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A multiparentalidade como consagração da dinâmica dos vínculos sociais
Autora: Alice Edivirgem Monteverde Peterle Modolo. Graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Especialista em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Advogada.
RESUMO: O reconhecimento da multiparentalidade surgiu diante da heteronomia social, objetivando acompanhar a evolução das formas de se relacionar. A família possui inúmeros modelos que precisam ser respeitados e tutelados juridicamente. A socioafetividade, nesse sentido, representa a criação de vínculos pautados no afeto ao invés da biologia, resultante de uma decisão espontânea e genuína. O presente trabalho, assim, busca tratar das diversas facetas da multiparentalidade e da socioafetividade, demonstrando que não são fenômenos modernos e que o seu reconhecimento é fundamental para a efetivação de princípios constitucionais e infraconstitucionais. Para tanto, serão citados contos populares, analisada a evolução histórica e trazidos entendimentos doutrinários e jurisprudenciais sobre o tema.
Palavras-chave: Multiparentalidade; Socioafetividade; Família; Filiação.
ABSTRACT: The recognition of multi-parenthood emerged in the face of social heteronomy, aiming to keep up with the evolution of ways of relating. The family has many models that need to be respected and legally protected. Socio-affectivity, in this sense, represents the creation of bonds that are based on affection instead of biology, resulting from a spontaneous and genuine decision. This paper, therefore, seeks to address the various facets of multi-parenthood and socio-affectivity, demonstrating that they are not modern phenomenon and that their recognition is essential for the realization of constitutional and infra-constitutional principles. For such purpose, popular tales will be cited, the historical evolution analyzed and doctrinal and jurisprudential understandings on the subject will be brought forward.
Keywords: Multi-parenthood; Socio-affectivity; Family; Filiation.
1 INTRODUÇÃO
Existem inúmeras composições familiares, cada uma com um jeito único e especial de ser. Não tem nenhuma receita de família igual a outra, mas há um ingrediente que une todas: o amor. Foram muitos os filósofos, escritores e cientistas que buscaram defini-lo. A verdade é que o amor é um mistério sublime e qualquer pronunciamento a seu respeito equivale a desvalorizá-lo e limitá-lo.
O amor faz parte da natureza humana e o Direito vem reconhecendo, cada vez mais, a sua incondicionalidade, sendo a família uma das formas mais conhecidas de manifestação desse sentimento. Nesse sentido, cabem destacar as famílias multiparentais, ou seja, aquelas em que existe um vínculo de filiação com mais de uma mãe ou mais de um pai.
A multiparentalidade nada mais é do que o reconhecimento de vínculos que não possuem origem biológica, mas afetiva. Diante disso, é relevante o debate sobre o tema, como forma de compreender a dinâmica dos vínculos sociais e as suas implicações no Direito Civil.
2 A PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA NOS CONTOS POPULARES
Conforme narra a Bíblia (Lucas 1, 26-38), Maria era uma jovem virgem que vivia em Nazaré da Galileia e estava noiva de um carpinteiro chamado José, mas, antes do seu casamento, ficou grávida do Espírito Santo de Deus. José, ao saber da gestação e acreditando que Maria havia se relacionado com outro homem, pretendia anular o casamento secretamente, para evitar a desonra pública.
Contudo, enquanto José dormia, um anjo apareceu em seu sonho dizendo que não precisava ter medo de se casar, pois o filho que Maria havia concebido era do Espírito Santo. Dessa forma, José fez o que o anjo pediu, casando-se com Maria e dando à criança o nome de Jesus. A história narrada é uma das mais conhecidas da humanidade e, independentemente de crenças religiosas ou espirituais, retrata um caso de socioafetividade. Jesus era filho biológico do Espírito Santo de Deus que escolheu Maria para dar à luz àquele que seria o salvador da humanidade.
José, apesar de não ser o pai biológico de Jesus, exerceu todas as responsabilidades decorrentes da paternidade, cuidando da criança como se fosse seu filho de sangue. Verifica-se, assim, que exerceu a função de pai socioafetivo, tendo em vista que assumiu os deveres de cuidado, proteção e educação, inerentes da paternidade. A família composta por Maria, José e Jesus simboliza uma das inúmeras famílias em que há o exercício da parentalidade por indivíduos que não possuem laços biológicos entre si, mas de afetividade.
