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Prescrição e Seguro
A prescrição na feliz síntese de Plácido e Silva, “exprime o modo pelo qual o direito se extingue, em vista do não exercício dele, por certo lapso de tempo”.
(Vocabulário Jurídico, volume II. Forense. São Paulo, 1975, página 1.209).
É a paz social e a segurança jurídica que se instala pela inércia de uma das partes na relação jurídica outrora realizada, diria esse cronista.
É, outrossim, um instituto jurídico bastante complexo, porém instigante e multifacetário em todas as áreas da ciência jurídica.
Segundo é do meu conhecimento, vigem, atualmente, duas súmulas exaradas pelo Superior Tribunal de Justiça quanto à prescrição no contrato de seguro, respectivamente, os enunciados 101 e 229.
Continuando, destarte, minhas modestas homenagens pela passagem da efeméride dos 20 anos em que se comemora o manuseio do nosso atual Código Civil pátrio, não posso me furtar de comentar uma recentíssima decisão proferida pela Terceira Turma do STJ, relatora Ministra Fátima Nancy Andrighi prolatada por ocasião do julgamento do recurso especial sob nº 1.970.111/MG, provido à unanimidade, em 15 de março de 2022. Votou vencido, em parte, quanto à fundamentação, o Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva.
Em verdade, as duas súmulas existentes sobre a matéria são oriundas, ainda, sob à égide do vetusto Código Civil de 1916/17, conhecido como Código Bevilaqua.
Ao comentá-lo, quando aquele jurisperito escreveu em relação ao artigo 178, §ºs 6º e 7º, o jurista do século passado, sentenciou com lapidar clareza:
“Convém, entretanto, esclarecer o pensamento destes preceitos, com a leitura dos artigos 1.432 e seguintes, que regulam a matéria de seguro. Da leitura desses artigos se verá que toda ação fundada no contrato de seguro prescreve em um ano, se as partes estiverem no Brasil, e em território brasileiro se verificar o fato que a autoriza…” (Código Civil de 1916. Comentado por Clovis Bevilaqua. Quinta edição. Volume I. Livraria Francisco Alves. Rio de Janeiro, 1936, página 461). Grifo meu.
Ainda sob o manto do Código Civil anterior, escreveu o corifeu dos juristas securitários, a seguinte passagem em sua notável obra:
“Têm entendido, por isso, nossos tribunais que a prescrição sobre seguros alcança o segurado e o segurador, não podendo ser alargada, por extensão, para abranger os beneficiários”. (Pedro Alvim. 1ª Edição. O Contrato de Seguro. Forense. Rio de Janeiro, 1983, página 509).
Já com relação ao Código civil de 2002 – o festejado nos seus 20 anos -, aliás, em plena vigência –, outro grande jurisconsulto doutrinou:
“No caso de sinistro, pode ser que o segurado não tenha ciência imediata do ocorrido. Quando tal se der, o prazo prescricional só começará a correr do momento em que a parte tomar conhecimento do fato gerador de sua pretensão indenizatória. O mesmo pode acontecer com o segurador”. (Humberto Theodoro Júnior. Comentários ao Novo Código Civil, 2ª Edição. Forense. Rio de janeiro, 2003, página 317).
De outro giro, fiquei extremamente lisonjeado ao pesquisar na internet o nome do inesquecível jurisperito argentino Carlos Félix Morandi, quando me deparei com uma foto minha ao lado da imagem desse grande magistrado e eminente escritor de Direito de Seguros. Ele, Morandi, atualizou, à época, a obra Seguros de Isaac Halperin, em que consta em um dos volumes que me foi ofertado, com uma dedicatória especial, já nos idos de 1.992.
Discorrendo sobre o prazo de prescrição, à luz das leis argentinas, isto é, sob números 17.418 e 20.091, Carlos Félix Morandi, ensinou:
“ Es menester que el assegurado conozca el acaecimiento del siniestro: contra non valentem agere non currit praescriptio. Mas deberá probar la ignorancia que alega”. (Halperin/Morandi. Seguros. Volume II. Segunda Edición Actualizada. Depalma. Buenos Aires, 1991, página 919).
Nessa mesma toada ensina, outro saudoso jurista argentino, Stiglitz, verbis:
“Sobre este tema Halperin tiene tomada posición: sostiene que este problema se vincula diretamente com la determinación del sinistro. El momento em que comienza la prescripción hay que fijarlo de acuerdo com la solución que se adopte para establear el sinistro”. (Passim. Ruben S. Stiglitz. Derecho de Seguros. Tomo III, 4ª edición. La Ley. 2005, página 258).
Ele, Stiglitz, também propõe algumas mudanças na lei de seguros argentina. (Vide na obra citada, tomo I, páginas 663 e 664).
