecimento.
A criança que teve informações como data de nascimento, sexo, etnia, peso, divulgadas, também foi exposta em total violação ao seu direito, à preservação de seus dados.
E antes que, mais uma vez deturpem a lei, não se trata de “parto anônimo”,- por mais que, pessoalmente o defenda -, o direito ao conhecimento da origem biológica está no artigo 48 do ECA, que diz:
48. O adotado tem direito de conhecer sua origem biológica, bem como de obter acesso irrestrito ao processo no qual a medida foi aplicada e seus eventuais incidentes, após completar 18 (dezoito) anos.
Parágrafo único. O acesso ao processo de adoção poderá ser também deferido ao adotado menor de 18 (dezoito) anos, a seu pedido, assegurada orientação e assistência jurídica e psicológica.
Não gostaria de precisar escrever sobre isso, não seria necessário escrever sobre isso se uma lei de 32 anos (a serem completados em 13 de julho) fosse estudada nas bancas de direito, medicina, enfermagem, psicologia, serviço social, dentre outros cursos. Se o direito da criança e do adolescente não trouxesse os resquícios menoristas, como um direito “de menor”.
Não gostaria de precisar escrever sobre o nosso próprio direito às nossas escolhas.
A submissão da mulher ao homem que por muitos anos foi explicada de forma biológica, como se fossemos fracas, sem forças ou condições físicas de exercer determinadas atividades.
No campo psíquico deveríamos ser, apenas e tão somente, donas de casa, esposa e mãe, ou melhor, recatada e do lar sendo mais atualizada.
A construção de nossa autonomia no campo jurídico se deu muito lentamente, deste o Estatuto da Mulher Casada, que alterou o Código Civil; a Consolidação das Leis do Trabalho; a Consolidação das Leis da Previdência Social e as anteriores Cartas Magnas até a Constituição Federal de 1988, outra jovem desconhecida de cerca de 34 anos.
Éramos, no passado, educadas para servir e cuidar, enquanto o homem criado para conquistar e prover.
Imaginem que sou da época em que se estudava economia doméstica, bordado, como pôr a mesa, como embalar uma criança. O material escolar, além dos livros, incluía material de costura como linhas, tapeçarias, agulhas de costura, bordado, crochê e tricô, e instrumentos musicais como violão, caso a aluna fosse se dedicar a esse instrumento. Os colégios eram para meninas e havia colégios para meninos, com outro contexto.
Passada essa pequena reminiscência do passado longínquo, hoje as meninas levam Ipads, laptops, estudam robótica, astronomia, descobrem estrelas, asteroides, cometas, vão para Harvard, Cambridge, moram sozinhas etc. Aquelas que um dia desejam ser mães e não têm tempo para isso, congelam os óvulos, buscam barrigas de aluguel no exterior.
Voltando ao foco da entrega legal, do direito às nossas decisões e do direcionamento de nossas vidas: exauriu-se o assunto, a entrega foi legal, com base no ECA, a criança já está em família adotiva e devidamente habilitada para recebê-la e parentá-la com o cuidado necessário.
A jovem precisa de ar, espaço, lamber suas feridas, dar a volta por cima e viver plenamente sua juventude amadurecida a fórceps.
Por fim, RESPEITO!
Alguns trechos de Geni e o Zepelim para a antítese atual que vivemos, com desculpas a Chico Buarque pela inversão das estrofes, mas, o momento impõe essa mudança.
Mas logo raiou o dia
E a cidade em cantoria
Não deixou ela dormir
Joga pedra na Geni
Joga bosta na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni
Joga pedra na Geni
Joga bosta na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni
Ao ouvir tal heresia
A cidade em romaria
Foi beijar a sua mão
O prefeito de joelhos
O bispo de olhos vermelhos
E o banqueiro com um milhão
Vai com ele, vai Geni
Vai com ele, vai Geni
Você pode nos salvar
Você vai nos redimir
Silvana do Monte Moreira é presidente da Comissão Nacional de Adoção do IBDFAM, mestra em atenção psicossocial pelo Instituto de Psiquiatria da UFRJ, pós graduada em direito especial da criança e do adolescente da UERJ e mãe.
Os artigos assinados aqui publicados são inteiramente de responsabilidade de seus autores e não expressam posicionamento institucional do IBDFAM