Outras histórias popularmente conhecidas também retratam casos de parentalidade socioafetiva. Segundo a mitologia romana, os gêmeos Rômulo e Remo, filhos biológicos do deus Ares e da mortal Reia, foram jogados no rio pelo tio materno que tinha o objetivo de matar as crianças para ser o próximo sucessor do trono.[1] Não obstante, os irmãos foram encontrados pela loba Capitolina que passou a amamentá-los e, posteriormente, foram criados por um pastor de ovelhas e sua esposa (PINSKY, 2015). Dessa forma, além de uma família biológica, os irmãos também tiveram uma família socioafetiva, configurando-se a multiparentalidade.
Moisés, assim como Rômulo e Remo, também foi colocado no rio, mas o intuito da sua família biológica era salvá-lo da morte, considerando que, na época, o faraó determinou que fossem executados os filhos homens dos hebreus. De acordo com a história bíblica (Êxodo 2, 1-10), que remonta a antes de Cristo, o rio levou Moisés até a filha do faraó Ramsés II e ela o criou como se fosse seu filho.
Em “O livro da selva” (KIPLING, 1984), conta-se sobre uma criança que, diante da morte dos pais biológicos, fica perdida na selva e é criada por uma alcateia, recebendo o nome de Mogli. Além disso, o conto de Tarzan (BURROUGHS, 1912) narra sobre o filho de aristocratas ingleses que, após o falecimento dos seus genitores, é criado por macacos na selva africana; é Kala, uma primata, quem desempenha a função de mãe afetiva de Tarzan.
Em “O Rei Leão” (DISNEY, 1994), um filhote de leão, ao se perder de sua família biológica, é encontrado por um javali e um suricato. Os amigos Timão e Pumba desempenham a função de pais socioafetivos e transmitem a Simba os seus hábitos e valores, criando o leão com muito zelo e amor.
Independentemente da veracidade das histórias aqui mencionadas, vislumbra-se que a socioafetividade e a multiparentalidade foram retratadas em diversas épocas e culturas. Nas palavras de Maria Berenice Dias e Marta Caudoro Oppermann (p. 10), “famílias multiparentais sempre existiram e continuarão a existir, a diferença é que até recentemente eram condenadas à invisibilidade”. Assim, embora o vínculo afetivo tenha sido admitido pela Constituição da República Federativa do Brasil apenas em 1988, não é um fenômeno moderno.
3 O DIREITO DE FILIAÇÃO SOB O PRISMA DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E INFRACONSTITUCIONAIS
As expressões “paternidade socioafetiva” e “parentalidade socioafetiva” são uma criação da doutrina brasileira, posteriormente absorvidas pela jurisprudência. Foi o jurista paranaense Luiz Edson Fachin (1992) a primeira pessoa a utilizar os termos no Brasil, ao realizar a sua tese de doutorado sob o título “Estabelecimento da Filiação e Paternidade Presumida”.
Ressalta-se que a parentalidade socioafetiva é gênero do qual resultam as espécies maternidade socioafetiva e paternidade socioafetiva, de forma a consubstanciar a existência da filiação biológica e afetiva e, consequentemente, da multiparentalidade. A filiação representa um elemento fundamental na formação da identidade do ser humano, sendo tutelada por princípios constitucionais e infraconstitucionais que regem o Direito de Família.
Nesse sentido, salientam-se o princípio da igualdade de filiação, da dignidade da pessoa humana, da afetividade e da proteção integral da criança e do adolescente, que inserem a socioafetividade nas estruturas parentais. O princípio da igualdade de filiação é consagrado no artigo 227, parágrafo sexto, da Constituição Federal (BRASIL, 1988). Assegura a igualdade de tratamento a todos os filhos, não sendo admitida qualquer discriminação quanto à origem da filiação, quer biológica, quer havida de outras formas.
O Código Civil, ainda, estabelece, em seu artigo 1.593, que o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem (BRASIL, 2002). Desse modo, a norma civilista atribui um conceito para a socioafetividade, na medida em que define a filiação socioafetiva como o parentesco resultante de outra origem, merecendo o mesmo respaldo daquele decorrente da consanguinidade. Neste mesmo sentido, segue o entendimento do Enunciado nº 108 da I Jornada de Direito Civil, in verbis: “no fato jurídico do nascimento, mencionado no art. 1.603, compreende-se, à luz do disposto no artigo 1.593, a filiação consanguínea e, também, a socioafetiva” (BRASIL, 2002).
O Estatuto da Criança e do Adolescente, por sua vez, assegura o princípio da igualdade de filiação em seu artigo 27, ao dispor que é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça (BRASIL, 1990). Logo, verifica-se que deve ocorrer o tratamento isonômico, independentemente da origem da filiação, sendo vetada qualquer forma de desigualdade e discriminação, de modo a serem garantidos os mesmos direitos e deveres aos filhos biológicos e socioafetivos.
