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Estupro, sim!
Maria Berenice Dias
Advogada, Vice-Presidente Nacional do IBDFAM
Todo mundo sabe, mas não custa repetir: Desde o ano de 1940 o Código Penal autoriza o aborto quando a gravidez resulta de estupro (CP, art. 128, II).
Não há qualquer limitação ou condicionamento para que seja interrompida a gestação. Sequer é necessária autorização judicial para que o procedimento seja realizado na rede pública de saúde.
Não dispõe de qualquer significado se o estuprador é maior ou menor de idade. O fato de a lei nominar de ato infracional a conduta descrita como crime por quem tem menos de 18 anos (ECA, art. 103), não quer dizer que o delito não foi cometido. Ora, quem mata alguém, comete homicídio. E aplicar pena ou medida socioeducativa não descaracteriza a tipificação do crime: matar alguém (CP, art. 121).
Direto ao tema que vem sendo debatido à exaustão, a respeito do estupro cometido por um jovem de 14 anos de idade. Tal não subtrai da vítima o direito que lhe é assegurado legalmente de interromper a gravidez.
De todo descabido tentar culpabilizar a mãe por não ter “cuidado” da filha, para justificar sua institucionalização. Também absolutamente desarrazoada a suspeita de que o estuprador poderia ter sido o padrasto, pelo só fato de estatísticas indicarem ser este quem mais abusa sexualmente de crianças. Desde a primeira hora foi indicado pela vítima e assumido pelo jovem a relação sexual.
Nada disso está na lei penal que autoriza o aborto. Referenda este direito, a Súmula 593 do STJ: O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente.
De outro lado, absolutamente descontextualizada as definições trazida em Norma Técnica de atenção Humanizada ao Abortamanto. Ao distinguir aborto e abortamento, parece dar a entender que após a 20 ou 22 semanas de gestação não haveria a possibilidade de interromper a gravidez, ou que para isso fosse necessária autorização judicial.
O fato é que, nada, absolutamente nada justifica a tentativa de linchamento público que se está fazendo pelo adiantado estado de gravidez da vítima. Procrastinação, diga-se, que ocorreu por exclusiva culpa da justiça e dos agentes públicos.
A desnecessária e desastrosa escuta da menina, na tentativa de induzi-la a seguir com a gravidez, se baseou em dois argumentos mentirosos: se ela não esperasse mais um pouco, o “bebezinho” iria chorar até morrer e, se nascesse, seria imediatamente colocado em adoção.
Primeiro, em qualquer das técnicas de abortamento, o feto é retirado sem vida. Ao depois, a entrega voluntária para a adoção depende de um procedimento judicial que impõe: o encaminhamento da gestante ou mãe à Justiça da Infância e da Juventude; sua ouvida por equipe interdisciplinar; eventual encaminhamento à rede pública de saúde e assistência social para atendimento especializado e a busca da família extensa pelo prazo de 90 dias (ECA, art. 19-A). Após o nascimento a mãe e o pai indicado, depois de receberem orientações e esclarecimentos prestados pela equipe interdisciplinar, sobre a irrevogabilidade da adoção, devem ser ouvidos em audiência pelo juiz, na presença do Ministério Público e devidamente assistidos por advogado, para verificar a concordância de ambos. Só então é declarada a extinção do poder familiar (ECA, art. 166, §§ 1º e 2º).
Ora, não haveria como submeter uma criança, a quem é assegurado o direito de não ser mãe, a mais este verdadeiro calvário.
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