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A exclusão da sucessão e a interpretação do art. 1.814 do Código Civil
THE EXCLUSION FROM SUCCESSION AND THE INTERPRETATION OF ARTICLE 1.814 OF THE CIVIL CODE
Julia Ferrazza
Especialista em Direito Processual Civil pelo Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar. Bacharela em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Advogada. julia@mosadvocacia.com.br
Resumo: A possibilidade de exclusão de herdeiro ou legatário da sucessão é incontroversa no ordenamento jurídico pátrio. Em contrapartida, ainda subsiste polêmica no que tange às hipóteses que admitem a exclusão da sucessão - isso, sobretudo, diante do caráter punitivo da medida. Diante dessa conjuntura, almeja-se apresentar o entendimento majoritário da doutrina brasileira, assim como o recente posicionamento exarado pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial 1.943.848/PR, quanto à interpretação do rol do artigo 1.814 do Código Civil.
Abstract: The possibility to exclude an heir or legatee is clearly present in the national legal system. However, there is still discussion as to the hypotheses in which exclusion from succession is admitted - especially due to its punitive aspect. Thus, this work aims to present the majority understanding of legal scholars in Brazil, as well as the recent ruling from the Superior Court of Justice’s Third Panel, while judging Special Appeal 1.943.848/PR, regarding the interpretation of the list in article 1.814 of the Civil Code.
Palavras-chave: Exclusão da sucessão; Artigo 1.814, Código Civil; Rol taxativo; Interpretação finalística.
Keywords: Exclusion from succession; Article 1.814, Civil Code; Exhaustive list; Purposive interpretation.
Corpo de texto
A transmissão das relações jurídicas patrimoniais por conta do falecimento de seu titular é o cerne do Direito das Sucessões. Diante de tal acontecimento, o ordenamento jurídico brasileiro prevê a transferência imediata da herança, mediante uma presunção de afeto e estima entre o sucessor e o sucedido (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 147). No entanto, a prática de determinados atos pelo herdeiro ou legatário pode acarretar na exclusão da sucessão. É nesse cenário que se inserem os institutos da indignidade e da deserdação.
Conforme explicam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2017, p. 46), todas as relações jurídicas, em especial no âmbito sucessório, devem ser norteadas pela dignidade da pessoa humana. Diante dessa compreensão, eventuais atos atentatórios à dignidade do falecido podem implicar na mitigação do exercício dos direitos sucessórios, obstando o recebimento da herança ou legado, mediante declaração da indignidade ou confirmação da deserdação. Assim, mesmo que garantido constitucionalmente, o direito à sucessão cede espaço para a efetivação da dignidade da pessoa humana.
Os institutos da indignidade e da deserdação estão previstos no nosso ordenamento jurídico desde o Código Civil de 1916 e, conforme sustenta Flávio Tartuce (2017, p. 68), ainda se justificam na contemporaneidade. Em sentido similar, Carlos Eduardo Minozzo Poletto (2013, p. 436) afirma que a manutenção dos dois institutos não configura nenhuma redundância legal. Em que pese ambos os institutos representem uma sanção civil e possuam o mesmo objetivo - obstar a transferência do patrimônio do falecido ao herdeiro ou legatário -, a indignidade decorre da presunção de vontade do falecido, enquanto a deserdação decorre da vontade expressa do autor da herança. Ademais, conforme se evidencia a partir do estudo mais aprofundado das causas de cada instituto, a indignidade é direcionada à proteção da ordem pública e social, à medida que a deserdação possui como cerne a harmonia e o respeito nas relações familiares (MADALENO, 2020, p. 208-209).
Outrossim, destaca-se que não há exclusão automática do recebimento da herança. Diante da conduta ensejadora da sanção, exige-se o ajuizamento de demanda judicial específica para que se reconheça a exclusão da sucessão – não sendo possível, por exemplo, discutir tal assunto nos autos de inventário ou incidentalmente em uma outra demanda. A indignidade, por se tratar de presunção do falecido, depende do ajuizamento de demanda pelos interessados após o falecimento do autor da herança. Já na deserdação, após verificada a existência de testamento no qual consta a vontade expressa do falecido, há necessidade de ajuizamento de ação própria para confirmação da deserdação.
Reconhecida a indignidade ou confirmada a deserdação por sentença transitada em julgado, o herdeiro ou legatário é excluído da sucessão, passando a ser tratado como se morto fosse. Dessa forma, pode-se afirmar que os efeitos da exclusão são retroativos à data da abertura da sucessão. Considerando ainda que os institutos possuem natureza punitiva, é relevante pontuar também que a pena é limitada a pessoa do apenado e, por consequência, os descendentes deste podem participar da sucessão por representação.
Elucidadas as diferenças básicas entre os institutos, cabe adentrar nas hipóteses que autorizam a exclusão da sucessão. Pois bem. Conforme sedimentado pela doutrina pátria, todas as hipóteses elencadas no artigo 1.814 do Código Civil permitem a exclusão tanto por indignidade quanto por deserdação. Além das hipóteses ali elencadas, a exclusão por deserdação é ainda admitida nas hipóteses descritas nos artigos 1.962 e 1.963 do Código Civil. Sendo assim, todas as hipóteses de indignidade são plenamente aplicáveis à deserdação, mas nem todas as causas de deserdação se aplicam à indignidade.