O reconhecimento da filiação socioafetiva, ademais, representa uma forma de consagração do princípio da dignidade da pessoa humana, tido como direito fundamental e norte para o Estado Democrático de Direito, conforme preceitua o artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal (BRASIL, 1988). Trata-se de um macroprincípio, superprincípio ou princípio máximo que permite ao indivíduo o reconhecimento do seu histórico de vida e condição social, realçando a verdade real dos fatos.
Conforme Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona Filho (2017, p. 95 e 97), a dignidade da pessoa humana é um princípio solar de difícil definição que traduz um valor fundamental de respeito à existência humana, segundo as suas possibilidades e expectativas, indispensável a sua realização pessoal e à busca da felicidade. Representa, então, uma diretriz de solidarismo social.
Por fim, cabe salientar o princípio da afetividade. Destaca-se o referido princípio no tocante ao conceito de “desbiologização da paternidade”, elaborado por João Baptista Villela (1979), que torna o afeto merecedor de proteção e faz com que a biologia não seja mais um fator determinante para o estabelecimento de vínculos familiares.
É necessário não confundir procriação com paternidade: essa é a ideia defendida pelo jurista mineiro (VILLELA, 1979, p. 402). A paternidade vai muito além dos vínculos biológicos, sendo, primordialmente, um fator cultural resultante de uma decisão espontânea. Ser pai vai muito além de carregar o material genético de alguém: é uma escolha diária e dedicação constante pautada no afeto. Consiste em um ato de serviço e de amor ao próximo, no sentido de cuidar, amparar, educar, assistir, proteger e criar.
Ressalta-se, ainda, o princípio da proteção integral da criança e do adolescente que embasou a criação da Lei nº 8.069/90. O Estatuto, diferentemente do Código de Menores (Lei nº 6.697/79), enxergou as crianças e os adolescentes como sujeitos de direitos e destinatários de absoluta prioridade.
A proteção integral teve como referencial a Declaração Universal dos Direitos do Homem, a Declaração Universal dos Direitos da Criança, as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça, da Infância e da Juventude - Regras de Beijing, as Diretrizes das Nações Unidas para a prevenção da delinquência juvenil - Diretrizes de Riad e, por fim, a Convenção sobre o Direito da Criança (FERREIRA; DÓI, p. 02).
Thaís Fernanda Tenório Sêco, em seu trabalho publicado na Revista Civilistica, entende que a tutela integral da criança e do adolescente é antes uma doutrina do que um princípio:
Diz-se da tutela integral da criança e do adolescente que ela é antes uma doutrina do que um princípio. Justamente como doutrina, a tutela integral representa um princípio hermenêutico relevante para a compreensão do sentido dos direitos da criança e do adolescente. Nesta conotação específica, o que se determina é justamente a consideração da condição social da criança e do adolescente em suas dimensões concretas: a criança situada no tempo e no espaço. Isso é feito, principalmente, pelo estabelecimento de um conjunto de pressupostos de entendimentos que são sintetizados pelas noções de vulnerabilidade e desenvolvimento como caracterizadores da peculiaridade do estado infantil (SÊCO, 2014, p.10-11).
De acordo com o artigo 3º do ECRIAD, à criança e ao adolescente devem ser asseguradas todas as oportunidades e facilidades, visando o seu desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade (BRASIL, 1990). Nesse sentido, o reconhecimento da multiparentalidade, nos casos em que há concomitância de vínculos biológicos e afetivos, é um meio de efetivar a proteção integral tutelada pela Lei nº 8.069/90.
O artigo 227, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil, reconheceu que as crianças e os adolescentes têm o direito de serem criados e educados no seio de suas famílias, de modo a ser garantida a convivência familiar ampla, o que é fundamental para o desenvolvimento completo e sadio do indivíduo (BRASIL, 1988). A família, pois, é um espaço de integração social.
4 A COMPROVAÇÃO DA POSSE DO ESTADO DE FILHO PARA O RECONHECIMENTO DA SOCIOAFETIVIDADE
Nos saberes de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2016, p. 563), são três os critérios para a filiação:
- o critério legal ou jurídico, pautado em uma presunção relativa imposta pelo legislador em circunstâncias previamente indicadas no texto legal;
- o critério biológico, centrado na determinação do vínculo genético; e
- o critério afetivo, estabelecido pelo laço de amor e solidariedade que se forma entre determinadas pessoas.