Volvendo ao tema pertinente, diretamente ao ponto, examinado nesses comentários é com o fato gerador que se inicia a pretensão do segurado a teor do que prescreve o artigo 206, § 1º, inciso II, letra “b”” do Código Civil de 2002.
Como bem lançou a Ministra relatora na parte do que julgou a matéria exposta no item 5 da ementa do acórdão supramencionado, se colhe a seguinte exegese:
“ A interpretação desse dispositivo legal conduz à conclusão de que, antes da regulação do sinistro e da recusa de cobertura nada pode exigir o segurado do segurador, motivo pelo qual não se pode considerar iniciado o transcurso do prazo prescricional tão somente com a ciência do sinistro”. (Grifo meu).
Tautologicamente essa razão de decidir, salvo engano, a meu sentir, não entra em dissonância com o teor da Súmula 229 daquela Corte, que enuncia:
“O pedido do pagamento de indenização à seguradora suspende o prazo de prescrição, até que o segurado tenha ciência da decisão”. (Grifado, ibidem).
(Segunda Seção, em 8.09.1999. DJ 20.10.1999, página 49).
Não vou adentrar no mérito de suspensão de prazo, apenas referenciando o que diz o Vocabulário Jurídico de Plácido e Silva, ou seja:
“Em relação à prescrição, a suspensão provoca a descontinuidade. E, por essa razão, o prazo que se interrompeu não se vincula ao prazo que começa a correr”. (Bis in idem, Volume IV, página 1.509).
Até porque, aqui, não se cuida de qualquer ato de suspensão da prescrição tipificado no diploma material a teor dos artigos 197 a 201 do Código Civil. Cuida-se, no caso, de ocorrência do evento - sinistro - que dá azo ao fato gerador da indenização, ou seja, em decorrência dele.
Impende sublinhar também, que o fato gerador da pretensão do segurado contra a seguradora inicia com a ciência inequívoca da seguradora com o aviso de sinistro por parte de seu segurado ou corretor por ele habilitado para tal mister. Sua regulação e seus efeitos são decorrências do tempo em que a seguradora analisa o sinistro.
Vale ressaltar, ao ensejo, o que disse Felipe F. Aguirre, Professor de Direito do Seguro da Universidade de Buenos Aires, meu distinto amigo e colega, fruto de encontros promovidos pelo Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS). A lei argentina, diz ele, (Lei 20.091, art. 55) dispõe que os peritos e liquidantes de sinistros devem atuar “conforme às disposições legais e aos princípios técnicos aplicáveis à operação na qual intervêm e atuar com diligência e boa-fé. (Regulação de Sinistro no Projeto da Lei 3.555/2004, página 44).
Mais adiante, adverte:
A Lei de seguros (Lei nº 17.418) estabelece em seu artigo 56 que o segurador deve pronunciar-se acerca do direito do segurado dentro dos trinta dias do recebimento da informação complementar prevista nos parágrafos segundo e terceiro do artigo 46. A omissão importa aceitação da reclamação. (Bis in idem. Revista Brasileira de Direito do Seguro e da Responsabilidade Civil, v 1, n. 2, dezembro de 2009, página 45).
Também cabe, nesta assentada, o registro de que esse prazo ânuo se aplica no direito positivo brasileiro para os seguros em geral, salvante o prazo de três anos, previsto no próprio artigo 206 do Código Civil, ou seja, de que a pretensão do beneficiário contra o segurador e a do terceiro prejudicado no caso de seguro de responsabilidade civil obrigatório, que, de lege ferenda, deveria dizer respeito somente aos Seguros de Responsabilidade Civil em geral. (Vide inciso IX, do item III, do § 3º do artigo 206 do Código Civil).
Forte nessas considerações repiso à exaustão de que carecemos de reformas estruturantes para que uma matéria da magnitude de um Seguro de Responsabilidade Civil não seja tratada de uma maneira parca e com pouco interesse, que, certamente, deverá ser melhor explorada e trabalhada por nossos atuais legisladores.
Urge, assim, que o Congresso Nacional legisle de uma maneira séria e criteriosa para que dispositivos desse teor não sejam lançados através de um viés catalogado dentro de um prisma totalmente errôneo e equivocado diante do que consta atualmente em nosso ordenamento material.
Constar que prescreve em três anos – inciso III, inciso IX, o que se encontra acima transcrito juntamente com a dicção dos termos previstos nos artigos 787 e 788 do Código Civil, me parece, salvante melhor ótica, um destempero que não se coaduna com o nosso festejado veterano Código Civil.
É o que penso, sob censura dos doutos.
Voltaire Marensi
Advogado e Professor.
Porto Alegre, 08/04/2022.
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