O artigo 1.814 do Código Civil, aplicável a ambos os institutos, autoriza a exclusão quando o herdeiro ou legatário: (i) for autor, coautor ou partícipe de homicídio doloso, tentado ou consumado, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente; (ii) acusar caluniosamente em juízo o autor da herança ou incorrer em crime contra a honra do falecido, ou de seu cônjuge ou companheiro; ou (iii) inibir ou obstar o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade, mediante violência ou meio fraudulento.
Já os artigos 1.962 e 1.963 do Código Civil, aplicáveis somente à deserdação, autorizam a exclusão da sucessão mediante a constatação de: (i) ofensa física; (ii) injúria grave; (iii) relações ilícitas com a madrasta ou com o padrasto, ou ainda com o cônjuge ou companheiro do descendente; ou (iv) desamparo do ascendente em alienação mental ou grave enfermidade, ou do descendente com deficiência mental ou grave enfermidade.
Mediante uma singela leitura das hipóteses acima descritas, conclui-se que o mero aborrecimento ou a existência de simples desavenças não justificam a exclusão do herdeiro ou legatário. Por outro lado, Rolf Madaleno (2020, p. 209) afirma que “o legislador brasileiro perdeu com o advento do Código Civil de 2002 uma boa oportunidade de ampliar os motivos de indignidade para determinar a exclusão sucessória de certos herdeiros que descansam sobre a segurança de uma legítima intangível”. Nesse sentido, Rolf Madaleno (2020, p. 226) defende ser necessária a ampliação das hipóteses, como ocorrido em outros sistemas jurídicos, a fim de admitir a exclusão da sucessão mediante condutas familiares altamente reprováveis, como no caso de abandono afetivo do ascendente ou descendente.
A leitura dos dispositivos acima expostos também permite aferir que as hipóteses do artigo 1.814 são mais graves do que aquelas contempladas nos demais dispositivos. A primeira hipótese – homicídio doloso – é, inegavelmente, a mais grave de todas e, de acordo com Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2017, p. 165), pode ser tratada como uma hipótese quase universal de exclusão da sucessão nos ordenamentos jurídicos contemporâneos.
Diante desta conjuntura, debate-se, atualmente, acerca da taxatividade das hipóteses previstas no artigo 1.814 do Código Civil. Ou seja, se os herdeiros ou legatários somente podem ser privados da herança pelas razões ali previamente estabelecidas. A esse respeito, há uma forte inclinação doutrinária favorável à interpretação restritiva das hipóteses elencadas em lei – diante, sobretudo, na natureza punitiva da previsão normativa.
Nesse sentido, por exemplo, Flávio Tartuce (2017, p. 71) afirma que, diante do reconhecimento do direito à herança como direito fundamental e da gravidade da exclusão da sucessão, somente se admite excluir um herdeiro em casos previstos em lei. Para o jurista (TARTUCE, 2017, p. 72), tal raciocínio deve ser reforçado até com maior contundência quanto se trata do instituto da deserdação, pelo fato de se excluir herdeiro necessário, protegido pela legítima.
Seguindo o mesmo entendimento, Rolf Madaleno (2020, p. 224) afirma que as hipóteses arroladas no artigo 1.814 do Código Civil “não comportam nenhuma interpretação extensiva ou por analogia, ainda que a conduta resulte mais grave do que aquelas textualmente previstas em lei”. Sendo assim, a exclusão somente se confirma com a verificação das causas expressamente previstas no dispositivo em questão (MADALENO, 2020, p. 224).
Para Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2017, p. 159), malgrado o acerto genérico desse raciocínio, “é preciso refletir sobre a indignidade a partir da finalidade almejada pelo tipo penal previsto na norma, e não tendo em mira o seu sentido literal”. Conforme explicam os doutrinadores (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 162-163), a interpretação das hipóteses legais a partir da finalidade almejada permite a exclusão da sucessão diante de condutas que se mostrem semelhantes com os tipos contemplados em lei. Dessa forma, é possível evitar que condutas tão gravosas quanto àquelas contempladas na legislação fiquem imunes, como os casos de induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 163).
Tal proposta não admite, obviamente, uma ampla e irrestrita interpretação do rol – conforme ressalvam os próprios autores (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 164). Conforme esclarecido, somente devem ser admitidas aquelas condutas que, conquanto não previstas no dispositivo, apresentem a mesma finalidade daquelas prevista em lei (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 164). O que se propõe, portanto, é a interpretação conforme a tipicidade finalística da norma e não uma intepretação ampliativa (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 164-165).