Este último, ou seja, o critério afetivo, diz respeito à filiação socioafetiva, pautada na função de parentalidade exercida por pessoas que não possuem laços biológicos entre si, representando uma espécie de adoção de fato por parte do pai ou da mãe socioafetiva. A certeza do vínculo paterno-filial, portanto, não decorre de uma verdade biológica, e sim de uma verdade afetiva, resultante da decisão espontânea de formação de uma família.
Acerca do assunto, cabem trazer as considerações de Simone Tassinari Cardoso, em artigo publicado na Revista Eletrônica de Direito Civil intitulada “Civilistica”:
A questão do reconhecimento jurídico da socioafetividade em matéria de filiação desafia a certeza técnica do DNA. É certo que a verdade genética é com ele demonstrada, mas a socioafetividade é capaz de aliar à verdade biológica uma outra, a dos fatos, da convivência cotidiana, tão verdadeira quanto a primeira (CARDOSO, 2016, p.13).
Ressalta-se que a socioafetividade deve ser comprovada por meio da posse de estado de filho, que consiste em uma paternidade fática e tem relação com a teoria da aparência. É compreendida como o surgimento de uma relação paterno-filial decorrente da convivência diária e da existência de laços de afeto, fazendo com que, aparentemente, haja um vínculo familiar entre sujeitos que não possuem uma relação biológica.
Conforme Maria Berenice Dias (2016, p. 677-680), o reconhecimento da posse do estado de filho se dá com base em três critérios: o tratactus (trato), o nominatio (nome) e o reputatio (reputação). O critério do tratactus é quando o filho é tratado como tal, isto é, criado, educado e apresentado como filho pelo pai e pela mãe; o requisito do nominatio, por sua vez, ocorre quando o filho usa o nome da família e assim se apresenta; por fim, o reputatio consiste na opinião pública de que determinado sujeito seja visto como pertencente à família.
Sobre os requisitos, adverte Cristiano Cassettari:
(...) há autores que entendem ser dispensável o requisito “nome”, bastando a comprovação dos requisitos do tratamento e da fama, já que os filhos são reconhecidos, na maioria das vezes, por seu prenome. Já a “fama” é elemento de expressivo valor, pois revela a conduta dispensada ao filho, garantindo-lhe a indispensável sobrevivência, além de a forma ser assim considerada pela comunidade, uma verdadeira notoriedade (CASSETTARI, 2015, p.36).
Verifica-se que a filiação socioafetiva depende da existência e comprovação de uma convivência respeitosa, pública e firmemente estabelecida, permeada pela relação de afeto construída durante a convivência. Os conceitos legais de parentesco e filiação, portanto, exigem uma interpretação com base na atual dinâmica social e nos diversos modelos de família.
A parentalidade não pode ser vista apenas sob o ponto de vista biológico, nesse sentido, admite-se a coexistência entre os vínculos biológicos e afetivos no registro de nascimento. Conforme o Enunciado nº 09 do Instituto Brasileiro de Direito de Família (2013): “a multiparentalidade gera efeitos jurídicos”. Destaca-se que a filiação pode ser feita de forma voluntária, conforme o disposto no artigo 1.609 do Código Civil, sendo este um ato pessoal e irrevogável, ou de forma judicial, por meio do ajuizamento de ação pelo suposto filho ou pelo seu representante legal (BRASIL, 2002).
Considerando a possibilidade do reconhecimento voluntário da paternidade ou maternidade socioafetiva, em 2017, o Conselho Nacional de Justiça publicou o Provimento nº 63, autorizando o registro em cartório da filiação socioafetiva de pessoas de qualquer idade (BRASIL, 2017). A medida foi muito criticada, tendo em vista que fragilizou o processo de registro de filhos não biológicos. Desse modo, em 2019, o CNJ publicou o Provimento nº 83 e estabeleceu critérios mais rigorosos para o reconhecimento da socioafetividade em cartório (BRASIL, 2019).
A norma determinou que a paternidade ou a maternidade socioafetiva deve ser estável e estar exteriorizada socialmente e que a existência do vínculo afetivo demanda comprovação mediante apuração objetiva e elementos concretos. No mais, o requerente precisa demonstrar a afetividade por todos os meios em direito admitidos, inclusive por documentos.
O Provimento nº 83 do CNJ, ainda, estabeleceu que o registro do vínculo socioafetivo pode ser feito em cartório apenas caso o filho seja maior de 12 anos. Sendo menor de idade, o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva exigirá o seu consentimento (BRASIL, 2019).
