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A figura do padrasto no romance “poeta chileno”, de Alejandro Zambra
Lourival Serejo
Desembargador TJMA
O romance de Alejandro Zambra, Poeta chileno, recentemente lançado no Brasil, pela Companhia das Letras, traz uma análise curiosa sobre a figura do padrasto. Esse autor tem se destacado ultimamente como um dos melhores autores da literatura latino-americana da atualidade.
Fazendo todo esforço para não dar spoiler, tocou-me a inquietação do personagem Gonzalo sobre sua condição de padrasto do menino Vicente, depois de desenvolver um amor filial por ele. Não conformado com o uso da palavra “padrasto”, a seu ver depreciativa, ele procurou em vários dicionários de línguas distintas (padraste, patrigno, stiefvater, stefar, stedfar, ojczym, üvey, baba, beau-père, duonpatro, isäpuoli) uma expressão mais amena, mais afetiva que a substituísse. Não achou. A mais próxima do seu objetivo foi no vocabulário mapuche. É oportuno transcrever seu diálogo com o amigo Ricardo, que era linguista.
– Para os mapuches – disse Ricardo, adotando uma repentina dicção professoral –, o chau é o companheiro da mãe, dá no mesmo se é o pai biológico ou não. Chau é o nome de uma função, a função-pai.
– E como eles diferenciam o pai do padrasto?
– É o que estou te dizendo, a eles não interessa diferenciar.
– E o chau divorciado muda de nome?
– Não. Bem, não entendo tanto, mas acho que não. Quer dizer, se você foi chau continua sendo um, mesmo que haja outro chau ocupando seu lugar.
– Ou seja, uma criança pode ter dois chau.
– Claro, ou mais.
Ao assistir uma entrevista com o autor de Poeta chileno, despertou-me a atenção o termo usado por ele para designar sua relação com Vicente: padrastia. Sugiro ao Rodrigo que acrescente essa expressão a seu dicionário, com o significado, a meu ver do relacionamento e do exercício da função de padrasto.
Outra palavra que Gonzalo não admitia era “enteado”. Por que não chamar filho quando era assim que o considerava? Depois de ouvir os amigos, conformou-se, com amargura, de que Vicente era somente seu enteado.
O sentimento que ele tinha por Vicente, que ele ajudou a criar desde os seis anos de idade, quando se uniu à mãe dele, ia além da condição de padrasto. Do seu lado, a criança sentia por ele algo maior do que nutria por seu pai biológico, distante e nada receptivo.
Após a separação, quando Gonzalo resolveu ir estudar em Nova York, continuou preso sentimentalmente a Vicente, a ponto de colocar seu nome em todas as senhas do seu computador. Mas, a mãe de Vicente, contrariada, desenvolveu nele rusgas de alienação parental. Mesmo sentindo muita falta de Gonzalo, a ponto de ter se mudado para o mesmo quarto que ele ocupava, o menino deixou-se contaminar pelos ressentimentos maternos e evitava responder as mensagens dele.
Aos seus amigos de Nova York, inclusive a uma advogada, ele levantou a seguinte questão: depois da separação o estado de padrastia acabava? Ele seria, então, o ex-padrasto de Vicente? Só conformou-se quando uma amiga antropóloga lhe disse que não acabava, confirmando a informação de Ricardo. Uma vez padrasto, sempre padrasto. Essa é uma questão boa para os membros do IBDFAM pronunciarem-se.
Quando Gonzalo voltou ao Chile, depois de seis anos ausente, Vicente já estava com dezoito anos. Era um poeta e cheio de sonhos e dúvidas. Desenvolveu-se, então, sem o conhecimento da mãe, a etapa final do romance: o delicado trabalho de reconquistar Vicente.
Como juiz de família, deparei-me, muitas vezes, com alguns “gonzalos”. Após a separação ou o divórcio, o padrasto queria ter assegurado seu direito de visita ao enteado ou enteada, a quem muito se apegara.
É gratificante que um romance literário desse quilate (um dos melhores da América Latina nos últimos anos) traga discussões desse gênero.
Poeta chileno é um desses livros que a gente confirma o poder da literatura como o ponto mais alto da cultura humana, principalmente quando se externa pelo talento de um autor conectado com as intertextualidades contemporâneas.
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