À vista disso, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2017, p. 164-165) defendem a tipicidade finalística, “através da qual o magistrado pode, no caso concreto, admitir outras hipóteses de indignidade, não tipificadas expressamente em lei, desde que tenham a mesma finalidade dos tipos legais referidos no dispositivo legal (CC, art. 1.814) e estejam revestidas de idêntica gravidade”. E, a partir desse raciocínio, propõem a seguinte fórmula: “tipicidade legal (previsão do art. 1.814 do Código de 2002) + tipicidade conglobante (alcance proibitivo que se pretende) = tipicidade civil da indignidade (tipicidade finalística)” (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 164).
Com base na teoria da tipicidade finalística, há quem defenda a caracterização da indignidade no caso da eutanásia. Entretanto, tal admissibilidade não é pacificada. Embora a eutanásia ainda seja sancionada no âmbito penal, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2017, p. 168) reconhecem a existência de um claro movimento pelo reconhecimento do direito à morte digna e do caráter piedoso do ato, o que legitimaria o afastamento da punição de exclusão da sucessão.
A discussão acerca da taxatividade do rol do artigo 1.814 do Código Civil, por fim, chegou ao Superior Tribunal de Justiça. Em 15 de fevereiro de 2022, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça adentrou ao debate, mediante a análise do Recurso Especial 1.943.848/PR, a fim de estabelecer se o ato infracional análogo ao homicídio está abrangido pela regra do art. 1.814, inc. I, do Código Civil - segundo a qual é admitida a exclusão dos herdeiros ou legatários que “houverem sido autores, co-autores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente”.
Ao enfrentar o tema, a Terceira Turma da Corte Superior afirmou que o rol do artigo em questão é taxativo, afastando, assim, o reconhecimento de hipóteses por analogia ou interpretação extensiva. Nada obstante, ressalvou-se que a taxatividade não implica, necessariamente, em uma interpretação literal do dispositivo. Muito pelo contrário, conforme explanado pela Ministra Relatora Nancy Andrighi, “a taxatividade do rol é compatível com as interpretações lógica, histórico-evolutiva, sistemática, teleológica e sociológica das hipóteses taxativamente listadas”.
Se interpretada de forma literal a regra do primeiro inciso do art. 1.814 do Código Civil, “o uso da palavra homicídio possuiria um sentido único, técnico e importado diretamente da legislação penal para a civil” e, consequentemente, “o ato infracional análogo ao homicídio praticado pelo filho contra os pais não poderia acarretar a exclusão da sucessão”. Nada obstante, na perspectiva teleológica-finalística, o ato infracional análogo ao homicídio deve ser admitido como causa de exclusão de sucessão, “sob pena de ofensa aos valores e às finalidades que nortearam a criação da norma”.
Conforme se sabe, a previsão normativa em debate tem como propósito excluir da sucessão aquele que atenta contra a vida da pessoa de cuja sucessão se tratar, resguardando-se, assim, o bem jurídico mais valioso do ordenamento jurídico. Dessa forma, a intepretação finalística impede o completo esvaziamento da regra em relação aos herdeiros ou legatários menores de 18 (dezoito) anos – o que poderia gerar efeitos adversos e, até mesmo, estimular a prática do ato escudado na inimputabilidade penal e desvirtuar as finalidades almejadas pelo legislador.
A esse respeito, inclusive, a Ministra Relatora reproduziu trecho da obra do jurista Sílvio de Salvo Venosa - o qual, antevendo a específica hipótese em exame, afirmou que a inimputabilidade penal deve ser ressalvada, pois, “não seria moral, sob qualquer hipótese, que um parricida ou matricida adolescente pudesse se beneficiar de sua menoridade para concorrer na herança do pai que matou” (VENOSA, 2021, p. 126).
Ao final, a Terceira Turma da Corte Superior concluiu que a regra do art. 1.814, inc. I, do Código Civil, contempla também o ato análogo ao homicídio, razão pela qual se considerou absolutamente irretocável o acórdão recorrido, devendo ser mantida a exclusão do herdeiro recorrente da sucessão de seus ascendentes.
Em síntese, o breve estudo do tema permite concluir que a doutrina entende majoritariamente que as hipóteses de exclusão da sucessão são taxativas. Entretanto, constata-se que a taxatividade do rol do art. 1.814 do Código Civil tem sido alvo de relativização, a fim de se admitirem hipóteses não contempladas no mencionado dispositivo, caso possuam a mesma finalidade e gravidade daquelas previstas em lei.
Referências
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília: Senado Federal, 2002.
FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: sucessões. 3. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Ed. JusPodivm, 2017.
MADALENO, Rolf. Sucessão legítima. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. [Livro eletrônico]
POLETTO, Carlos Eduardo Minozzo. Indignidade sucessória e deserdação. São Paulo: Saraiva, 2013.
SCHREIBER, Anderson et al. Código civil comentado: doutrina e jurisprudência. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021.
STJ, REsp 1943848/PR, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 15/02/2022, DJe 18/02/2022.
TARTUCE, Flávio. Direito civil: direito das sucessões. 10. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2017, v. 6. [Livro eletrônico]
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: família e sucessões. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2021, v. 5.
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