O Supremo Tribunal Federal (STF), como modo de reformular o tratamento jurídico dos vínculos parentais, concedeu repercussão geral ao Tema nº 622, estabelecendo que a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante, baseada na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios (BRASIL, 2016).
Dessa forma, a multiparentalidade no registro civil passou a ser admitida em detrimento de qualquer interpretação apta a ensejar a hierarquização dos vínculos, realizando a própria dignidade da pessoa humana ao permitir que um indivíduo tenha reconhecido seu histórico de vida e condição social. Houve, logo, o enaltecimento da verdade real dos fatos.
Conforme os estudos de Matos e Hapner (2016, p. 06-10), foram identificados três momentos históricos que se sucedem em direção ao reconhecimento da multiparentalidade, quais sejam: a impossibilidade jurídica do pedido, a prevalência da paternidade socioafetiva sobre a biológica e o reconhecimento da igualdade entre ambas, o que finalmente é identificado como o fundamento para a multiparentalidade.
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo foi um dos primeiros a reconhecer esse tipo de relação, em decisão proferida em 2012. No processo, após o falecimento da mãe biológica e diante do novo matrimônio do genitor, o enteado foi criado como se fosse filho da sua madrasta, desde os dois anos de idade. O TJSP entendeu que no caso estava configurada a maternidade socioafetiva, decorrente da posse do estado de filho, fruto de longa e estável convivência, aliado ao afeto e considerações mútuas e sua manifestação pública (BRASIL, 2012).
Cabe destacar, ainda, o primeiro julgamento colegiado admitindo a multiparentalidade que ocorreu no Rio Grande do Sul, em 2015. Para o Tribunal, a ausência de lei, para a regência de novas e cada vez mais ocorrentes instituições familiares, não implica na impossibilidade do reconhecimento da multiparentalidade (BRASIL, 2015).
No caso, houve o reconhecimento da multiparentalidade de duas mães e de um pai e considerado o fenômeno da afetividade como formador de relações familiares e objeto de proteção estatal, não sendo admitido o caráter biológico como critério exclusivo na formação do vínculo familiar. Portanto, resta evidente que a ausência de lei, acerca da possibilidade do registro de uma pessoa em nome de mais de dois genitores, não constitui um impeditivo para o reconhecimento das famílias multiparentais, que vêm se consolidando na justiça brasileira.
CONCLUSÃO
A socioafetividade nada mais é do que um termo técnico para falar de amor. Acontece quando uma pessoa cria o filho como se fosse seu, mesmo não sendo a mãe ou o pai biológico. Representa aquele amor que não tem relação com o vínculo de sangue, mas com o vínculo afetivo que é construído com alguém.
A multiparentalidade decorrente da socioafetividade é protagonista de muitos contos populares de diversas épocas e culturas, demonstrando que, embora tenha sido reconhecida recentemente pelo direito, não é um fenômeno moderno. A inadmissão da hierarquização dos vínculos já era defendida em 1979 pelo mineiro João Villela. Ao tratar da desbiologização da paternidade, o jurista abordou o conceito de paternidade solidária e defendeu o amor e a verdade como valores absolutos.
A socioafetividade é uma verdade real em relação ao determinismo biológico, sendo admitida, inclusive, a coexistência entre as diferentes modalidades de paternidades, o que foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal no Tema nº 622, de repercussão geral. A parentalidade socioafetiva encontra fundamento em princípios constitucionais e infraconstitucionais, dentre eles a dignidade da pessoa humana, a igualdade de filiação, a afetividade e a proteção integral da criança e do adolescente.
É possível fazer o reconhecimento desse tipo de relação, seja de forma judicial como extrajudicial. Para o reconhecimento em cartório, é necessário seguir as disposições do Provimento nº 83 do Conselho Nacional de Justiça. Por outro lado, nos casos em que é necessária a via judicial, devem ser atendidos os requisitos da posse de estado de filho, compreendidos como o tratactus, reputatio e nominatio, sendo que, quanto a este último, há divergência doutrinária acerca da sua indispensabilidade.
Denota-se, a partir das considerações aqui trazidas, que não é possível estabelecer um perfil único de família, tendo em vista as suas sucessivas e constantes transformações. A multiparentalidade é fruto da heteronomia social, revelando que ao direito cabe acompanhar as evoluções dos modelos familiares, garantindo os preceitos constitucionais pautados no Estado Democrático de Direito.
REFERÊNCIAS
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